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Fotografia: Hick Duarte
Publicado a: 30/10/2023

Punk e chique.

Me Chama de Gato Que Eu Sou Sua dá uma afirmada maior no que significa ser a Ana Frango Elétrico”

Fotografia: Hick Duarte
Publicado a: 30/10/2023

Vale a pena afirmar o óbvio: Me Chama De Gato Que Eu Sou Sua — editado no passado dia 20 de outubro numa edição conjunta entre a selo RISCO e a Mr Bongo — é um enorme disco. E Ana Frango Elétrico, nome artístico de Ana Faria Fainguelernt, é uma artista excitante. Mas isso já o sabíamos. Isto só o confirma.

Ao terceiro disco, Ana Frango Elétrico sofre uma (outra) mutação. Depois das explorações slacker meets tropicália de Mormaço Queima (2018), do chamber jazz requintado de Little Electric Chicken Heart — que lhe valeu uma nomeação para um Grammy Latino e aclamação por parte de críticos internacionais como Anthony Fantano —, Ana Frango olha agora para a música disco, para a soul e para a pop oitentista como inspirações. Resultado? Um álbum recheado de belíssimas cantigas, debruçadas sobre o tema de amor não-binário, explorado anteriormente no singleMulher Homem Bicho” (2020), perdidas entre público e privado, refrões orelhudos, grooves contagiantes, energia punk, jazz improvisado, diferentes eras musicais. 

Em Me Chama De Gato Que Eu Sou Sua, tudo resulta, de alguma forma. É doido, mas não demais. É estruturado, pensado, produzido minuciosamente, resultado do crescimento artístico e pessoal de Ana Frango e de muitas brincadeiras e experimentações que a artista efetuou para chegar aos sons deste trabalho. 

Antes de tocar no Salão Brazil, em Coimbra, esta quarta-feira (1 de Novembro), e em Lisboa, no Musicbox, como parte do regressado Jameson Urban Routes, esta quinta-feira (2 de Novembro), o Rimas e Batidas foi ao B.O.T.A trocar uns quantos dedos de conversa com Ana sobre o universo “punk e chique” de Me Chama De Gato Que Eu Sou Sua.



No teu livro de poemas Escoliose, publicado em 2020, tens um poema que diz o seguinte: “sou jovem e sobrevivi a dois mitos românticos / e um tesão conexão”. Sinto que esses versos quase descrevem a ambiência do teu novo disco [Me Chama De Gato Que Eu Sou Sua]. Vês alguma relação entre esses versos e o teu novo disco?

Totalmente! Que legal você fazer esse paralelo porque eu nunca tinha pensado nisso [risos]. Acho que ele tem a ver com isso, né? Porque tem a ver com a minha história, com género, com sexualidade, com ser jovem. Acho que é isso tudo de uma maneira bem jovem, visceral, energética, fresca. 

Sabes uma coisa que achei interessante? Estive a ler as tuas entrevistas em torno deste álbum e não consegui deixar de pensar que lia conversas sobre um disco de hyperpop–

O que é hyperpop? [Risos]

SOPHIE, A.G. Cook… Há uma essência de desconstrução maximalista da pop que visa não se inserir em nenhum género. E é música que também tem por base a desconstrução da sexualidade, do género, do binário. 

Total. Irado. Acho que tem a ver mesmo. Eu dei uma entrevista hoje em que falaram do disco da Beyoncé [RENAISSANCE], Jessie Ware [What’s Your Pleasure?, That! Feels Good!], Róisín Murphy [Róisín Machine], e da questão queer. E tem graça, porque estamos a falar de três pessoas — apesar de no caso da Beyoncé, como ela é uma pessoa preta, tem a questão da música house e do movimento de Make House Black Again — que fazem disco que é queer, mas que não são queer.

O caso da Róisín ainda se torna mais… Ela mandou um comentário super transfóbico recentemente.

Total. Teve esse caso da Róisín Murphy, não é? Mas enfim. Eu falei que não teve nenhuma influência porque este disco já estava pronto no ano passado. E isso talvez seja uma questão de consciente coletivo, né? A música disco tem a ver com a comunidade queer e com a questão das pessoas racializadas.

A génese da música disco está em comunidades queer, particularmente comunidades queer negras, de se mostrarem a partir desta identidade artística assente na música e na dança.

Total. Mas é isso, não sinto que de alguma forma resgatei ou tive uma ideia de resgatar a música disco, sabe? Acho que pelo contrário, na verdade. Foi meio que intuitivo. Teve a ver com eu querer testar coisas setentistas com processamentos oitentistas, como gated reverb, e a partir de aí ir fazendo outras coisas, sabe?

Não sei se te identificas, mas mesmo essa questão da homenagem, lembra-me muito o Random Access Memories dos Daft Punk, em haver essa noção de explorar sons que ouvias e influenciaram-te.

Não, total. Acho que este [Me Chama De Gato Que Eu Sou Sua] é um disco que faz isso, até com a minha trajetória musical, de coisas que ouvi. Porque sinto que ele vai fazendo um passeio pela indústria fonográfica de coisas que ouvi. E aí eu sinto que tento… Não sei, eu não chamei de homenagem, mas acho que é uma reverência. Há uma reverência e eu vou dando a minha visão a esses géneros. É isso. Eu também não me consigo fixar num género, sabe? Talvez o no gender seja o mais próximo [risos].

Acho interessante o que estás a dizer, porque li uma entrevista tua onde dizias que o teu primeiro disco [Mormaço Queima] era um anti-álbum, e mesmo antes desta entrevista começar estavas a comentar com uma pessoa que já não sentes tanta ligação com esse trabalho. Achas que essa quebra de relação tem a ver com a forma como o teu desenvolvimento artístico ocorre paralelamente ao teu desenvolvimento pessoal?

Acho que tem muito a ver. Acho que o meu primeiro álbum é um anti-álbum porque eu não tinha interesse em entrar na indústria e queria ser antagonista de tudo o que estava a acontecer, de alguma forma, na indústria. E aí eu acho que começo a querer fazer música, querer aprimorar, querer melhorar, querer fazer um bom álbum. Me dedicar a isso, não é? Entender isso como uma profissão e fazer com respeito a todo o mundo que já passou por isso também e de poder dar a minha visão a essa indústria fonográfica. E eu falo da indústria porque não sei que outra palavra falar. Eu não estou a querer falar da indústria, das gravadoras, da parte ruim da indústria [risos]. Estou a querer falar da construção fonográfica do mundo, da questão de gravação, de microfonação, de grandes álbuns, né? 

E nesse caso acaba por haver esse foco do final da década de 70 e início da década de 80. Soul, disco, new wave

Total, total. Acho que quis fazer também esse lance de passar por algumas décadas até chegar num som que podia ser tudo isso, mas também meu. Talvez o grande lance do álbum seja justamente no mesmo disco ter todas essas linguagens, sabe?

Mas acho que esse encontro de linguagens… Por exemplo, no Little Electric Chicken Heart, na “Se no Cinema” ou na “Chocolate”, e depois também no single que lançaste em 2020, “Mulher Homem Bicho”, já exploravas conceitos e tons sonoros que surgem ao longo deste teu novo disco, em particular o tema de amor não-binário. Como passas disso ser apenas explorado em momentos esporádicos para ser um conceito global ao disco?

Acho que passa justamente pelas minuciosidades e experimentos até chegar aqui. Mas, ao mesmo tempo, também há esse ponto de chegada que não é um ponto de chegada, de alguma forma. Acho que é um disco que não procura ser afirmativo, no sentido de afirmativo ser uma coisa fixada, única, e bíblica geral, entendeu? Um manifesto. Não considero [o disco] um manifesto não-binário, entendeu? Acho que é pessoal. Eu tenho falado que é um disco que tem a ver com teorias, micromutações, analogias pessoais. No final de contas, é pessoal, não é? É intrínseco, mas acho que também vai para a musicalidade.

Essas minuciosidades de que estamos a falar, de ser uma coisa pessoal, como é caso da “Dela”… Acho que há um sentimento de globalidade, de transposição, de haver uma experiência relacionável, especialmente para pessoas queer.

Claro, total! Me perguntaram hoje mais cedo se o disco era pessoal e eu falei que não. Mas depois perguntaram se era um manifesto e eu falei que não também. Acho que isso tem a ver com o que você está perguntando, porque sinto que é um disco que o impasse dele talvez seja esse contacto entre o público e o privado, esses sentimentos comuns e únicos. No final de contas, quando a gente está falando de queer, e eu falo muito de queer nesse disco, eu estou a falar de queer, mas não é da sigla Q. Eu estou falando de estética. Estou falando do divergente, do estranho, do não heteronormativo, do não cisnormativo. E acho que talvez o disco tenha esse embate porque, na verdade, quando está a falar de queer, está a falar de ser único. Cada um, com a sua identidade, é único. Você vai ser você e eu acho que esse disco faz essa coisa. É muito pessoal, mas também fala de amor, que é um assunto comum e pop, né?

Que é global.

Que é global. 

Esses limites… É como se estivesses a falar do limite do que é real, baseado na tua experiência, mas depois aquilo que a outra pessoa imagina. É quase uma performance, de certa forma. E pronto, a Judith Butler diz que género é performance no Problemas de Género, não é? Não sei até que ponto a Ana Frango Elétrico enquanto entidade é uma forma de explorares estas questões fora do pensamento heteronormativo.

É total isso. Acho que esse disco traduz o que é o nome de Ana Frango Elétrico, que muita gente fica, “ah, porque é o sobrenome”, “ah, porque engraçado, é uma piada com o sobrenome”. E ninguém entende de facto aquilo que estou a falar, entendeu? Não é Frango Elétrico. O que estou a falar na “Mulher Homem Bicho”, no Me Chama De Gato Que Eu Sou Sua… Já tenho o meu nome há sete anos de trabalho artístico e eu acho que esse disco dá uma afirmada maior no que significa ser a Ana Frango Elétrico. E tem a ver com a “Mulher Homem Bicho” e com o Me Chama De Gato Que Eu Sou Sua. E é uma questão de confusão, não é? É um disco que procura mais confundir. Acho que o objetivo dele é desnortear de alguma forma e fazer pensar, talvez, essas questões.

Na entrevista que concedeste à NiT, indicaste que a meta para este disco era ganhar o Grammy [Latino]. Com isso em mente, e associado a um certo perfecionismo presente no disco, como decorreu o processo de criação deste álbum em comparação com os anteriores?

É assim, o primeiro disco, como você falou e como eu fui que falando, sinto que ele é um anti-álbum. O segundo disco depois já é eu me afirmando fonograficamente, querendo estar numa indústria fonográfica, sabe? E aí acho que este já foge de uma maneira assim, mas ainda acho que ele surge meio parecido com o segundo nesse sentido. De ir parando um pouco de ouvir as canções, e estudando, ouvindo mais diretamente fonogramas, sabe? Entender o que quero de som, pensado arquitetura de uma música assim. Eu falei isso várias vezes hoje, porque dei várias entrevistas [risos], em que vejo cada vez mais a produção musical como “esculpindo ar”. Eu me vejo esculpindo ar. Então, acho que tem a ver com isso. Tem a ver com o pensar estrutura, pensar conceito, pensar sonoridade. Então, acho que a partir disso a construção foi-se dando e é muito parecida com o Little Electric Chicken Heart. Mas sinto que o Little Electric Chicken Heart, ele é uma pesquisa só. Já esse disco é uma pesquisa que tem a ver com Nora Ney, Sara Vaughan, Johnny Alf, Burt Bacharach… Tem uma pesquisa mais ampla, mais secular, sabe? Não me limitei tanto a uma pesquisa, a um timbre, a uma coisa. Sinto que a pesquisa dele é justamente as várias pesquisas. Também acho que isso acontece porque isto é o meu trabalho pessoal, e como isso é o meu trabalho pessoal, eu posso fazer o que eu quiser, entendeu? A produzir com outros, eu não consigo testar mil coisas. Então, de alguma forma também, confesso que é meio um desejo de experimentar coisas, entendeu? E acho que talvez por ter experimentado, se eu quisesse, daqui a dois anos podia fazer um disco só de um som que encontrei ali, talvez, na “Dr. Sabe Tudo”, entendeu? Ou só um som que encontrei na “Boy of Stranger Things”, ou só um som que encontrei na “Coisa Maluca”. Mas também não me vejo muito [a fazer isso] porque não é muito a minha cara. Acho que penso de uma maneira meio cinematográfica, e pensando em cinematografia, acho que tem a ver com dinâmica. Eu penso o disco como um dia, de alguma forma. Num dia, você acorda, dorme, fica puto, ri, se stressa, come. Acho que o disco, para mim, ele tem de ter, de alguma forma, dinâmicas assim. Gosto muito de pensar dinâmicas, estruturas, sabe?

Isso é curioso, sabes porquê? Tinha anotado que algumas canções, como a “Camelo Azul”, lembravam-me algo que podia estar inserida banda sonora de um filme. Eu ia perguntar se achavas interessante fazer uma banda sonora um dia [risos], mas agora com o que disseste, a pergunta é diferente. Seria interessante adotar o universo deste disco para um teatro ou uma curta, por exemplo?

Sim, acho que sim, mas, ao mesmo tempo, não sinto que precise de alguma forma, porque já lá está. É interessante também ser o seu filme, entendeu? Acho que quando eu falo o “sua”, ele é aberto a todo o mundo. E é pessoal e nem um pouco pessoal, né? Porque é você, mas não é ninguém. É você e, ao mesmo tempo, todo o mundo e qualquer um. Eu nunca tinha feito um clipe, não é? E agora tenho gostado, tenho pensado em coisas e quero fazer porque acho que é fundamental para também as pessoas compreenderem mais a estética. Mas uma coisa que gosto muito da música é o poder de imaginação, assim como a poesia. Então, para mim, é importante eu também não dar tudo, sabe? Acho que tem uma coisa da arte, que é bonita, em você não estar a dar tudo. Tipo, o seu dia vai ser um dia e você vai sentir essas músicas de um jeito, fulano vai sentir de outro. O que você imaginar de um filme da “Camelo Azul” é completamente diferente do que eu vou imaginar. Acho que isso é bonito e poderoso também.



Aproveito para perguntar: o videoclipe da “Insista em Mim” é muito poderoso, tem uma mensagem muito forte sobre o amor negro. Como surgiu esse teledisco?

Isso tem a ver com a diretora [Mariana Zabenzi] e com a roteirista [Maria Isabel Iorio]. Eu chamei elas e quis também entregar, sabe? 

Elas deram a visão delas à canção.

Sim. Para mim, é importante confiar em pessoas que admiro. Eu sinto que muita gente gostaria de ter feito videoclipes meus ao longo da minha vida musical, de Ana Frango Elétrico no caso. E eu tenho muito cuidado, nunca saio aceitando videoclipe. Porque para mim é delicado, entendeu? Eu trabalho com imagem, com estética. Não quero sair a deus dará fazendo clipe, sabe? Não quero fazer clipe por fazer clipe porque é importante fazer clipe. Eu quero fazer clipe com uma cinematografia que acho que tem a ver comigo. Para mim é isso. É quase um músico a mais que eu estou chamando. Não posso só chamar um fulaninho que quer fazer o meu clipe que não conheço. Não tenho interesse nisso porque aquilo é a minha estética. Estou entregando ali a minha obra também. E esse videoclipe é isso, veio delas.

Sobre essa questão da confiança, a lista de créditos deste disco é gigante. Como é para ti gerir a lista de colaboradores e incluir cada um deles na visão que tens para cada canção?

Bom, primeiro, acho que isto é um disco que não precisaria de tanta gente. Eu poderia ter feito [sozinha], mas quis que tivesse tanta gente porque, para mim, a contribuição… Eu fui chamando gente, entendeu? Amigos próximos, pessoas que acho que têm a ver com tais músicas. E eu botei todo o mundo nesses créditos. Eu fui gravar cordas num estúdio que tinha um engenheiro e três assistentes e botei essa gente também. Mas o disco tem uma base forte. Essa base é eu, o Alberto Continentino o Sérgio Machado e o Guilherme Lírio. Poderia ter feito só a gente, mas eu acho que gosto quando tem mais gente. E eu tenho facilidade de arranjar gente, entendeu? Acho que tem a ver comigo. Eu sou sagitariana, tenho muitos amigos, gosto de gente e energia. Não gosto muito de discos que as pessoas fazem sozinhas, sabe? Acho que é importante a contribuição. Inclusive, acho que nesse disco criei coisas específicas em várias músicas a pensar em pessoas específicas. Todo o mundo em que pensei tem a ver com as músicas em que participou de alguma forma.

Há um ideal quase comunitário em tudo o que estás a dizer… Abrires o espaço para essas pessoas contribuírem. Não ser só a Ana com uma ou duas pessoas.

Pois é. Eu gosto, eu gosto. Por isso é que gosto de cinema e teatro, né? São duas coisas que nenhum diretor faz sozinho. O diretor não atua, né? Então, sinto meio a música um pouco como isso também. 

Como uma diretora?

Como uma diretora.

Há pouco, estávamos a falar da produção como “esculpir o ar”. Numa entrevista de 2020 à Scream Yell, disseste que a produção musical não era só o elemento técnico, mas que se deve pensar também “na energia e na cor”. Nos últimos tempos, produziste ou contribuíste na produção de discos para artistas como Bala Desejo [SIM SIM SIM], Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo [Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo, Música do Esquecimento], ou Júlia Branco [baby blue]. Dado o teu próprio envolvimento na produção dos teus próprios discos, como varia a tua filosofia de produção conforme estás a produzir para ti ou produzires para outros?

É muito diferente, principalmente pelo espaço. Acho que quando estou a produzir outros artistas, ocupo o espaço que eles me dão, né? Não saio ocupando espaços que não tenho de ocupar. E também quero que a pessoa fique feliz independentemente de achar que uma ideia também é boa ou não. Acho que eu vou com o que acho que o artista quer. Se ele está a bater o pé nisso, eu vou ouvir ele. É o disco dele, entendeu? Já no meu disco, é o sonho [risos]. É eu como produtor fazendo o que quero. Acho que neste disco me vejo como produtor. Não acho que é um disco de eu enquanto cantora.

Neste novo?

Sim. Eu sei que canto e claro que na sua visão talvez seja, mas eu nem lembro do que eu canto. Isso é o que quero dizer. Eu canto porque tenho de cantar porque é o meu disco. Mas é assim, sinto que o que estou fazendo ali não é sobre ser cantora.

Se fosse um disco só de instrumental, sentes que o disco não mudava assim tanto, por exemplo?

Não, mudava completamente porque eu teria pensado um disco completamente diferente. Mas poderia ser outra pessoa cantando.

Num universo alternativo, isto poderia ser um disco de features. Não sei se isso um dia poderia interessar-te, um disco onde tu produzes e tens outras pessoas a cantar.

Pois é, eu acho. Mas é assim, acho que talvez num disco de puxar mais esse lado, de fazer produções, chamaria pessoas do rap, como o JOCA, e de outros géneros, mais do que chamar uma cantora para cantar as minhas músicas. Não acho que tenha vontade de fazer isso. Já acho chato eu cantar [risos].

Isso lembra-me: sinto que a tua música no futuro irá ser samplada por artistas de hip hop ou funk. Isso seria algo para ti artisticamente satisfatório?

Muito. Com certeza.

Quem é aquele produtor que um dia gostavas que samplasse algo teu?

Ai, o meu sonho seria o Tyler, The Creator ou o Pharrell Williams!

Sobre as canções deste disco serem menos loucas… Essa decisão de te preocupares mais com a estrutura das canções parece ter sido uma decisão plenamente consciente. De onde sentes que ela surgiu?

Maturidade, de já ter feito doido. Acho que se tivesse feito uma coisa careta, eu ia estar completamente insegura de ter feito uma coisa super-careta, sabe? Acho que ter feito uma coisa mais antagonista, mais experimental no começo, fez com que eu quisesse fazer mais coisas. Mas talvez se fosse o inverso, se eu tivesse feito um disco super-careta, super-pop, não ia estar desesperada também. Acho que parte de mim gosta mesmo da reinvenção, sabe? Gosto de me reinventar, de repetir-me, de reprocessar, entendeu? De experimentar coisas opostas ao que eu fiz. Acho que nós vamos arquitetando as coisas. Eu sou artista, não é? Não me considero uma cantora, me considero artista. Então, acho [que os meus discos] são quadros, exposições, entendeu? Poderia ser. Acho engraçado que, na música, a gente acha que o artista tem de ter uma unidade única e fazer sempre o mesmo. Nenhuma outra arte é assim, entendeu? As exposições mudam, cada um livro é de um jeito, cada filme é de um jeito, e mesmo assim, vemos identidades fortes de cada artista. Acho que no meu caso é igual. Acho que cada disco é diferente, mas é muito claramente eu, Ana Frango Elétrico. Só tem uma, por enquanto.

Sobre a tua identidade artística, de que forma a tua atividade na pintura ou nas artes plásticas — e até com a poesia —, influencia aquilo que crias enquanto música?

Influencia completamente. Acho que penso muito esteticamente e tenho um apreço com a minha identidade visual. Eu penso em cores e trago esses elementos para mim de alguma forma, sabe? 

Juntas tudo na personagem da Ana Frango?

Sim, totalmente.

Já tinhas cantado em inglês noutros momentos da tua discografia, em particular no teu primeiro álbum. Mas neste Me Chama De Gato Que Eu Sou Sua, a língua inglesa assume um papel mais predominante. É interessante, porque já falamos também de assumires neste disco uma clara maior influência do universo de música anglo-saxónica, como a música disco. Como foi para ti esta questão de cantares em inglês e enquadrares isso no universo da Ana Frango Elétrico?

Muito natural. Não acho que eu faça esforço para nada, na verdade. Eu me esforço para melhorar para fazer o trabalho, mas não me esforço para ser algo. Sinto que quando, para uma música, não consigo botar letra, para mim ela não tem de ter letra. Para mim, é assim. Artisticamente, não estou a dizer que não é para trabalhar nem se esforçar, até porque acho que sou muito da labuta criativa. Eu sinto que eu me esforço para ser criativa. Trabalho a minha criatividade há muitos anos. Seja lendo, seja desenhando, compondo, pintando. Tenho um esforço para ser criativa e isso é um ofício. Não acho que a criatividade vem do céu, sabe? Não. Mas eu também não sou uma pessoa que fica tentando enfiar letra onde não tem, botar nome onde não tem. Me perguntaram como foi encontrar o nome do álbum, mas, na verdade, eu encontrei o álbum para o nome. O nome eu já tinha, entendeu? Então, acho que isso tem a ver com o que estou falando. Sinto que acho antes a raiz das coisas e depois começo a regar e a crescer a planta [risos].

Qual foi a raiz deste disco então? A canção que deu origem ao resto?

[Pausa para pensar] Não me lembro, cara! Eu queria muito gravar a “Electric Fish” porque não é minha, né? Tenho algumas músicas que não são minhas. A “Electric Fish”, a “Dr. Sabe Tudo”, a “Debaixo do Pano”, a “Camelo Azul”, não são minhas. E eram faixas que já sabia que queria gravar e juntei. Acho que eu queria muito um disco que produzisse assim. Eu não queria compor para esse disco, sabe? É isso. Acho que o meu próximo disco já vem só de composições minhas, por exemplo. Mas como este foi um disco feito muito pela produção, já nem me lembro das canções, entendeu? Lembro que as canções chegaram por último, depois do desejo dessas músicas que já sabia que queria gravar e produzir. Isto é um disco que fala muito de produção, mesmo.

Há pouco estavas a falar de não ter letra e isso lembrou-me… Tens alguma música instrumental que ouças e ficas “esta é aquela música instrumental que adoro?”

Muitas. A “In a Sentimental Mood” [Duke Ellington e John Coltrane], a “Storm” [Godspeed You! Black Emperor], várias do Burt Bacharach. Gosto muito de música instrumental. De chamber pop, de jazz. Gosto muito.

Na descrição do teu primeiro disco no Bandcamp, recomendas que Mormaço Queima fosse acompanhado de “algo azedo e doce ao mesmo tempo”. O que recomendas como acompanhamento para este Me Chama De Gato Que Eu Sou Sua?

Meu deus, será que vou sempre recomendar isso? [Risos] Acho que recomendaria um Fitzgerald, um drink. Recomendaria um drink. Um Martini.

O disco tem um toque de glamour.

Tem, tem.

Acho que havia uma entrevista tua em torno do Little Electric Chicken Heart em que falavas que o disco tinha um toque de classe.

Eu falava que para mim o Little Electric Chicken Heart era um churrasco num antiquário [risos]. 

[Risos] Excelente citação.

[Risos] Já esse… Eu queria fazer um clipe num jet ski! Mas ainda não cheguei numa imagem desse disco. Quer dizer, na verdade, cheguei. São os tigres. As imagens estão meio que a falar por si nesse disco, sabe? Animal print, bitmap. É um disco que é meio glamoroso e punk ao mesmo tempo. Eu fiquei falando com a [Maria] Cau [Levy], que fez o projeto gráfico, e eu falava que queria algo punk e chique ao mesmo tempo, e ela dizia que era impossível fazer isso. A gente terminou o projeto e ela falou que ficou punk e chique [risos].

O disco continua muito punk nesse sentido.

É, porque sinto cada vez mais que sou isso. Me sinto rockeira e punk, mas não sou punk nem rock.

Mas em espírito és.

Exato. Acho que tem a ver com punk rock para mim, a estética, a energia. Sei lá.

O teu primeiro disco é mais punk e rock do que este.

Total, e mesmo assim não é.

Tocaste há pouco tempo em Portugal a solo, no Sunny Garden Festival, e agora vais tocar com a tua banda em Coimbra [1 de Novembro no Salão Brazil] e Lisboa [2 de Novembro, no Musicbox, como parte do Jameson Urban Routes], antes de ires em digressão pela Europa. Como é preparar um show de Ana Frango Elétrico e o que se pode esperar de um concerto teu?

Aí, meu deus. Vou confessar o que estou confessando para a galera. Gente, esse show vai ser maluquice porque nós só vamos ensaiar um dia com o guitarrista, no dia do show. Mas o que é trabalhar com Ana Frango Elétrico? É doidice! Porque mesmo quando a gente ensaia, toda a gente sabe que eu posso mudar o que for. Todo o mundo está preparado a fazer o que for. Neste caso, o espetáculo é reduzido. Nós vamos apresentar as canções de uma forma mais canção que no disco porque estamos em formato trio. Mas é assim, acho que eu vou viver a música. O meu show, mesmo quando é muito ensaiado, tem isso. Nenhum show meu é igual. O show de Coimbra vai ser diferente do de Lisboa, que vai ser diferente do de Paris, que vai ser diferente do de Londres. E mesmo se fosse uma tournée completamente ensaiada, seria diferente também porque comigo é assim, sabe? Para mim é isso. Show é show, disco é disco. Eu não fico a querer reproduzir. Gosto de fazer shows diferentes, de mudar forma, de solar, de fazer som. Porque para mim show tem a ver com jam, sabe? Isso talvez tenha a ver com o apreço que tenho por jazz, pelo improviso, de ver que as pessoas não estão automáticas, que não são robôs tocando. A gente está tocando, está-se ouvindo, interagindo. Quando um faz uma coisa, o outro responde. Então, acho que o meu show tem muito a ver com isso. E nesse caso aí, é exatamente isso.

É muito jazz e muito punk então.

É. Punk-jazz. Espero que gostem. Vai ser único e verdadeiro! [Risos]


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