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Publicado a: 11/09/2015

House: A História V

Publicado a: 11/09/2015

[FOTO] Direitos Reservados

 

A quinta parte da publicação periódica no Rimas e Batidas dos capítulos do livro “House – A História” assinado por Rui Miguel Abreu e editado em 2006.

Revejam todos os capítulos da série aqui.

 


[ARTHUR, DUB & NOVA IORQUE]

 

A Nova Iorque da viragem da década de 70 para a de 80 deve ter sido um local mágico. Por um breve período, estabeleceu-se um circuito aberto entre múltiplas realidades cuja consequência imediata foi o derrubar de barreiras entre os mundos do jazz, da vanguarda, do punk, do disco sound e do nascente hip hop. O livre-trânsito de que muitos músicos pareciam usufruir nessa época permitia-lhes circular livremente entre esferas hoje estanques. Só isso explica, como referiu Bill Brewster numa entrevista à Dance Club (11), que Afrika Bambaataa, um dos pilares da cultura hip hop, arriscasse tocar discos dos Monkees – espécie de boys band da pop branca da década de 60 – para o público essencialmente negro dos ghettos do Bronx. Ou que alguém como Arthur Russell pudesse, num dia normal, empregar os ensinamentos tântricos de Ali Akbar Khan nas suas jam sessions com o poeta Allen Ginsberg, descer ao Loft de Nick Mancuso para mergulhar nas apertadas malhas do disco sound e acabar o dia num estúdio de Times Square com David Byrne dos Talking Heads.

 


 


A antologia The World Of Arthur Russell, editada pela Soul Jazz em 2004, funciona como o compêndio definitivo que o legado do autor de Go Bang já merecia e como uma espécie de retrato de uma cidade irremediavelmente contaminada pelas possibilidades que a livre circulação de ideias oferecia. Essa edição, proporciona igualmente um olhar revelador sobre a vida de Arthur Russell – produtor, compositor, poeta, violoncelista – cujo falecimento em 1992, vítima de SIDA, remeteu a sua obra ao quase esquecimento. O facto de o essencial da carreira musical de Russell se encontrar disperso por várias editoras (da West End à Sleeping Bag, passando pela Rough Trade e pela Point Music de Philip Glass) que nunca venderam grandes quantidades dos seus discos, confinou a sua obra aos restritos círculos de coleccionadores e conhecedores. Mas a posteridade acabou por colocar em evidência as conquistas de Russell que influenciaram decisivamente toda a produção mais deep do house de Nova Iorque, a cena construída na segunda metade da década de 90 em torno de etiquetas como a Nuphonic (ouça-se os Faze Action, por exemplo) e que perdura no presente em toda a recuperação de uma sensibilidade disco mais oblíqua, como a que é desenvolvida por nomes como Lindstrom & Prins Thomas.

Nos temas mais “dançáveis” de Arthur Russell, os andamentos do disco sound colam-se à exploração do espaço aprendida nos álbuns de dub. Esse pendor dub traduzia-se em amplos reverbs e delays e na gestão das tensões entre os diversos elementos dos arranjos, despindo-se por vezes os temas até às suas fundações rítmicas. E aqui, o envolvimento de DJ’s como François Kevorkian, Larry Levan (acima na foto) e Walter Gibbons há-de ter sido decisivo, quanto mais não seja ao nível da inspiração. Vários dos colaboradores próximos de Russell contam como um bom set era capaz de o inspirar e de o forçar a ficar no estúdio por longas horas. Steve Hall, guitarrista e amigo próximo de Russell, deu muito recentemente uma entrevista à revista britânica Keep On (12). Nessa conversa conduzida por Daniel Wang (13), Steve Hall revela que o Paradise Garage de Larry Levan era um dos pontos obrigatórios do seu roteiro: “O Paradise Garage era um dos centros de treino musical do Arthur. Ele saía todas as noites, por vezes só para percorrer as ruas (…) a ouvir música no seu walkman e para ir ver alguns clubes. Foi assim que ficou a conhecer os DJs(…).”

 


 


[O ADEUS DE LEVAN]

O Paradise Garage esteve aberto até 1987, mas os problemas de Larry Levan começaram bem antes disso, sobretudo devido ao seu cada vez mais intenso consumo de droga. Na fase final do clube, Levan faltava muitas vezes e as cada vez mais prolongadas ausências eram um indicador do crescimento da sua dependência das drogas. O caso tornou-se realmente sério quando amigos de Levan começaram a encontrar em vários locais de Nova Iorque os seus discos à venda. Para alguém que amava a música com tanta intensidade, a venda de partes significativas da sua colecção só poderia significar uma coisa – a necessidade de heroína tinha superado a paixão pelos discos.

Com o encerramento do Paradise Garage – em parte devido ao facto da licença ter expirado, mas também por causa de pressões vindas de especuladores imobiliários – Levan foi perdendo o seu protagonismo, apesar de ainda conseguir datas noutros clubes da cidade. Eventualmente, a sua carreira foi ficando cada vez mais errática enquanto, paradoxalmente, na Europa e no Japão uma nova geração se assumia devedora dos seus ensinamentos. O Ministry of Sound chegou a levar Levan a Londres, mas a visita revelou-se atribulada: chegou com oito dias de atraso, sem discos nenhuns e em vez de três dias acabou por ficar três meses na capital britânica. Em 1992, alguns meses antes de falecer, Larry foi convidado para uma digressão no Japão juntamente com François Kevorkian. Essa foi a última oportunidade que concedeu ao mundo para testemunhar o seu talento. François K. reviveu nas páginas de “Last Night a Dj Saved My Life” os emocionais últimos momentos de Levan enquanto DJ, num clube de nome Endmax: “Larry apresentou um set de clássicos de Filadélfia de forma tão tocante que nos comoveu, porque todas as canções diziam-nos que ele estava a sofrer. Todos o sentimos na altura – e penso que ele sabia mesmo que estava a morrer – e todas as canções que ele tocou tinham tanto a ver com a rapidez com que a vida passa, com o facto de ser tão passageira. Ele tocou uma canção de Jean Carn chamada ‘Time Waits For No One‘ e ‘Where Do We Go From Here’ dos Trammps e tantas outras. Eu estava ali ao seu lado na cabine, a vê-lo a tocar todos estes discos e então percebi que este era um dos maiores momentos de nobreza que tinha observado na minha vida. Foi tão óbvio, tão grandioso. O drama era tão intenso que as pessoas simplesmente percebiam.”

Larry Levan faleceu três meses depois, no dia 8 de Novembro de 1992. Nessa época, o house era já uma realidade planetária graças também aos seus pioneiros esforços.

 

https://www.youtube.com/watch?v=epsFK_sg1EI

 


[NOTAS]

11 – Entrevista assinada por mim no número de Fevereiro de 2004, a propósito da publicação na Dance Club do livro “How to DJ Properly”.

12 – Entrevista ao número 1 do volume 2 da revista de distribuição gratuita Keep On que tem uma versão em PDF disponível para download gratuito em www.keeponmagazine.com.

13 – Daniel Wang é um produtor de renome e mentor da respeitada etiqueta Balihu. Através da sua relação com Morgan Geist também tem editado na muito em voga Environ.

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