Temos de falar sobre Kanye West.
Bem, na verdade, não temos. Nos últimos 20 anos, não temos feito muita coisa além de falar de ye. Do seu génio musical, do seu impacto na cultura pop, das suas controvérsias que nos fazem – aos seus fãs e admiradores – arrancar cabelos ao tentar perceber se aquilo que está a acontecer é real, uma caricatura ou uma muita elaborada façanha publicitária para o quer que se siga para o artista de Chicago. O que temos hoje para discutir sobre ye não está propriamente relacionado com um novo disco mas sim jeen-yuhs: Uma Trilogia Kanye, documentário realizado por Coodie Simons e Chike Ozah.
Ainda a série documental não tinha sido disponibilizada na Netflix (o primeiro episódio saiu a 16 de Fevereiro, tendo os restantes sido lançados nas semanas seguintes) e ye já tinha utilizado as suas redes sociais para dizer que tinha de ter “a aprovação final [na versão] do documentário” para este ser distribuído ao público. Resultado? Não foi. Mesmo sendo amigos de longa data, Coodie e Chike não concederam o final cut a ye, indicando à Rolling Stone que já estavam à espera de que isto fosse acontecer. “Nós já estávamos à espera que isso acontecesse. Isto é a personalidade do Kanye e, por isso, tu só aceitas e depois ela leva-te até onde der… Isto é a pessoa com quem estamos a lidar. Todos nós sabemos com o que estamos a lidar”.
Bem, fica a pergunta no ar: com o que é que estamos a lidar? A resposta sincera é que… é complicado. jeen-yuhs, contudo, e mesmo com todos os defeitos que tem, confere espaço para tentarmos responder a essa pergunta. É isso que aqui tentamos fazer. jeen-yuhs é, logo à partida, a documentação mais fiável, crua e pertinente da “evolução” de Kanye até se tornar o que hoje vemos: ye (e para descobrir a linha entre ambos é muito complicado, se é que sequer ainda existe. Há um momento muito interessante no segundo episódio, em que ouvimos Coodie a contar que o documentário era suposto ter sido lançado em 2007, mas que Kanye bloqueou porque “o mundo não estava pronto para ver o Kanye real”. Ironia do destino que agora, quando o documentário é disponibilizado, estamos muito mais longe de saber responder a essa interjeição do que em 2007). É fascinante observar o ambiente que se vive nos dois primeiros episódios – “VISION” e “PURPOSE” documentam o período dos seus primórdios enquanto produtor até ao momento que é galardoado com o prémio de Melhor Álbum de Rap do ano nos prémios GRAMMY de 2005 com The College Dropout – em comparação com o que se vive no último episódio, “AWAKENING”, que se foca nos eventos dos anos seguintes ao lançamento do seu longa-duração de estreia até aos dias de hoje, concluindo com imagens de uma das listening parties de Donda. Se os dois primeiros são povoados pelo ambiente jovial que se vive entre Kanye e a sua crew em busca da fama e do sucesso, o terceiro episódio é muito mais escuro, chegando em momentos a ser perturbador (e triste) ao tentarmos racionalizar o comportamento errático de West que nos é apresentado pela “trama”.
Em particular, há duas sequências de “AWAKENING” que são bizarras – e não excêntricas, como muitos querem apresentar — de observar. Uma é uma reunião na República Dominicana entre ye e um conjunto de investidores imobiliários que é tal de forma estranha ao ponto de que Coodie indica, na sua posição enquanto narrador, que teve de parar de gravar por se sentir mal em documentar aquilo. A outra sequência decorre logo depois, num carro, em plena corrida para a Casa Branca de 2020 (corrida na qual West participou…), em que observamos Kanye a ver um vídeo no YouTube de Tucker Carlson, personalidade da extrema-direita americana, a comentar no seu segmento na Fox News um comício (nos Estados Unidos da América, chamam-lhe rally) de ye, com o próprio a acabar por afirmar que Carlson está a dizer “factos” sobre a sua posição contra o aborto e que este está a colocar as suas afirmações “em contexto”. Se calhar não devíamos ficar surpreendidos, dado o apoio que ye continuadamente demonstrou a Donald Trump ao longo dos últimos seis anos, mesmo depois deste ter incentivado à insurreição dos seus apoiantes e que levou aos trágicos acontecimentos no Capitólio a 6 de Janeiro de 2021, mas, mesmo assim, não dá para impedir o surgimento da questão na nossa mente: como é que se chegou a esse ponto?
A palavra triste não traduz exactamente o que muitos fãs de Kanye West sentem ao observar este tipo de comportamentos erráticos, inconsequentes e inconsistentes. Se mesmo nos primórdios da sua carreira estes momentos já surgiam (ele brinca com isso no seu discurso de aceitação do seu GRAMMY de 2005, indicando que as pessoas estavam à espera de que ele “fizesse alguma maluquice”), os últimos anos têm sido marcados por um aumento da intensidade e frequência deste tipo de comportamentos. O apoio a Trump ou a candidatura à Casa Branca são apenas a ponta do icebergue de ye. Mesmo as últimas semanas, no rescaldo do divórcio com Kim Kardashian, têm sido marcadas por comportamentos erráticos e no limiar do abusivo para com a sua ex-mulher, especialmente através do seu Instagram. Mas se as declarações de guerra a Pete Davidson (actual namorado da sua ex-companheira) com o uso de memes e as várias rants pessoais e religiosas não fossem já suficientes, Kanye tinha um miminho extra preparado para nos fazer desesperar. Ver o videoclipe de “Eazy”, faixa com The Game lançada em Janeiro deste ano é… uma experiência, por falta de melhores palavras. No teledisco, Kanye parece raptar e decapitar uma figura muito semelhante a Pete Davidson. Mas não se preocupem, como sempre, Kanye justificou-se numa publicação no seu Instagram (entretanto apagada, como tantas outras nos últimos tempos): “A arte não é nenhum veículo para inferir qualquer dano ou dor. Qualquer sugestão em contrário sobre a minha minha arte é falsa e mal-intencionada”. O final do videoclipe referencia ainda directamente o comediante, indicando à audiência que “jk he’s fine [estamos a brincar, ele está bem]”, num troll de tal forma elaborado que faria Elon Musk corar de tão ridículo que é. Mais uma vez: como deixamos que se chegasse aqui?
A resposta a essa pergunta pode ser mais simples do que se pensaria: a música que ye apresentava era muito boa e isso tornava os seus comportamentos “justificáveis”, ligando-se tudo isso à ideia errada do tortured artist que parece sugerir que a melhor arte vem dos tormentos do artista. Até 2018, ano em que decorreram as Wyoming Sessions, de onde saíram trabalhos como ye, DAYTONA de Pusha T ou KIDS SEE GHOSTS, feito em colaboração com Kid Cudi, é complicado argumentar que West tem um disco paupérrimo, com cada um apresentando charmes suficientes para fazer uma conversa entre amigos durar horas sobre qual é o seu top do artista. De 2018 em diante, contudo, os trabalhos que West tem apresentado fazem com que se torne mais complicado ignorar os seus comportamentos porque a justificação de que nos trariam melhor arte já não é válida. JESUS IS KING soa esquecível (e muito pior passado os quase três anos do seu lançamento…) e DONDA, mesmo que esconda algumas boas faixas nas suas quase duas horas de duração, soa desinteressante e, em muitos momentos, inacabado, apresentando uma produção que não chega ao nível a que o artista nos habituou em praticamente toda a sua carreira. E alegadamente DONDA 2, lançado exclusivamente na plataforma Stem Player, soa ainda pior. Mesmo que supostamente ainda esteja, um pouco à imagem do que aconteceu com The Life of Pablo, em processo de conclusão nem isso parece poder salvar a falta de qualidade do disco, se quisermos acreditar naquilo que a Pitchfork diz sobre a versão que ouviu, ainda que em 2022 dar crédito à Pitchfork seja algo quase tão corajoso de fazer como tentar defender ye.
Mencionar The Life of Pablo é importante aqui no contexto da análise de quem é Kanye, ou melhor, de quem se tornou Kanye, porque é sensivelmente neste período da sua história que a sua música passa a ser praticamente só uma câmara de eco para o seu ego. Algo que se observa ao longo dos dois primeiros episódios de jeen-yuhs é que o jovem Kanye era uma pessoa que, apesar de revelar algumas inseguranças, possuía uma auto-confiança admirável e inspiradora. O problema é que quando pensamos no que esse rapaz se tornou começamos a ver que essa auto-confiança era, na verdade, um ego regulado, particularmente pela presença da sua mãe, Donda West. Donda é uma presença importantíssima na vida de Kanye, mas isso é algo que já sabíamos há muito, bem antes de Donda existir como homenagem – já tínhamos “Hey Mama” para isso, e é bem melhor essa homenagem comparada com Donda – ou jeen-yuhs estar disponível ao mundo. Há momentos do documentário em que parece mesmo que Donda é que é a estrela e não Kanye, tal a intensidade da sua presença em toda a sua duração, tanto pela sua posição enquanto mãe e apoiante incondicional de Kanye (há muito orgulho de mãe revelado no documentário) no seu percurso enquanto produtor e rapper emergente, e na sua posição eventual como manager do artista quando este chegou à ribalta.
É por isso que a morte de Donda, por complicações relacionadas com uma cirurgia cosmética em Novembro de 2007, é um ponto tão importante no documentário porque sugere ser o ponto em que o colapso de Kanye começa a ocorrer. Não só isso se observa na sua música, como o seu comportamento parece alterar-se gravemente após esse acontecimento, como se o artista nunca tivesse sido capaz de ultrapassar o luto . Em 2015, por exemplo, em entrevista à revista Q, ye revelava que se sentia culpado pela morte dela. “Se nunca me tivesse mudado para LA [Los Angeles], ela estaria viva”, contava. Mas será que a morte de Donda justifica tudo o que daí para a frente ocorreu, com o descontrolo total do ego de Kanye, associado à manifestação dos sintomas de bipolaridade? A resposta é um “nim”.
Mas é aqui que é importante lembrar esta máxima: ser um idiota e/ou má pessoa é algo que não pode ser justificado por problemas do foro mental. E os fãs de Kanye têm, junto com o seu círculo próximo de companheiros actual (quase inexistente, diga-se, com cada vez mais pontes a serem queimadas pelo artista, como ainda recentemente voltou a acontecer com Kid Cudi), um papel interessante na posição de facilitadores (o termo mais correto seria enablers, se escrevêssemos em inglês) para o comportamento do artista. Não importa o que ele faça, há sempre alguma explicação e alguma defesa existente para preservar o pedestal em que colocaram ye (e onde o próprio também se coloca, já agora). Mas se isso é algo evidente no mundo da Internet, jeen-yuhs revela que isso também se reflecte no mundo real em torno de West. Em boa verdade, fica a ideia de que parece haver uma espécie de abandono face ao estado de saúde mental do artista por parte do seu círculo próximo, quase como se aceitassem que não há forma de voltar atrás (não que sentir pena de um multimilionário seja pro-activo para alguma coisa). Há um momento no terceiro episódio da intriga que é bem revelador e que se liga também a um dos tópicos principais da música de Kanye dos últimos anos: a sua relação com a religião e, especialmente, com Deus. Nesse momento, Coodie grava-se a si mesmo, visivelmente emocionado, a reflectir sobre o comportamento de Kanye após uma visita ao rancho em Wyoming. Depois de admitir que o artista está a passar “por algo”, refere que “estão a rezar” e que “Deus irá sempre protegê-los, a ele [Coodie], à sua família e amigos [onde se inclui West]”, indicando que há um pensamento de que Deus irá ajudar ye a sair da situação porque está a passar (leia-se, os episódios maníacos e depressivos que surgem como consequência da bipolaridade que foi diagnosticada ao artista). O próprio final de jeen-yuhs parece passar a mesma ideia também, que só Deus é que pode salvar Kanye.
Não se interprete isto como uma crítica particularmente pensada à religião e a Deus — há muito boa gente que encontra conforto nisso. O problema é que em situações que envolvem a saúde, seja mental ou física, não se pode esperar que seja um acto divino a curar ou atenuar a dor de quem está a sofrer.
É notável a diferença que se sente entre o grupo de pessoas que rodeiam Kanye nos dois primeiros episódios, tanto em Chicago como no hub da Roc-A-Fella Records em Nova Iorque, com aqueles que o rodeiam no último. O primeiro grupo motiva Kanye a criar, mesmo que em certos momentos alguns dos elementos aparentem duvidar da capacidade deste enquanto rapper (uma das sequências mais bonitas do documentário é a qu mostra a surpresa de Pharrell Williams ao ouvir “Through The Wire” pela primeira vez). O segundo grupo parece incentivar Kanye a criar puramente por criar, num expoente máximo daquilo que é capitalizar a arte sem ter qualquer pensamento além do lucro que se vai ter (e mesmo que ye alinhe nisso, este não parece ter particularmente consciência de que isso está a acontecer). Mesmo que se note alguma alegria quando o vemos a criar no período mais recente da sua história retratada em jeen-yuhs, a fome que se observa nos dois primeiros episódios já não é a mesma.
Talvez seja por isso que, acima de tudo, a qualidade dos seus trabalhos tenha caído nos últimos tempos – já tudo foi cumprido e não há necessidade de escrever mais história. Não há dúvidas de que Kanye West é, muito provavelmente, o artista mais importante das últimas duas décadas. Pela forma como foi o principal responsável por elevar o hip hop a fenómeno mundial (mesmo que isso implicasse a sua total capitalização), em primeiro lugar; em segundo, pela forma como foi capaz de criar toda uma marca associada ao seu nome, capaz de ir muito além de ser apenas um talentoso MC e um dos melhores produtores de sempre — por outra palavras, responsável pela concretização da ideia da capitalização total do artista e da sua imagem.
Diga-se mais, a partir dessa ideia. O que se vê nos dois primeiros episódios de jeen-yuhs, e aquilo que talvez melhor resuma tudo o que envolve a máxima de “Kanye a ser Kanye”, é o seguinte: West está apenas em busca daquilo que é commumente referido como o sonho americano (o american dream), esse ethos em busca da prosperidade e do sucesso como resultante de uma meritocracia ignorante. E é ignorante porque resulta da ideia do indivíduo enquanto ser soberano ao invés de ser visto como um ser pertencente a uma comunidade interoperacional e de entreajuda.
Não pode ser só “Kanye a arranjar Kanye” – nem um Deus pode ajudar Deus, não é, se seguirmos à letra o que alguns (e o próprio…) pensam sobre ye — porque isso implicava que a saúde mental e as suas acções fossem apenas marcos individuais ao invés de se ver aquilo que elas são: a exposição do maximalismo do sonho americano e da capitalização total do artista e da sua arte que, em consequência, tornam West apenas um produto para consumirmos, seja a sua música — em grau menor agora — sejam as suas controvérsias, que têm sido o prato principal do artista nos últimos tempos (note-se, por exemplo, que falamos muito mais de controvérsias recentes neste artigo do que de música propriamente, e isso diz muito sobre o que a casa tem gasto ultimamente). As consequências disso estão à vista de todos e vale bem a pena ver jeen-yuhs apenas para chegar a essa conclusão.