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Publicado a: 30/09/2015

House: A História VI

Publicado a: 30/09/2015

[FOTO] Direitos Reservados

 

Capítulo seis da publicação periódica no Rimas e Batidas dos capítulos do livro “House – A História” assinado por Rui Miguel Abreu e editado em 2006.

Revejam todos os capítulos da série aqui.

 


 

[CHICAGO’S WAREHOUSE]

Talvez por Nova Iorque ter sido a Meca do disco e por aí se encontrarem concentradas as mais importantes editoras a novidade não tenha chegado tão depressa. Os estúdios, os músicos, os produtores e compositores no activo tinham métodos e circuitos que funcionavam e que durante algum tempo se revelaram mais ou menos impermeáveis à inovação. Chicago, no entanto, apenas podia reclamar ter sido em tempos muito remotos capital dos blues. A soul, o funk e o disco, embora tivessem, de maneiras diferentes, causado impacto na cidade estavam muito mais associadas a outras zonas do país, como Detroit (cidade natal da Motown), Memphis, (Stax), Los Angeles, Filadélfia ou Nova Iorque. Tendo em conta a ausência de referências próximas para os jovens produtores de Chicago, uma nova sonoridade apoiada em novos e revolucionários métodos poderia instalar-se aí com enorme facilidade. O caminho, claro, já estava preparado.

Tanto em Chicago como em Nova Iorque, a primeira metade da década de 80 coincidiu com o mergulho do disco no underground e com a sua adopção de novas roupagens graças às influências recolhidas, por exemplo, na Europa. Numa altura em que os temas de disco começavam a revelar a violenta ganância da indústria (que achava que podia transformar qualquer coisa – dos Kiss a Rod Stewart – em disco), os DJs foram obrigados a procurar combustível para os seus sets noutras fontes. O new wave, por exemplo, forneceu muitas músicas ideais para a pista de dança, como é o caso do enorme “Magnificent Dance” dos Clash. Mas a pop apoiada em sintetizadores – que chegou a ser apelidada “Cold Wave” – de gente como Gary Numan, Visage, Soft Cell, Yazoo e Depeche Mode também teve um enorme impacto nos Estados Unidos, juntamente com a longa sombra lançada pelos alemães Kraftwerk cuja influência se revelou decisiva no abraçar americano da tecnologia, como o provou “Planet Rock”, o seminal tema electro de Afrika Bambaataa editado em 1982. Só que, como tantas vezes acontece, esse impacto não foi imediato e foi necessário o esforço pioneiro de dois clubes para que as alternativas ao disco se impusessem. Em Nova Iorque, claro, esse papel coube a Larry Levan e ao Paradise Garage, mas em Chicago as consequências foram diferentes, graças ao trabalho de Frankie Knuckles (na foto) no Warehouse.



O convite para uma residência no Warehouse, ironicamente, foi dirigido em primeiro lugar a Larry Levan. Só que a perspectiva de ter que se impôr numa cidade nova, num clube novo e perante uma multidão nova não o entusiasmou e por isso foi por sugestão sua que o convite foi então redireccionado para Frankie Knuckles, que Levan conhecia bem por ter trabalhado com ele nos Continental Baths até 1974. Frankie Knuckles foi, portanto, uma segunda escolha. Mas os donos do Warehouse não tiveram razões de queixa. A ideia era criar um clube gay liderado por um DJ visionário numa cidade em que não havia DJs e onde praticamente todos os clubes deixavam a selecção musical ao cuidado dos próprios clientes através das jukeboxes. Depois de ver o clube – situado numa zona industrial decadente e instalado num pequeno edifício de três andares, com uma zona de descanso no andar cimeiro, área de sumos, águas e pequenos snacks gratuitos na cave e uma pista de dança no andar intermédio – Knuckles terá pedido aos donos do Warehouse cinco anos para o tornar num local absolutamente incontornável. De acordo com um artigo de Sheryl Garratt assinado na já extinta revista The Face em Setembro de 1986, Knuckles só precisou de dois anos para conseguir o que tinha prometido.

“Era mesmo o único clube onde se podia ir em toda a cidade,” explicou Knuckles a Sheryl Garratt. “A atmosfera não era sofisticada – a iluminação, por exemplo, era muito simplista – mas o sistema de som era intenso e o que importava era o que se ouvia e não o que se via. Confortavelmente o clube tinha capacidade para umas 600 pessoas, mas eu diria que pelo menos umas 2500 passavam por lá em cada noite. As multidões chegavam em turnos – os que já estavam lá fora às 11 e 45 normalmente dançavam até às 3 ou 4 da manhã que era a hora a que o pessoal dos bares chegava. E depois chegava um tipo completamente diferente de pessoas lá pelas nove da manhã e era assim que as festas se prolongavam até à tarde.”

A palavra ainda a Frankie Knuckles: “A maior parte da música que eu tocava era inspiracional – todas as cenas de dança que eram populares entre 1977 e 1978, mas a voz tinha que ter um bom som e uma mensagem que fosse mais do que simplesmente ‘conheci uma miúda’. A maior parte do tempo eram instrumentais realmente pesados ou vozes que falavam de fazer algo para melhorar a vida, como o ‘Keep On’ dos D-Train: ‘I can’t let nobody keep me from reaching the top’. Esse tipo de cenas.”


 


Depois de se mudar de Nova Iorque para Chicago, Frankie Knuckles descobriu que os gostos dos clubbers da Windy City eram bem diferentes dos de Nova Iorque. Grande parte da playlist do Paradise Garage e do Warehouse era semelhante, mas os estilos adoptados por Levan e Knuckles para abordarem a música eram diferentes e acentuados pelas opções próprias de cada um. Knuckles, por exemplo, inseria mais importações da Europa nos seus sets e também carregava um pouco nas BPMs. No excelente e seminal artigo de Phil Cheeseman sobre a história do House para a DJ Magazine (14), Knuckles relembra as especificidades da música preferida pelos clubbers do Warehouse: “Todos os discos que saiam de Nova Iorque no início dos anos 80 eram midtempo ou downtempo e os miúdos de Chicago não queriam música assim toda a noite, precisavam de mais energia.”

Em Nova Iorque os ecos do disco continuavam a fazer-se ouvir através do trabalho de editoras como a Salsoul, a West End ou a Prelude, mas em Chicago esse domínio não se fazia sentir e as importações frescas da Europa tinham mais espaço para dominar a pista de dança. Como escreve Ulf Poschardt em “DJ Culture”, “em Chicago os Kraftwerk eram mais importantes do que Barry White.” Além de clássicos que continuavam a funcionar na pista de dança e das importações europeias, a partir de 1980 Frankie Knuckles começou a integrar edits privados nos seus sets. Em Nova Iorque toda a gente o fazia e Knuckles viu aí uma forma de expandir o seu arsenal e de contrariar a cada vez mais dramática escassez de temas rápidos. Temas de Chaka Khan, Geraldine Hunt ou Howard Johnson eram trabalhados num gravador de bobines com a ajuda de Erasmo Riviera e depois apresentados perante um público pouco habituado a estes recursos e por isso mesmo completamente sedento de novidades.

O público do Warehouse era obviamente profundamente devoto e cedo começou a manifestar vontade de levar para casa os mais importantes temas que abalavam as estruturas do clube. Para isso dirigia-se até à Imports Etc, uma loja onde trabalhava Chip E (que também deixou a sua marca em algumas das primeiras produções house), e lá tinha à sua disposição toda uma selecção de discos que normalmente se podiam ouvir nos sets de Frankie Knuckles. Essa secção tinha o nome de “Warehouse music“. Eventualmente, a designação foi abreviada para “house music” para abarcar todo o tipo de sons que se podiam escutar no clube de Knuckles. Loleatta Holloway ou os Eurythmics eram house. Ou seja, o nome apareceu antes do género ter começado sequer a gatinhar, um pouco à semelhança do que, mais ou menos ao mesmo tempo, aconteceu no Bronx com o hip hop. Antes do primeiro disco (“Rappers Delight” dos Sugarhill Gang) aparecer em 1979, hip hop também poderia querer dizer “Apache” dos Incredible Bongo Band ou “Funky Drummer” de James Brown. Tal como o hip hop no Bronx, também o house em Chicago começou por ser uma ideia, um som, um projecto que o tempo se haveria de encarregar de concretizar.

 


 

[NOTAS]

14 – Este artigo foi publicado na DJ Magazine em 1995. Phil Cheeseman esteve também envolvido na produção executiva de alguns discos no início da década de 90 e o seu nome pode ser lido nos créditos de maxis de Phuture para a Strictly Rhythm, por exemplo.

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