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Jessie Ware

What's Your Pleasure?

Universal Music

Texto de Pedro João Santos

Publicado a: 04/07/2020

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Não houve nada que redimisse a Disco Demolition Night. A 12 de julho de 1979, 47 mil pessoas juntaram-se num parque de basebol, em Chicago, para um Woodstock do ódio; a vítima foi o disco sound, que dominou a cultura musical na segunda metade dos anos 70. Afinal, uma sobredose de felicidade e persistência rítmica (4 por 4, baby), às mãos de uma contracultura latina, negra e LGBT, nunca poderia respirar por muito tempo. Foi então que pilhas de vinil foram detonadas com explosivos, para o gáudio de intolerantes e potenciais piromaníacos. Mas um castigo para os ícones contemporâneos – Diana Ross, Sylvester e companhia – acabou por ser uma benesse para o futuro do disco. 

Em vez do declínio gradual a que todos os movimentos se destinam, o fim violento antecipou o final desse festim de Donna Summer e John Travolta – o que, ao evitar a saturação, lhe deu amplo terreno para voltar periodicamente. Na verdade, se pensarmos em Flashdance, “Thriller” ou Deee-Lite, este som nunca saiu dos escaparates, só evitou o rótulo. No despontar do milénio, serviu a narrativa do comeback: a Kylie Minogue do indie rock teve perna curta, regressando em 2000, envolta nos cromados house de Daft Punk e no cetim de Giorgio Moroder. Future Nostalgia, em 2020, fixou a estrela cadente Dua Lipa numa constelação de divas com cunho autoral. Disco com prefixo, “nu” de novo, um armistício entre os grooves palmeados e a modernidade pop dos anos 2010. 

Jessie Ware, londrina da soul electrónica, bate à porta ao lado, onde não faz tantas cedências. Os glaciares de Devotion, o seu álbum de estreia, foram derretendo sobre moldes de balada: primeiro no polido mas pouco substancial Tough Love (2012), depois no doméstico e exasperante Glasshouse (2015). Antes de se dissolver de vez no papel de parede, a electrónica voltou a estimular Ware, num álbum que lhe pergunta qual o seu prazer, e remete-o para o ouvinte. Está nas borboletas calisténicas que preenchem o refrão de “Save a Kiss”, uma corrida pelo clímax, respingada pelo mel de Robyn; dá-se nas massagens epidérmicas de “Adore You” e “In Your Eyes”. Fundamentalmente, tal como Glasshouse era resgatado pelos desvarios de “Midnight” e “Selfish Love”, What’s Your Pleasure? é o que acontece quando se desliza de ponta-cabeça noutra tangente febril.

A cerimónia de abertura é a alucinação dourada de um Studio 54 pré-evasão fiscal e cocaína. “Spotlight”, disco higienizado e orquestrado com o orçamento de um palácio barroco, é uma das canções do ano. O tributo a Chic, tanto em nome próprio como no estúdio com Norma Jean Wright, é a sinapse que a liga, seis faixas mais tarde, a “Step Into My Life”, onde o único pecado admitido é a luxúria. No intervalo, Ware aniquila purismos e inibições, ao lado de James Ford dos Simian Mobile Disco, Kindness ou Joseph Mount dos Metronomy. Nunca se abre tanto como na gigante faixa-título, uma sórdida cópula entre “Hot Stuff” e os primórdios dos LCD Soundsystem. Uma visão electro-suada e mal iluminada, sem oxigénio entre corpos – onde, sim, já se admite alguma neve – que entra em prolongamento na introspectiva “The Kill”.



Grande parte de What’s Your Pleasure? prova que o actual revivalismo disco pode ser errático: mesmo Ware se sente reticente em subscrever a um movimento onde cabe tudo (até, para alguns críticos, a house indigente de Lady Gaga). “Não é apenas disco. É [música de] dança, é house, é soul”, contou a Róisín Murphy, influência assente em mistelas disso tudo, como “Read My Lips”, que ostenta a perícia de Ware até nos momentos menos memoráveis. O coração de “Ooh La La” e “Soul Control” é ESG e Tom Tom Club, sob camadas de purpurina e fumo. Não é apenas disco, muito menos à custa das melodias sobrehumanas que fazem um álbum pop viver. E as letras? É uma discussão redundante. Durante 48 minutos, podemos jogar contra Ware, tentar adivinhar que outra metáfora ou lugar-comum vai agora desencantar para fornicar na pista de dança. Falar disto é inútil, como o demonstrou Glasshouse, bem abastecido de cuidados poemas sobre a família, sempre à boleia de refrões cronicamente franzinos. Não é melhor lermos-lhe os lábios, guardarmos-lhe um beijo, deixá-la dançar nos nossos olhos, etc., mas podermos cantar tudo isto a plenos pulmões?

Nos cinco minutos seguintes, dançamos sem o tapete que Ware decide tirar. Evocando a poderosa soprano Minnie Riperton, reconstrói o seu primeiríssimo single, “Les Fleurs”, de 1970, quando o ganha-pão de sopros e cordas ainda não era dar música às danceterias (só sete anos depois haveria Riperton de descobrir o disco). “Remember Where You Are” é o fim de um baile sumptuoso, quando se abrem as janelas. A orquestra serve a explosão de uma epifania e Ware canta o poder popular que se levanta no meio da praça, de quem dependemos para saber dirigir a raiva e comungar de um amor esquecido. 

What’s Your Pleasure? é capaz de abastecer os sedentos, os revoltosos e os que dançam no escuro do lar. Para um próximo prazer, Ware terá que resistir à tentação de repetir este, e talvez arranjar algo de novo para dizer. Ou não. Depende da quantidade de luz.


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