Nem a chuva nem o facto de ser um dia a meio da semana afugentou o público no aguardado regresso do Jameson Urban Routes, festival outonal que arrancou ontem, 2 de Novembro, com a sua primeira edição pós-pandemia. Embora servida em diferentes doses, “experiência” é a palavra-chave para ajudar a descrever essa sessão inaugural: de um lado está um certame cuja história remonta a 2007, pelo qual têm vindo a passar vários nomes urgentes da chamada música urbana e que, por isso, domina como poucos o booking dentro desta estética sonora; do outro estão os artistas convocados que, de uma maneira ou de outra, têm vindo a vincar os seus estatutos e são tudo menos menos novatos nestas andanças. Tal como o Jameson Black Barrel, produto em destaque ao longo destas três noites programadas para o Musicbox, está tudo devidamente maturado e com os aromas no ponto certo.
Natural das Furnas, da ilha de São Miguel, Açores, a Romeu Bairos coube a tarefa e dar início às festividades. O rótulo de outsider não jogava a seu favor, mas o à-vontade que exibe em cima de um palco deixou desde logo antever que tinha a situação completamente controlada. Ex-concorrente do The Voice e participante de um Festival da Canção, atravessa de momento um novo pico de mediatismo graças ao papel que desempenhou na série Rabo de Peixe, onde veste a pele do lendário Sandro G, a quem pediu “emprestada” uma canção, “Eu Não Vou Chorar”, para este seu concerto. Tudo argumentos que, logo à partida, davam bons indicadores de que conseguia manter o público atento, mesmo tendo em conta que protagonizaria o único espectáculo do alinhamento despido de batida. De guitarra na mão e microfone à frente da boca, contou apenas com o acordeonista Paulo Borges ao seu lado, que não se cansou de elogiar ao logo de toda a sua prestação.
A sonoridade em que navega, aliada ao tom jocoso com que aborda as canções e que utiliza nas palavras com que se dirige à plateia, fazem dele o “plano B” perfeito para qualquer sala que esteja com dificuldades em agendar uma data com B Fachada, cantautor ao qual até dirigiu uma piada a dada altura. No seu repertório constam cantares tradicionais açorianos com roupagens modernizadas e ainda alguns covers de clássicos da música portuguesa, como o já mencionado êxito de Sandro G ou “Maria”, dos Xutos e Pontapés, que na sua voz vira “Mochila” — uma versão alusiva à escola que fez para cantar com os seus alunos do primeiro ano, revelou. No final, reinava a boa disposição entre todos aqueles que marcaram presença e é bem possível que muitos tenham anotado o seu nome para passar a acompanhar o seu trabalho.
E se ao primeiro concerto o Musicbox estava bastante bem composto em termos de lotação, o avançar do relógio veio trazer ainda mais corpos para dentro do clube situado no Cais do Sodré, até porque se avizinhava a entrada em cena dos dois nomes mais aguardados da Sessão #1 do Jameson Urban Routes’23. Quem surgiu a seguir ao músico açoreano foi Eddie Chacon, uma lenda do r&b que se julgava perdida para sempre até se ter estreado a solo com Pleasure, Joy and Happiness (2020), o seu primeiro trabalho desde o final da dupla Charles & Eddie, através da qual rubricou um enorme hit nos anos 90, “Would I Lie To You?”.
A postura de Chacon em palco é deveras interessante. Tanto podemos vê-lo praticamente estático com as mãos enfiadas no bolso frontal do informal hoodie que trazia vestido, como também é capaz de esbracejar e se abanar ao som dos grooves que são criados com a ajuda de três músicos vistosos — contou com baterista, baixista e teclista a acompanhá-lo. Na voz, uma constante: a afinação, o alcance e a potência em nada se parecem com o que esperaríamos por parte de alguém que andou tanto tempo afastado destas lides, sinal de que a música lhe corre mesmo no sangue.
Tal como em Pleasure, Joy and Happiness, o cantautor californiano voltou a trabalhar com o prestigiado produtor John Carroll Kirby no seu segundo LP, Sundown, que gozou de óbvio destaque durante esta sua passagem por Lisboa. Editado em Março deste ano pela Stones Throw Records, o disco motivou uma entrevista a Chacon por parte de Rui Miguel Abreu, peça na qual se pode entender mais aprofundadamente a interessante história deste veterano. E a julgar pelo que confidenciou a meio da sua performance, os próximos capítulos não são menos entusiasmantes do que o seu passado: está neste momento a esculpir uma nova obra ao lado de Nick Hakim, emergente músico e produtor que tem dados nas vistas pelas colaborações que assinou para gente como Anderson .Paak, Lil Yachty ou Ab-Soul, e brindou-nos com uma das canções inéditas que têm estado a brotar dessa parceria.
Das baladas r&b até à cena disco, Eddie Chacon domina as escolas todas do cancioneiro afro-americano e cobre-as de texturas sedosas, capazes de embalar qualquer ouvido e apenas ao alcance dos mais sábios alfaiates sonoros. Terá sido certamente por isso que, mesmo não sendo o nome mais sonante do cartaz, conseguiu criar a empatia necessária para ter o público a mostrar-lhe total apoio, ao ponto de ter conduzido as massas à melhor interacção da noite, que em “Trouble” o acompanharam com um grande coro que se prolongou mesmo após o som dos instrumentos cessar e o deixaram visivelmente impressionado e agradecido.
Para muitas das pessoas presentes naquele serão, o motivo que as levou a deslocarem-se até ao Musicbox era óbvio e até audível em determinadas conversas. Quinta-feira é, na maior parte dos casos, sinónimo de se querer abandonar cedo o local para ter tempo de descansar antes de mais um dia de trabalho — e aqui, “cedo” quererá mais ou menos dizer “mal acabe o concerto de Ana Frango Elétrico”, que era o acto mais aguardado neste arranque de mais uma edição do Jameson Urban Routes.
Não é que seja um nomes imensamente vistoso no panorama global da indústria musical, mas sem dúvida que existe um certo culto em torno desta irreverente artista brasileira, cuja fusão entre boogie e jazz com várias pinceladas de tropicalismo tem encantado alguns melómanos de diferentes coordenadas do planeta — tanto podem podem encontrá-la em discurso directo no Rimas e Batidas como a ser revista pelo carismático youtuber norte-americano Anthony Fantano do canal The Needle Drop.
À frente de uma banda onde constavam mais três músicos, Frango Elétrico foi recebida com uma enorme ovação e começou por criar um certo clima à boleia de um tema instrumental que fez brotar palmeiras imaginárias, deixando antever desde logo o clima e as boas vibrações do seu país para aquele pedaço da capital portuguesa. Seguiram-se “Coisa Maluca” e uma consequente chuva de água de coco sobre as nossas cabeças, ou “Camelo Azul”, aqui já em jeito de jazz de boate a suplicar por conexão sexual, ambas faixas do seu terceiro e mais recente disco, Me Chama De Gato Que Eu Sou Sua, editado há um par de semanas pela Mr Bongo. Num breve throwback, percorreu também uma ou outra faixa do seu anterior Little Electric Chicken Heart — “Promessas e Previsões” e “Chocolate” foram as que nos ficaram retidas na memória. Entre a ondulação de faixas mais calmas e outras mais mexias, um verdadeiro festim de danças invadiu o Musicbox já no derradeiro momento da sua performance, quando nos fez engolir o seu “Electric Fish” e nos estimulou o corpo com as descargas de energia necessárias para acompanharmos a sua bela recriação da estética disco.
Se éramos cépticos em relação a inícios perfeitos, a tríade escolhida para o arranque deste Jameson Urban Routes provou que, afinal, estes até são possíveis quando planeados ao mais ínfimo detalhe. Esperamos ter a mesma sensação já hoje na sucessão de apresentações que nos colocará à frente de Marianne, Cíntia, Lord Apex e Ralphie Choo. Vêmo-nos por lá.