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Fotografia: Paulo Nogueira/Theatro Circo
Publicado a: 23/05/2023

Fusão de mil e uma cores.

Yazz Ahmed no Theatro Circo: a música como território de exaltação

Fotografia: Paulo Nogueira/Theatro Circo
Publicado a: 23/05/2023

Em Novembro de 2021, no concerto de abertura do PDLJazz, em São Miguel, Açores, a trompetista, fliscornista e compositora Yazz Ahmed brilhou intensamente com uma apresentação de musicalidade plena e amplo cromatismo, que confirmou todos os elogios que sobre ela a imprensa internacional já ia debitando — afinal de contas, na altura, a também líder de banda aterrou na ilha trazendo consigo um exemplar da Jazzwise, revista que nesse mês a tinha colocado na capa, celebrando a sua passagem em modo sinfónico pelo prestigiado London Jazz Festival. Ano e meio depois, em Braga, Yazz deixou claro que muito tem acontecido na sua vida, como teve oportunidade de nos contar em entrevista de antecipação do seu concerto no Theatro Circo no passado sábado, mas uma coisa permanece imutável: a sua total e profunda dedicação à construção de uma ponte que una as diferentes dimensões do jazz e da música árabe, por um lado, e a sua inteira disponibilidade para se afirmar como reivindicativa voz das mulheres, dos refugiados e de todos os que lutam por um mundo melhor. Tudo certo, portanto.

Ladeada por Ralph Wyld no vibrafone, David Manington no baixo e Martin France na bateria – o seu trio “de trabalho” habitual e a mesma formação que com ela pisou o palco no teatro Micaelense -, Ahmed demonstrou continuar em plena forma e deixou claro igualmente que nas suas mãos (e pulmões…), a música é material maleável que está em constante evolução. Peças como “Lahan al-Mansour”, “2857”, “Deeds Not Words”, temas de Polyhymnia de 2019, continuam a constar no alinhamento, mas soam sempre novas de cada vez que Yazz Ahmed as revisita, com a banda a exibir um entusiasmo que se parece renovar de cada vez que os seus músicos se atiram a esse material. A propósito da sua intensa interpretação de “Jamil Jamal”, tema de La Saboteuse, trabalho que lançou em 2017, Ahmed explicou mesmo tratar-se de uma “espécie de remix”, aludindo à estratégia de encarar estas peças não como repertório cristalizado, mas antes como sugestão para novas aventuras. Tal como em Ponta Delgada, “Dawn Patrol”, composição criada a convite da Adult Swim e que se inspira no libertário acto de surfar, também mereceu reinterpretação, mas, se a memória não me trai (e tantas vezes isso acontece…), a peça solitária “A Shoal of Souls” (que fechou a primeira parte do concerto antes do costumeiro encore) foi uma surpresa que não mereceu interpretação na sua anterior passagem pelo nosso país. Esse tema foi apresentado como uma especial dedicação a mestres sufi e também “a todas as vidas perdidas na travessia do Mediterrâneo”, numa das intervenções em que Yazz foi dando conta da sua militante dimensão humanista e política — também homenageou a primeira mulher realizadora da Arábia Saudita em “Lahan al-Mansour”, Rosa Parks em “2857” e a decisiva luta das sufragistas britânicas em “Deeds Not Words”. Finalmente, o tema que trouxe Yazz Ahmed e a sua banda de volta ao palco, “The Lost Path”, ilustrou de uma forma absolutamente tocante a demanda em que está envolvida para encontrar o tal caminho entre a invenção do jazz e a tradição árabe, entre a Europa e o Bahrain, onde tem raízes.

Os músicos de Yazz são por esta altura plenamente fluentes nas nuances harmónicas e melódicas com que a trompetista dota as suas peças. A riqueza cromática do vibrafone, por um lado, mas também a amplificação tonal do trompete e fliscorne através do Kaoss Pad e dos pedais de efeitos libertam a música da sua dimensão acústica e projectam-na num espectro tímbrico e cromático mais inventivo. E depois há os diálogos ou conversas em que todos participam: especialmente entusiasmantes foram as trocas de frases e convergências em uníssonos entre o vibrafone e o trompete ou o vibrafone e a bateria. Por vezes, Ralph Wyld até traz à memória o particular toque de Mulatu Astatke no vibrafone, na forma como as suas mãos parecem ter facilidade em conjurar cores que evocam outras culturas, outras paisagens, distantes no tempo e no espaço. Todos tiveram amplo espaço solista e todos o ocuparam com uma refinada elegância, diga-se ainda.

Yazz Ahmed soa como uma artista à beira de grandes feitos, como uma criadora que apesar de já ter registado importantes conquistas no seu currículo – do reconhecimento de importantes publicações como a Wire até convites de prestigiadas instituições como o Barbican – continua a ter no futuro o mais importante dos seus palcos. Poder aplaudi-la antes que isso suceda é um privilégio que não se deve menosprezar.


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