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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 26/10/2021

Jazz (com filtro árabe), psicadelismo e feminismo.

Yazz Ahmed: “Há alturas em que acredito que estamos a fazer progressos, mas depois sou confrontada com sexismos…”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 26/10/2021

O trompete, o fliscorne, a composição e a vontade de cruzar culturas são as ferramentas que Yazz Ahmed tem usado para erguer o seu próprio espaço no vasto panorama do jazz contemporâneo. Com ascendência britânica e bareinita, Ahmed compreendeu que assumir as suas particulares raízes culturais poderia ajudar a sublinhar o carácter único da sua música. Deve entender-se, portanto, de forma bastante directa o título do seu álbum de estreia como líder, Finding My Way Home, lançado há já uma década.

Ahmed lançou entretanto os trabalhos La Saboteuse na Naim Jazz em 2017 e Polyhymnia, o seu álbum mais recente, em 2019, através da Ropeadope. Ambos mereceram distinções por parte de vozes credíveis dentro do universo do jazz, com o primeiro a ser apontado como Álbum de Jazz do Ano pela revista Wire e o último a merecer idêntica classificação por parte da Jazz FM. este seu trabalho mais recente distinguia-se também por resultar de uma declarada vontade de homenagear grandes feministas como Rosa Parks, Malala Yousafzai, Ruby Bridges, Haifaa Al-Mansour, Barbara Thompson ou as sufragistas. No discurso da artista, esse cuidado com a afirmação de um lugar e de uma perspectiva feminina no mundo passa com grande clareza e elegância, mas é a sua música que lhe tem valido os mais sonoros aplausos. A conceituada Downbeat descreveu-a como “uma das vozes mais criativas do jazz”.

Yazz Ahmed apresenta-se ao vivo no Teatro Micaelense, em Ponta Delgada, nos Açores, já no próximo dia 4 de Novembro, estando integrada no cartaz do PDL Jazz 2021. Ao seu lado, em palco, estarão Ralph Wyld, vibrafone, David Manington, baixo, e Martin France, bateria, um quarteto experimentado que a tem acompanhado nos mais variados contextos e latitudes. E prometido, via conversa Zoom com o Rimas e Batidas, está o levantar do véu sobre novo material a lançar em 2022.



Quer começar por falar sobre a banda que escolheu para a acompanhar?

Eu vou em formato de quarteto, que é composto por Dave Manington, que toca guitarra-baixo, o Ralph Wyld, que toca vibrafone, o Martin France, na bateria, e eu [risos].

E quanto a repertório? Está a pensar tocar coisas novas ou vai revisitar os discos já lançados?

Vai ser uma mistura entre temas do La Saboteuse, do Polyhymnia e algumas canções novas. Uma delas vai ser lançada no próximo ano, por isso vai dar para espreitar já um pouco.

Quando fala em editá-la no próximo ano, refere-se a ela como parte de um novo álbum?

Vai integrar um EP, todo ele feito de música inspirada na natureza e que eu escrevi durante a pandemia. Vou tocar um desses temas. Quanto ao EP, tenciono que ele saia algures no início do ano. Depois disso virá o meu próximo álbum, sobre o qual falaremos numa outra altura [risos].

Mas vamos voltar atrás no tempo: o que é que a atraiu no trompete? Eu sei que o seu avô também o tocava, mas não deixo de pensar que é um instrumento que raramente vemos a ser escolhido por uma rapariga jovem.

É verdade. Quando a minha mãe me trouxe ao mundo, ela nunca quis que eu me tornasse num certo estereótipo de rapariga. Ela sempre me encorajou a ser livre e nunca me forçou a gostar de alguma coisa em particular. Por isso, eu sempre tive esta mentalidade de que um trompete, por exemplo, podia ser para qualquer pessoa. Nunca me deparei com essa questão, de achar que fosse um instrumento de menino. Acho que se pode dizer que era um bocado iluminada nesse sentido, por não ter esse tipo de ideias pré-concebidas dentro de mim. Isso foi uma das razões. Mas é claro que há também a influência do meu avô. Vê-lo tocar trompete sempre foi uma coisa tão maravilhosa. Eu amo o som do trompete. O meu avô Terry punha-me a tocar imensos discos de jazz e eu sempre dei mais ênfase ao som dos trompetes. Há também aquele lado de criança inocente que se deixa apaixonar por aquele brilho do próprio instrumento [risos].

É quase uma peça de joalharia, não é verdade?

Exactamente [risos]. Todo ele é muito precioso.

Mas, a certa altura, deve ter-se questionado quando percebeu que ouvia sobretudo trompetistas masculinos nesses discos…

Eu questionei-me sobre isso. Mas só mais tarde é que comecei a pensar mais a sério no assunto, quando me tornei mais ciente da minha identidade. Tenho memória de ter notado isso, essa falta de representatividade feminina na música, algures durante a minha adolescência, quando estava a tirar o meu GCSE em música, que equivale ao ensino secundário. Eu lembro-me de ver um poster com vários compositores clássicos e a maior parte deles eram homens europeus. Aquilo deixou-me confusa. “Onde estão as mulheres? Tem de haver mulheres a compor música, certo?” Fez-me até duvidar de mim mesma e pensar que, se calhar, as mulheres não eram assim tão inteligentes para serem compositoras. Achei que não tivessem essa habilidade. Mas isso foi algo com o qual só me debati mais tarde, até porque quem me dava aulas de trompete era uma professora e isso ajudou-me a ignorar essa coisa, de que os melhores trompetistas de sempre tinham sido homens.

A sua música — muito criativa, devo dizer — integra as raízes da sua cultura num contexto muito jazzístico. Esse diálogo tem sido constante desde o início do jazz, que funciona como uma ponte para juntar pessoas que vêm de diferentes experiências. Consegue identificar-me artistas do passado que a tenham influenciado a explorar os limites do jazz e a levá-los ao encontro das suas próprias origens?

A pessoa que teve mais impacto na redescoberta da minha herança mista foi o Rabih Abou-Khalil, um artista libanês tocador de alaúde. Foi através da música dele que tive a minha introdução ao jazz de fusão com a tradição do Médio Oriente. A música dele recai mais sobre esse lado do Médio Oriente e isso encheu-me de curiosidade e inspiração, ao ponto de eu me questionar: “como é que eu posso fazer isto? Como é que eu posso misturar essas minhas raízes, a música que o meu avô me deu a conhecer e que eu amo e todo o legado do jazz britânico e americano?” Isso provocou uma faísca ao nível da inspiração. Eu sempre tive curiosidade em relação à evolução do jazz. O jazz soa diferente em todos os países e eu adoro isso. É uma característica muito interessante do género.

Durante o processo que a levou a mergulhar na música árabe, houve algo que a levasse a mudar a forma como aborda o instrumento?

Sim. Creio que a minha forma de tocar é uma consequência disso. Eu ouço uma grande variedade de trompetistas. Ouço muito Ibrahim Maalouf, que mistura esses dois géneros e tem sido uma referência para aquilo que eu faço. Mas também ouço gente como o Jon Hassell ou o Kenny Wheeler. Na formação em jazz, tu aprendes licks, padrões que funcionam em determinadas sequências de acordes, entre outras coisas que facilmente te fazem soar a um músico de jazz. Durante o longo percurso que fiz para encontrar a minha própria voz, eu afastei-me de tudo isso e tentei tocar com um cunho mais pessoal. Uma espécie de resposta emocional. Como se eu tivesse a contar uma história ou a reagir a algo. É meio como estar a ter uma conversa. Tento ser o mais livre possível na forma como penso e como toco. Particularmente quando estou a improvisar. Por isso, sim, creio que a forma como abordo o trompete mudou consoante o meu desenvolvimento.

Eu li que concebeu um fliscorne especial que lhe permite alcançar notas diferentes.

É verdade. Eu fui aceite num programa dedicado a compositores emergentes da London Symphony Orchestra, chamado Soundhub. Foi-me pedido para escrever uma peça musical para um quinteto e eu queria explorar os quartos de tom, que são uma das características da música árabe. Sempre quis tocar essas notas mas não o consigo fazer no meu trompete. Às vezes tento mas não soa muito bem. E eu sabia que existem trompetes capazes de tocar quartos de tom mas nunca ouvi falar de um fliscorne capaz de o fazer também. Então fui ter com o meu fabricante de instrumentos e pedi-lhe para me fazer um fliscorne com quartos de tom. Ele nunca tinha feito um antes e o processo foi à base de tentativa/erro. Muita coisa correu mal. Mas quando lá chegámos, acabou por sair um instrumento lindíssimo. Creio que escrevi já três ou quatro peças para este instrumento em específico.

Vai trazê-lo consigo para os Açores?

Não desta vez [risos]. Talvez no futuro.



Por ser uma mulher compositora de jazz, tem a oportunidade de abordar estes problemas de género, tal como sucede no Polyhymnia, em que procurou elevar o talento feminino. Sente que neste momento, quase chegados a 2022, esta ainda é uma batalha que ainda precisa de ser travada?

Claro que sim! Há alturas em que eu acredito que estamos a fazer um grande progresso, mas depois sou confrontada com sexismos de alguma forma… Nem sei. Acho que será muito difícil de educar as pessoas relativamente às questões da igualdade de género. Creio que os festivais e as salas de espectáculos estão a ficar melhores, no sentido em que começam a apostar cada vez mais em artistas mulheres. Nós no Reino Unido temos esta política que abrange todos os festivais, em que a programação tem de estar dividida de igual modo entre artistas masculinos e femininos. Isso seria excelente se também se estendesse às salas de espectáculos. Forçaria as pessoas a procurar por música feita por mulheres. Até porque temos por aí tantas instrumentistas de jazz absolutamente maravilhosas. Só que acabam por não ter o reconhecimento que merecem. Acho que esse passo seria muito importante. Mas eu ainda lido com sexismos das mais loucas e variadas formas. Recentemente, tive um homem a tentar dizer-me de que forma é que eu devia tocar..

Mansplaining

Exactamente! São coisas que até já me aconteceram antes. Ter gente a perguntar-me “porque é que não sorris um pouco mais? Porque é que não danças?” Esse tipo de coisas são rudes e insultuosas. Trata-se da minha música e eu é que sei a forma como a quero expressar. É uma batalha, sem dúvida.

Às vezes penso nas diferenças entre a cena jazz portuguesa e a britânica e acho sempre impressionante a quantidade de instrumentistas femininas que têm a oportunidade de crescer aí. Assim muito de repente, sou capaz nomear no panorama português para aí duas trompetistas, uma saxofonista… A maior parte das mulheres no jazz português são cantoras. Parece não existir espaço para que uma mulher possa aprender um instrumento por cá. Porque é que acha que isso é diferente em Inglaterra?

Aqui existem muitos grupos e organizações que se focam em realmente dar oportunidades a mulheres jovens e a nutri-las criativamente, não olhando para a habilidade delas. Permitem-lhes dar aquele grande passo seguinte, aquela injecção de confiança. Ajudam-nas a encontrar o seu caminho num ambiente que lhes oferece muito suporte. Por isso é que vemos hoje tantas instrumentistas de jazz destacadas. Elas sempre existiram mas, até aqui, tinham sempre sido “invisíveis” para o público. Agora há muita consciencialização relativamente a esse tema. A visibilidade é muito importante. E não apenas a contar com o bem das gerações seguintes, porque metade da nossa população é composta por mulheres nos dias de hoje. Precisamos desse outro ponto-de-vista. Precisamos de ouvir todas as diferentes vozes. É isso que faz de nós uma sociedade feliz. Não é bonito cortar as vozes das outras pessoas. De momento existe um enorme encorajamento nesse sentido. Tens organizações como a Tomorrow’s Warriors, que têm feito um trabalho brilhante. Há inúmeros músicos a surgir a partir de organizações como essa, tanto homens como mulheres, em parcelas de 50/50. Acho que é um modelo educacional que precisa de ser expandido para outros países.

Sem dúvida. No seu álbum de remisturas para o La Saboteuse incluiu um remix do colectivo afro-português Blacksea Não Maya para o tema “Al Emadi”. Como é que foi dar com eles?

Foi através de muita pesquisa. O meu amigo Charlie Jungle fez-me uma lista de vários DJs/produtores que pudessem entender a minha música e criar algumas remisturas interessantes. Os Blacksea Não Maya estavam nessa lista. Creio que eles na altura só tinham uma edição no Spotify. Mas eu ouvi o disco e achei aquilo tão incrível, tão diferente, e a música deles tinha uma vibração tão especial… Eu nunca tinha ouvido nada que soasse parecido ao que eles fazem. Confesso que não ouço muita muita música electrónica, mas quando ouvi aquilo achei super interessante. Consegui imaginar uma colaboração engraçada. Fiquei muito contente por ter sido introduzida à música deles.

Essa ideia de ter a sua música remisturada repetiu-se com o Polyhymnia. Eu sei que não temos propriamente tido a oportunidade de frequentar discotecas e tudo mais, mas gosta de ouvir a sua música nesse contexto de clube?

Claro que sim. Acho que é uma outra forma de reunir audiências diferentes. E eu adoro colaborar com outros artistas. Os resultados costumam ser muito interessantes quando se faz algo com alguém que tenha origens musicais diferentes. Eu tenho um paladar musical muito eclético e gosto de ouvir a minha música a ser equacionada de outras formas. São também experiências sempre muito divertidas.

Quando leio sobre este novo jazz britânico por aí, fico sempre com esta ideia de que é um movimento muito sustentado na noção de comunidade. E se for ver as listas de créditos dos álbuns que estão a sair, vejo de facto que vocês se ajudam e colaboram todos nos projectos uns dos outros. Esse quadro da união é mesmo um quadro real?

Eu diria que toda a nossa cena musical é bastante próxima. Os músicos no Reino Unido tocam os mais variados géneros e isso permite-te conhecer um vasto leque de pessoas diferentes. Estamos sempre a misturar-nos com malta diferente, não apenas dentro dessa tal cena. Mas sim, existem comunidades de músicos, malta com quem nos cruzamos quando estamos a estudar ou através de organizações como a Tomorrow’s Warriors ou a Birmingham Music, que arrancou recentemente com um programa educacional muito bom. Por isso sim, existe sempre esse lado da comunidade. Mas só o simples facto de seres músico dá-te a oportunidade de andar por aí a estabelecer ligações com outras pessoas, a partilhar ideias. Londres, em particular, é uma cidade muito diversa. Tens cá pessoas que vêm de todos os cantos do mundo. Creio que é normal acabarmos por ter um espectro tão alargado de influências e vozes.

Já teve a oportunidade de brilhar fora dos domínios do jazz, graças a colaborações com os These New Puritans ou aqueles rapazes que ainda ninguém conhece, chamados Radiohead [risos]. O seu telefone toca frequentemente com convites para participar em coisas diferentes?

Nem por isso. Neste contexto de pandemia, posso dizer-lhe que sim. Tive de facto muita gente a chegar até mim para colaborar. Acho que teve a ver com o facto de muita gente ter estado em casa tendo aproveitado para criar projectos com base em gravações feitas à distância. Fora isso, não. O meu telefone não está sempre a tocar [risos]. Às vezes também é preciso um pouco de sorte. Estar no sítio certo à hora certa.

Referiu no início da nossa conversa que em 2022 poderíamos esperar um novo EP e falou também de um álbum que se seguirá a isso. Parece-me que os seus planos para o próximo ano estão bastante definidos nesse aspecto. Em relação aos concertos, tenciona andar em digressão com maior intensidade?

Eu espero que sim. A minha agenda está a compor-se aos poucos. A partir de Outubro, eu e a minha banda vamos andar pela Bélgica, temos algumas datas na Alemanha, vamos à Finlândia, Luxemburgo, aos Açores, obviamente. As coisas estão a regressar ao normal a pouco e pouco. Só temos de ter os cuidados necessários para que ninguém apanhe COVID-19 [risos]. Se ficarmos doentes temos de cancelar datas. É uma tarefa difícil. Estamos muito entusiasmados mas temos de ter muita precaução com a nossa saúde.

Uma última coisa: vai ter uma banca com merchandise no concerto nos Açores? Pergunto-lhe isso porque os seus discos são tão difíceis de encontrar, sobretudo nesta realidade pós-Brexit [risos].

Eu sei, eu sei [risos]. Prometo que vou levar o máximo de discos que conseguir na minha grande mala de viagem.


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