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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 21/10/2025

Dois sopristas em evidência.

James Brandon Lewis e Yazz Ahmed no Seixal Jazz’25: sons plurais numa margem voltada a sul

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 21/10/2025

Na margem sul do Tejo há um festival de jazz que este ano conheceu a sua 26ª edição, marca admirável de longevidade que traduz uma história funda e nobre. Dizem-nos os seus responsáveis através do programa desta edição que o Seixal Jazz é “idealizado e executado com paixão pelo jazz, pela música e pela cultura, numa aposta simultânea num programa para os amantes e conhecedores deste estilo musical, mas também para públicos e músicos das novas gerações”. E prossegue-se afirmando que “o festival assume a divulgação deste estilo musical em toda a sua diversidade, representando o passado e o futuro do jazz, na sua multiplicidade estética e artística, eléctrica e acústica, de intérpretes e de instrumentos, de inspirações e de influências”. Essa declaração programática manifestou-se, nesta edição completada no passado dia 18, num cartaz que alinhou, numa primeira linha de concertos no Auditório Municipal do Fórum Cultural do Seixal, os nomes das Artemis, de Fred Hersch, do Carlos Bica Quarteto, do James Brandon Lewis Quartet, de Yazz Ahmed e ainda do Tyn Wybenga Brainteaser Ensemble, e também, no Seixal Jazz Clube, de Paira, Godua, Maria Carvalho Trio, António Carvalho Quinteto, Hugo Lobo Trio e Marta Rodrigues Quinteto. Um cartaz diversificado, de facto, com nomes estabelecidos e emergentes, nacionais e internacionais. Plural, portanto. Como se impõe nesta era.

Agendas muito carregadas, porém, obrigam a escolhas: vimos as Artemis em Angra do Heroismo, estivemos na estreia do Carlos Bica Quarteto 11:11 no Jazz no Reservatório, no Porto, e por isso mesmo deste programa proposto no Seixal “só” assistimos aos concertos de James Brandon Lewis e Yazz Ahmed, com incursões rápidas (limitadas pela logística do regresso à margem norte do Tejo) pelo Seixal Jazz Clube para assistir às prestações do quinteto do baterista António Carvalho e do trio do pianista Hugo Lobo.

Já tínhamos assistido a uma fulgurante passagem deste quarteto de James Brandon Lewis pelo Jazz em Agosto, em 2021, pelo que a perspectiva de reencontrar estes músicos se afigurava entusiasmante, sobretudo tendo em conta a bagagem que têm acumulado graças a uma intensa agenda de edições — Molecular (2020), Code of Being (2021), Molecular Systematic Music – Live (2022), Transfiguration (2024) e ainda, claro, Abstraction is Deliverance (2025) — e de concertos. 

O mais recente álbum de James Brandon Lewis, Abstraction Is Deliverance, marca mais uma etapa nos percursos ascendentes do saxofonista — que se tem evidenciado igualmente noutros contextos e com outros ensembles — e do quarteto, duas entidades que não têm realmente parado de evoluir, firmando os seus respectivos lugares numa tradição longa, mas nunca enjeitando os mais desafiantes estímulos do presente. Neste mais recente registo, o quarteto explora diferentes cadências, umas mais meditativas e poéticas, outras mais próximas de uma fonte blues, outras ainda que implicam maior dispêndio de energia rítmica, se bem que uma toada mais baladeira seja dominante. E o que resulta evidente é que Lewis tem sabido equilibrar uma óbvia reverência à tradição do sax tenor com uma não menos evidente vontade de expansão da sua linguagem. Qualidades que justificam as distinções que lhe foram atribuídas pela maior academia de sempre reunida pela histórica revista norte-americana DownBeat (e que o signatário destas linhas também integrou tendo, aliás, contribuído directamente com os seus votos para que Lewis recebesse os títulos de Saxofonista Tenor do Ano e Artista do Ano).

Bem disposto e com baterias carregadas ao máximo, Brandon Lewis fez questão de agradecer ao público que praticamente esgotava o Auditório por continuar a “apoiar a música ao vivo”, exclamando depois, não sem alguma graça: “Não permitam que os robôs tomem conta disto”. De facto, a música que James Brandon Lewis apresentou juntamente com o pianista Aruán Ortiz, o contrabaixista Brad Jones e o baterista Chad Taylor soou profundamente humana, altamente emocional e completamente dependente das ligações interpessoais estabelecidas entre todos os músicos. É a isso que o saxofonista se refere quando fala sobre o seu conceito de Molecular Systematic Music, um sistema complexo que se pode resumir de forma algo simplista como uma auto-análise de cada músico que precisa de levar em linha de conta a sua formação, as suas influências e a sua própria experiência para a partir dessa sólida base poder projectar a evolução da sua arte e forma de expressão. E se no caso de James Brandon Lewis são evidentes as marcas dos seus mestres — de John Coltrane a David S. Ware, que foi, aliás, homenageado logo no arranque da performance com a interpretação do tema “Ware” —, não menos evidente é o seu tom e a sua sofisticada linguagem pessoal, fruto desse estudo constante do seu mais fundo ADN e de um auto-imposto processo evolutivo.

No Seixal Jazz, o quarteto de James Brandon Lewis apresentou-se com uma sofisticação notável e uma coesão que só uma longa estrada em conjunto permite atingir. O saxofonista, alternando momentos de mais contenção poética com controladas explosões de energia extática, encheu o espaço com o seu patenteado som musculado e magnético. Brad Jones fez do contrabaixo um centro gravitacional, explorando linhas profundamente expressivas que tanto sustentavam como desafiavam os restantes companheiros. Chad Taylor, sempre inventivo, transformou a bateria numa generosa paleta de ritmos e cores, revelando uma capacidade notável de se encaixar em diferentes cadências com total autoridade e plena imaginação. Já Aruán Ortiz voltou a exibir o seu amplo pianismo, brilhando nos subtis apontamentos melódicos e nas demonstrações intensas mas nunca desnecessárias de virtuosismo, desenhando contrastes luminosos que ampliaram a narrativa musical colectiva. É bem verdade que cada músico teve o seu momento de destaque, mas foi na força da linguagem partilhada, dinâmica e madura, que se evidenciou a verdadeira dimensão do concerto. Os generosos aplausos finais foram mais do que merecidos, como se compreende.

Prova da pluralidade do programa proposto por esta 26ª edição do Seixal Jazz é a sucessão no cartaz dos concertos do quarteto de Brandon Lewis e do ensemble de Yazz Ahmed. Já vimos e escutámos a trompetista em Ponta Delgada e em Braga, mas a edição recente de A Paradise in the Hold, o seu quarto registo, mais do que justificava este reencontro. 

Foi exactamente esse mais recente trabalho de Yazz Ahmed que serviu de base ao concerto no Seixal Jazz. Trata-se de uma das mais conseguidas explorações da artista da sua dualidade britânico-bahrainita e da intersecção entre o jazz contemporâneo e as tradições árabes. Recuperando influências como a música polirrítmica dos mergulhadores de pérolas e a poesia dos círculos de mulheres em Bahrain, o álbum entrelaça escalas de tonalidades árabes com grooves vincados que são inteiramente devedores da contemporaneidade. Os arranjos são generosos, de grande dimensão orquestral e evidenciando uma arquitectura distinta em que o trompete de Ahmed se destaca com lirismo e virtuosismo, mas realmente se engrandece no diálogo com os restantes elementos. Em simultâneo, há no álbum um pulsar físico e uma profundidade contemplativa que convida à imersão. Pode dizer-se que essas diferentes dinâmicas ficaram igualmente bem patentes no concerto.

Secundada por uma excelente secção rítmica com Ralph Wyld no vibrafone, David Mannington no contrabaixo e Jonathan Davis na bateria, a prestação de Yazz Ahmed no palco do Seixal Jazz foi uma navegação vibrante entre mundos — entre o Bahrein da sua infância, a Londres da sua maturação e o chipset electrónico que sustém o pulsar do seu som contemporâneo. Alternando com naturalidade entre trompete e fliscorne — instrumento adaptado que lhe permite explorar microtons e escalas árabes — Ahmed fez soar os seus sopros com uma expressividade tão lírica quanto instintiva, ora suave e sustida, ora incisiva e urgente. A paleta tímbrica alargou-se pela electrónica: delays, reverbs, efeitos de sustentação e distorção subtil ampliaram o som do instrumento, transformando cada declaração de frase em vívido discurso sonoro. Comunicativa, Ahmed não se escusou a dirigir-se ao público, procurando explicar conceitos na base do material que ia revisitando: dedicou uma peça às vidas perdidas no mar, nas travessias do Mediterrâneo e do Canal da Mancha, o que trouxe para o palco uma carga emocional imediata. Dessa forma, o seu som fez-se memória e testemunho. Noutro momento regressou à sua “primeira casa”, o Bahrein, com rítmicas inspiradas na tradição dos mergulhadores de pérolas ou nos círculos de mulheres que cantam no feminino. E com tudo isso, o quarteto rendeu-se ao seu código: o vibrafone teceu filamentos de harmonia que deram densidade ao som colectivo, o baixo eléctrico sublinhou a sofisticação do impulso rítmico e a bateria ondulou entre diferentes cadências com assertividade plena, oferecendo leveza e fluidez à música apresentada. Tudo para que as histórias a que Yazz Ahmed oferece uma pessoalíssima banda sonora possam ressoar da melhor maneira nas nossas imaginações.


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