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Fotografia: Fernando Resendes/Teatro Micaelense
Publicado a: 05/11/2021

Em terras açorianas com notas azuis no ouvido.

PDL Jazz’21 – Dia 1: Yazz Ahmed, uma inspiração para o futuro

Fotografia: Fernando Resendes/Teatro Micaelense
Publicado a: 05/11/2021

Yazz Ahmed chegou a São Miguel antes do trio de músicos que ontem a acompanhou na sessão de abertura do PDL Jazz, novo festival que ocupa o Teatro Micaelense, em Ponta Delgada, Açores. O propósito foi a masterclass que assinou para alunos do conservatório local, uma experiência que, confessou ela ao Rimas e Batidas durante o jantar, foi “enriquecedora”. Percebe-se, não apenas no seu discurso durante entrevistas, como a que nos concedeu, mas também e sobretudo nas ideias que expressa através da sua música, que a trompetista e fliscornista britânica que tem raízes no Bahrain tem na sua condição feminina uma fonte de força, anímica e criativa. Ahmed, que adorna a capa do número corrente da revista Jazzwise, é uma incrível executante, mas não menos dotada líder de ensemble (e ela já se apresentou com formações bastante dilatadas) e ainda uma brilhante compositora. Ou seja, uma inspiradora figura que é justo símbolo de novos ventos no jazz moderno. Faz pleno sentido, por isso mesmo, atribuir-lhe a noite de abertura de um evento que se quer projectar no futuro como o PDL Jazz. Distinção a que correspondeu com uma tão arrebatadora quanto brilhante apresentação.

À chegada ao Teatro Micaelense era fácil perceber que por estes dias o jazz ocupa toda a energia do espaço: logo no foyer, os presentes encontravam uma banca da loja local La Bamba com uma cuidada selecção de discos de vinil para venda (e no final do concerto a própria Yazz Ahmed sentou-se numa mesa a autografar cópias em CD e vinil dos seus dois últimos álbuns), bem como duas vitrines com espólio da Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada que exibiam dezenas de publicações, nacionais e internacionais, dedicadas ao jazz. 

Importante, igualmente, mencionar a mostra As Expressões do Jazz patente até ontem no Centro Comercial Parque Atlântico, recolha de trabalho fotográfico da autoria de Fernando Resendes, fotógrafo do Teatro Micaelense desde 2006, que organizou um conjunto de retratos que foi realizando ao longo dos anos sobretudo no âmbito do Jazzores, incluindo expressivas imagens de históricas figuras como Bernardo Sasseti, Milford Graves, Dr. Lonnie Smith, William Parker ou Henry Grimes. Como explica o autor das fotos que ilustram este texto, “o jazz proporciona imagens diferentes ao nível da expressão corporal e emocional dos músicos, se formos atentos!”. Pura verdade. “A hesitação, o silêncio, as frases que provocam “conversas”, são momentos de grande expressividade que levam a que uma fotografia não seja só mais um instante, mas sim o instante em que algo acontece na esfera emocional de quem está a tocar, por via de uma atmosfera criada em torno de uma visão, uma memória ou um sonho”, exclama, uma vez mais, o fotógrafo, ele mesmo artista, ajudando também a entender o que aconteceu ontem em palco com a intensa apresentação de Yazz Ahmed.

Acompanhada por um trio de excelentes músicos – o vibrafonista que é seu “cúmplice” frequente Ralph Wyld e ainda David Manington no baixo e Martin France na bateria – a ultra-comunicativa Yazz Ahmed apresentou material retirado dos seus dois últimos álbuns, La Saboteuse, trabalho de 2017 editado na Naim Jazz, e Polyhymnia, registo mais recente, de 2019, que teve carimbo editorial da Ropeadope. Ao longo de mais de hora e meia de concerto, alternando entre o trompete e o fliscorne e recorrendo pontual, mas de forma bastante interessante a um processador de efeitos e a pedais, Yazz brilhou com uma musicalidade funda, expressiva, bastante melódica e poética, mas com espaço para derivas mais abstractas, soando sempre expansiva e envolvente, como se a música que produz fosse um convidativo manto de veludo. Não que o seu jazz tenha algo de soft, muito pelo contrário, mas porque ao cruzar o imenso espaço que se estende entre Miles Davis e Jon Hassell, por um lado, e Rabih Abou-Khalil ou Ibrahim Maalouf, por outro, Ahmed deixa bem claro o poder da imaginação, a capacidade de desenhar perante os nossos ouvidos novos mundos, plenos de cor, harmonicamente representada neste concerto não apenas através do seu constante e intrincado diálogo com o vibrafone de Wyld, mas igualmente com o ultra-melódico baixo de Manington.

Com um acentuado pendor rítmico expresso sobretudo no sofisticado baterismo de Martin France (um par de horas antes, em conversa telefónica, o baterista dos Ill Considered, Emre Ramazanoglu, elogiava-o afiançando tratar-se de um dos melhores executantes do instrumento da actualidade), um elemento não apenas propulsor, mas igualmente capaz de dinâmicas expressivas que mantiveram a música em permanente sobressalto, o concerto parece ter concentrado o tempo e contrariado o avanço dos ponteiros do relógio, sinal habitual de excelência.

Em peças de Polyhymnia como “Lahan al-Mansour”, “2857” e “Deeds Not Words”, mas também de La Saboteuse como o tema título, “Jamil Jamal” ou ainda “The Lost Pearl”, Yazz Ahmed explorou toda a riqueza cromática da sua música, erguendo pontes entre múltiplos mundos e culturas e ainda assim soando sempre “em casa”. A trompetista falou bastante com o público, explicou de onde vinha a inspiração dos temas – como no caso de “Dawn Patrol”, peça escrita a convite da Adult Swim para responder ao desafio de pensar em “jazz para o século XXI” ou “Whispering Gallery”, que pode bem já antecipar edições futuras, trabalho para já inédito que se inspira num espaço acústico particular dentro da Catedral de São Paulo, em Londres que a artista documentou em jeito de gravação de campo com o seu próprio telefone – e abriu-nos de forma generosa as portas para o seu fascinante mundo criativo. Sabemos que há novas obras e edições a caminho, e por isso mesmo este concerto serviu para confirmar de forma absolutamente clara que o seu nome é indissociável do futuro do género que decidiu abraçar. Venha de lá 2022, então.

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