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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 12/06/2023

António Porém Pires, o supervisor musical da série, guia-nos pelos meandros musicais desta grande produção nacional.

A história musical de Rabo de Peixe, a série do momento da Netflix

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 12/06/2023

Desde que estreou na Netflix, a 26 de Maio, que Rabo de Peixe tem sido uma das séries de televisão mais comentadas em Portugal. Produção nacional a segunda da Netflix, depois de Glória (2021) —, inspira-se na história real de como meia tonelada de cocaína deu à costa da ilha de São Miguel, nos Açores, no ano de 2001. Os relatos de como o estupefaciente impactou a vida insular são pitorescos, e grande parte das doses foram mesmo dar à vila piscatória de Rabo de Peixe, uma das mais pobres da Europa, onde naturalmente contribuiu para o aumento exponencial do flagelo social da toxicodependência, das overdoses e do tráfico de droga.

A série baseia-se neste fenómeno verdadeiro, mas a partir daí o que conta é uma narrativa de ficção com um tom leve, jovial, pop, certamente divertido e com uma grande capacidade para entreter. Que o digam uns bons milhões de espectadores em todo o planeta. Embora a Netflix não divulgue dados de audiências, a produção chegou ao top 10 de diversos países, incluindo, claro, Portugal.

Uma das características que se distinguem na série e que contribuem para a tornar ímpar na história da televisão em Portugal, tendo em conta a qualidade da produção é a componente musical do projecto. Ao todo, foram usadas entre 40 e 50 músicas ao longo de sete episódios, sem contar com os segmentos com banda sonora original, da autoria do compositor Pedro Marques

Algumas são mais ornamentais e discretas, outras músicas assumem grande protagonismo aliás, existem momentos musicais que são fulcrais para o enredo, como quando a personagem de Carlos (interpretada por André Leitão) canta ao piano “A Little Respect”, na versão dos Silence 4, embora seja um tema original dos britânicos Erasure; ou quando Sandro G (interpretado por Romeu Bairos) aparece, enquanto micro personagem, para cantar “Eu Não Vou Chorar” e “Festa” numa discoteca onde as personagens principais dançam e convivem. Aliás, uma delas, Rafael (Rodrigo Tomás), aposta directamente no potencial do rapper açoreano criado nos EUA, e que naquela altura regressou ao arquipélago, tornando-se um fenómeno e um símbolo local.



Para contar a história musical de Rabo de Peixe, o Rimas e Batidas entrevistou o supervisor musical da série, António Porém Pires, numa conversa feita por Zoom, entre Portugal e o México, onde o português se encontra a viver (e a trabalhar). No fundo, António Porém Pires tinha a seu cargo tudo aquilo que tinha a ver com música neste projecto. 

“O supervisor musical é a pessoa que está presente desde o guião, a rever as músicas e opções musicais, e que faz a ponte entre o realizador e o resto da produção a parte de negociar os direitos e os contratos. É preparar tudo, fazer uma selecção e uma pesquisa, para dar alternativas à produção e ao realizador”, resume a sua função, antes de explicar que ainda é algo “recente” em Portugal, visto que muitas vezes estas funções estão repartidas por outros profissionais na grande maioria das séries e filmes portugueses. Aliás, António Porém Pires tem um vasto currículo no meio cinematográfico, mas sobretudo enquanto responsável pela mistura de som (o que acabou por também fazer aqui). Já tinha trabalhado em Glória como supervisor musical, e foi o editor de vídeo da série, Marcos Castiel, com quem tinha colaborado nesse projecto, quem o recomendou para assumir também este trabalho em Rabo de Peixe.

Rabo de Peixe foi relativamente tranquilo. Quando tens uma história que tem um lugar no tempo e no espaço muito definido, é relativamente fácil… As coisas começam a surgir-me de uma forma muito natural. Leio o guião, sei que é em 2001, eu nessa altura tinha mais ou menos a idade que têm os protagonistas. Então a relação era muito directa. Lembro-me do que é que se ouvia naquela altura, o que é que aquela geração ouvia naquela altura, porque eu tinha essa idade. E referi isso ao Augusto Fraga [criador da série]: ‘Isto é incrível porque me lembro de tudo’. Lembro-me do que passava na MTV, das coisas que eu mais gostava…”

Houve uma tentativa de inserir quase sempre música da altura, que já tivesse sido lançada em 2001, mas António Porém Pires não vê problemas em relação às excepções que tiveram de abrir para aumentar o leque de opções e incluir canções que só veriam a luz do dia uns tempos mais tarde. “Às vezes não temos de ser puristas, ainda mais com todos os constrangimentos que já temos de budget. Se a sequência funciona e sente-se que é a vibe certa…” 

Esse é o ponto essencial para seleccionar uma música, explica. “Para esta função é importante conhecer música, mas muito mais importante é ter sensibilidade de ritmo, de tom. Tens que imaginar se funciona, ou fazes uma selecção e experimentas com a cena na altura da edição, em busca de algum sentido.” Nalgumas cenas, para ajudar a definir o tom da história e mesmo as emoções das personagens, a música escolhida faz toda a diferença. “Há sequências que vês claramente que foram filmadas para ter música.” 

Por vezes, a música já foi escolhida antes, mas muitas vezes essa decisão só acontece no fim, na fase de pós-produção, quando todas as gravações já terminaram e a série está a ser trabalhada na sala de edição. E mesmo aquelas músicas que são escolhidas previamente não são certas. Afinal, é sempre necessário negociar com todas as partes envolvidas, os detentores dos direitos e os responsáveis pela produção, para que haja aprovação de todos os lados.

António Porém Pires descreve-o como um “processo lento e tortuoso”, por vezes “frustrante” quando não se consegue obter os direitos para usar determinada canção que encaixava na perfeição naquela cena. E em produções relativamente grandes como Rabo de Peixe os desafios, ao contrário do que poderia parecer, são ainda maiores.

Já no Glória tinha tido essa experiência. Assim que metes a Netflix ao barulho, as coisas todas complicam-se um bocado. Porque eles querem os direitos para sempre, e as bandas vêem Netflix e pensam que é um contrato milionário. A verdade é que a Netflix em Portugal é a que produz mais caro, mas também não é assim um budget gigante… Depois há cláusulas. No Glória tive de batalhar para que tirassem uma cláusula que nos estava completamente a estrangular o orçamento, e a Netflix lá acedeu. Porque eles são muito burocráticos e querem os direitos para sempre, para este planeta e para os outros que viermos a descobrir. Eles querem o compromisso de que se quiserem ter esta série no ar durante 20 anos, não vão ter problemas. E isso complica um bocado a negociação”, explica, sublinhando que o trabalho de clearance ficou sobretudo do lado da produtora, a Ukbar Filmes.

Muitas vezes, legalmente, as músicas pertencem aos seus autores e às respectivas editoras. É preciso negociar com todos, e geralmente existe uma cláusula intitulada “Most Favoured Nation” que implica que todos recebam por igual. “Se chegas a um artista e ele diz-te ‘mil euros e tens a música’, vem a editora e pede 2000, também tens que dar ao artista 2000. Ou seja, tens sempre de equiparar o valor mais alto. Não podes dar mil a um e três mil a outro. O que protege os artistas, ou vice-versa. Às vezes a editora quer vender ao desbarato, mas para o artista aquilo não deixa de ser um valor e um bem importante para ele, e aí o artista pode pedir mais e a editora também fica a ganhar mais. Às vezes há três autores que dizem que sim, um que diz que não, e coisas do género. Muitas vezes tens de falar com as editoras locais e depois elas é que comunicam lá para fora.”

Cada caso é um caso e o mais importante, garante o supervisor musical de Rabo de Peixe, é começar a negociar cedo. “Quando se deixa para a última, a urgência sai mais cara. E é um processo lento. Às vezes é muito frustrante porque tens de entrar muito cedo a negociar, e pode demorar três meses até assinares um contrato. Porque só com um valor é que podes fazer o teu orçamento. Então tens de pedir valores, dizeres que queres a música, mas não podemos assinar logo porque ainda por cima nestes processos isto tem de passar pelo realizador, pela produção, pela Netflix e sabe Deus quem…”

Só com a tal ideia de valores, que implica negociações e uma “ginástica” constante, é que conseguem fechar um orçamento António Porém Pires diz que não pode revelar valores e terem uma ideia mais aproximada do que é que vão conseguir incluir na série. “Havia coisas muito caras, mesmo. Nada de louco, nada de Beatles, mas houve coisas que bombaram muito na altura e os valores eram proibitivos. Muita coisa ficou de fora. Temos uma ou duas músicas por episódio que não entraram.” Há sempre vários percalços a acontecer e este trabalho desenrola-se do início ao fim de uma produção.

“Chegou a acontecer ter uma música para a rodagem, para uma cena específica, e a cena salta. Chegou à Netflix e a cena foi embora, quiseram tirá-la. E os músicos ficam: ‘então e a música?’ A cena caiu, por isso a música caiu também… Às vezes ainda tento reciclá-la, ver onde é que posso pôr esta música, mas há situações em que não dá.”

Normalmente, explica, o padrão é adquirir-se os direitos para usar um minuto de determinada música. Mas pode-se usar menos ou até uma música inteira. Certo é que tem de ficar tudo estipulado, por escrito, em relação a cada música, sobre como e onde é que vai ser utilizada. António Porém Pires usava uma folha “gigante” de Excel para registar todas as informações necessárias para cada uma das canções.

Por exemplo, o supervisor musical da série recorda-se que a ideia de usar “Walkin’ On The Sun”, dos Smash Mouth, surgiu logo na leitura de guiões, antes do início da rodagem. “Lembro-me de que mandei por mensagem a música ao Marcos Castiel, porque estava a ser lida a parte em que estão a retirar os fardos de coca do mar [risos]. E ele fez-me sinal a dizer: para aqui, é isto. Essa está desde a leitura do guião. E ficou muito bem. O tom é que tem de estar certo. Tem um quê de trágico-cómico, um ritmo fixe, momentos que se prestam muito a acompanhar um slow-motion, e era uma coisa de época. Foi um hit na altura. Cumpria todos os requisitos.”

Noutros casos, a solução milagrosa chegou depois de uma situação de “desespero”, em que não sabiam que música encaixar. “Fizeram uma sequência em que eu já tinha pensado numa música para aí. Mas depois a música já tinha sido posta noutro lado, e depois não ficou em lado nenhum, que era a abertura do episódio 4. Eu estava a tentar tudo, a experimentar na edição, e de repente deu-me assim uma coisa: e se eu tentasse algo mais Rapture, Kasabian, The Faint? Meti a ‘Club Foot’ e foi ‘uau, é isto.’”



De Sandro G a Silence 4, a música portuguesa em Rabo de Peixe

No caso em que uma série não deseja usar a gravação de uma canção, mas antes fazer uma nova versão de uma canção já existente, a negociação só acontece com os autores do tema. Foi precisamente aquilo que se sucedeu com os Silence 4 e “A Little Respect”, quando Carlos canta ao piano (por duas vezes) a faixa lançada em 1998, uma cover dos Erasure, de um tema originalmente editado dez anos antes. Foi mesmo o ator André Leitão quem gravou o tema, sendo que o músico Daniel Lima, dos HMB, deu uma ajuda preciosa nesse processo. 

Outro momento importante é o da inclusão de Sandro G, que sempre esteve presente no guião da série. “É uma figura que tinha de estar… por tudo. Tinha que estar na série, não podia não estar. Pela época, porque viveu aquilo… Então desde o início que tínhamos o Romeu [Bairos] para fazer de Sandro, e ele está cheio de talento. A negociação com o Sandro foi da parte da produtora, mas foi tudo relativamente tranquilo. Só tivemos que refazer os playbacks porque ele não tinha isso, e eu queria que fosse mesmo real, não queria que o Romeu tivesse a fazer playback do Sandro. Se o Romeu vai fazer de Sandro, prefiro que seja ele a gravar. O que tu ouves na série é o Romeu a cantar.”

Já os instrumentais tiveram de ser recriados. O produtor Mikkel Solnado esteve encarregue desse processo e também da gravação dos coros. “E depois, às tantas, aconteceu uma coisa muito bonita, quando o Romeu pegou na viola da terra e fez uma versão do ‘Não Vou Chorar’. O Augusto [Fraga] disse logo que tínhamos de pôr aquilo e claro que sim, foi o que metemos na abertura do episódio 5. É uma versão super bonita. O ‘Ilhas de Bruma’ também é o Romeu a cantar, que entra no final do episódio 2. Tivemos sorte porque nos tocou gente com muito talento e isso torna tudo mais fácil.”

Desde o início que existia a missão de incluir música portuguesa na série, mas queriam sobretudo coisas da época e que tivesse um cariz internacional, que não soasse propriamente a algo que só poderia ter sido feito em Portugal. “E não há muita. Da época então… Tinhas os Silence 4, os Hands On Approach, os EZ Special, os Wraygunn que vêm um bocado depois… Os Tédio Boys eram muito agressivos. Usámos Old Jerusalem, mas mesmo da época não há assim muitas bandas, não havia muitas alternativas nesse sentido, que correspondessem a todos os critérios. Que fossem pop, que fosse cantado em inglês para a questão da internacionalização, que tivessem a onda da série…”

Os Wraygunn, que na ótica de António Porém Pires “têm muito o ADN da série”, acabaram por entrar com os temas “Keep On Prayin’” e “Soul City”. Este último aparece na rusga policial do episódio 2, para onde estava difícil escolher uma música que fizesse sentido.

Para preencher os espaços sonoros, a banda sonora original ocupa uma função muito importante. Aí foram as composições de Pedro Marques que ajudaram a construir o ambiente de Rabo de Peixe e o tom das respectivas cenas. “Mandámos ao Pedro algumas sequências, ele fez uns scores, e foi incrível trabalhar com ele. É muito talentoso, muito disponível, humilde, providencial, foi um prazer trabalhar com ele. Facilitou muito o processo. Tínhamos pouco tempo de score por episódio e só assim foi possível terminar com esta qualidade. Conseguimos encontrar uma linguagem e foi muito graças à entrega e disponibilidade do Pedro. Nem todos os compositores pensam em narrativa, e às vezes é importante ajudar a definir o arco, explicar porque é que vai ser importante… porque mais à frente estas duas personagens vão aproximar-se, etc. São coisas muito subtis, mas para mim têm muito significado e conceptualmente dão solidez à série.”


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