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Publicado a: 29/08/2015

House: A História IV

Publicado a: 29/08/2015

[FOTO] Direitos Reservados

 

A quarta parte da publicação periódica no Rimas e Batidas dos capítulos do livro “House – A História” assinado por Rui Miguel Abreu e editado em 2006.

Revejam todos os capítulos da série aqui.

 


[80s – A VINGANÇA DO DISCO]

Tim Lawrence, autor do livro “Love Saves The day – A History of American Dance Music Culture 1970-79”, cita uma importante afirmação de Frankie Knuckles no texto incluído no inlay da compilação da Soul Jazz Acid – Can You Jack: o house é a vingança do disco. Knuckles referia-se a várias coisas, incluindo a capacidade de sobrevivência do disco, ainda que transformado, mas também teria em mente o famoso episódio protagonizado por Steve Dahl, um notório DJ de rock que liderou o movimento “Disco Sucks” que detonou 50 mil vinis de disco durante o intervalo de um jogo de baseball. Esse movimento representou a machadada final na já longa agonia do disco que poderá ter começado com o filme Saturday Night Fever. De banda sonora de clubes gay profundamente underground até acompanhamento da vertigem decadente da sociedade norte-americana de finais dos anos 70 que teve em clubes como o Studio 54 o seu expoente máximo, o disco viveu rápida e intensamente e não poupou ninguém. Com a alvorada dos anos 80, o disco teve que saber recolher-se de novo nos circuitos alternativos, transmutou-se através de mil fusões com a vanguarda protagonizada por gente como Arthur Russell ou com a new wave de grupos como os Blondie e afastou-se da ribalta, dando o centro do palco ao rock que tomava a América de assalto graças ao impulso decisivo da MTV.

Percebendo a vibração dos novos tempos, o próprio disco evoluiu. Temas do início dos anos 80 como “You’re The One for Me” dos D-Train ou “Don’t Make Me Wait” dos Peech Boys eram em termos formais disco puro, mas, ao mesmo tempo, tinham sabido deslocar a fonte da sua inspiração da Filadélfia e Nova Iorque clássicas para a Europa de onde chegava um novo tipo de música apoiado na sonoridade electrónica dos sintetizadores que começava então a impôr-se. Gente como Giorgio Moroder, Soft Cell e Depeche Mode fornecia não apenas novos hits para os DJs dos clubes onde o disco se ia mantendo vivo, mas igualmente inspiração para os produtores que continuavam a trabalhar com a pista-de-dança por objectivo último. Foi sobretudo graças aos clubes Warehouse de Chicago e Paradise Garage de Nova Iorque que estas experiências ganharam força e as sonoridades mais electrónicas começaram a conquistar o público.

 


https://www.youtube.com/watch?v=aXl7f757gqI

 


[LARRY’S PARADISE]

O Paradise Garage abriu em Nova Iorque, no número 84 de King Street, em 1977. Pode dizer-se que foi um clube criado à imagem de um DJ muito especial – Larry Levan. Cinco anos antes, Levan tinha conseguido a sua primeira oportunidade num dos templos da cultura gay de Nova Iorque, os Continental Baths, onde começou por substituir o DJ residente que tinha acabado de ser despedido. Levan tinha 18 anos e um carisma do tamanho do mundo. Em 1974, Richard Long convidou Larry Levan para um novo clube, o Soho Club na Broadway, que rapidamente ganhou uma efervescente reputação. O talento de Levan não demorou muito tempo a transformar o Soho Club num local demasiado pequeno para os seguidores que já possuía e por isso mesmo Richard Long pegou num enorme espaço que tinha sido uma garagem, pintou as paredes de negro e transformou-o num sonho à medida de um homem. Em 1977 o Paradise Garage abriu as portas a um público seleccionado, uma espécie de elite com cartão de acesso ao clube à semelhança do que outros espaços igualmente míticos, como o The Loft de David Mancuso, praticavam. No Paradise Garage os discos eram as escrituras sagradas e Levan um Moisés visionário, capaz de dividir as águas com uma música apenas. E porque era a música e não o glamour de espaços como o Studio 54 (onde, em 1977, no aniversário de Bianca Jagger foram soltas pombas brancas…) que realmente importava não havia grandes adornos (embora as paredes do bar tivessem sido pintadas por um amigo de Levan que respondia pelo nome de Keith Haring). O que havia, porém, era o mais lendário sistema de som que alguma vez existiu num clube à face da Terra desenhado por Richard Long segundo especificações de Levan (e que a Billboard Disco Convention votou como sendo o melhor sistema de som de clubes em 1979 e 1980). Os autores de “Last Night a DJ Saved My Life”, Bill Brewster e Frank Broughton, descrevem este clube como “a ligação crucial entre o disco e as formas musicais que evoluíram a partir dele.” O Paradise Garage foi um templo, mas igualmente um laboratório de ensaio onde se testavam pontos de contacto entre diferentes atitudes musicais para se descobrir o denominador comum onde o futuro se poderia vislumbrar.

Numa noite normal Levan poderia passar temas como “Love is The Message” dos MFSB (um dos hinos do Paradise Garage), “Macho City” da Steve Miller Band ou “Walking on Thin Ice” de Yoko Ono, além de discos dos Talking Heads, The Clash, Gwen Guthrie, Yazoo ou Marianne Faithfull. Larry poderia até passar os mesmos discos em duas noites seguidas e tornar cada um dos sets radicalmente diferente pela forma como tocava os discos, pelas pausas dramáticas impostas entre cada um deles, até pela violência do seu ego – por vezes, quando um disco não obtinha a reacção esperada, Levan impunha-se repetindo o tema até obter aplausos da pista ou interrompendo-o e deixando o silêncio manifestar o seu desagrado. Kevorkian, que chegou a tocar no Paraside Garage, recorda em “Last Night a DJ Saved My Life” como uma noite Larry Levan deu à multidão não música, mas imagens: “O que é que se pode fazer? Duas mil e quinhentas pessoas na pista e ele põe o filme Altered States. Esse é o tipo de liberdade que eu acho que as pessoas têm que saber que existe.” Essa liberdade é a base da lenda que ainda hoje rodeia o Paradise Garage e a figura de Larry Levan.

 


 


Pode ainda argumentar-se que a durabilidade da aura de Larry Levan – que tantos afirmam ter sido o maior DJ de todos os tempos – está directamente ligada ao facto de ter sido o homem certo no local certo no momento certo. Seja como for, Levan demonstrou estar à altura do seu tempo, correspondendo com devoção e talento ao que o público esperava e exigia de si. Como é óbvio, Levan não inventou a roda ou o fogo, antes soube capitalizar todas as experiências que desde o início da década de 70 ajudaram a transformar Nova Iorque numa cidade absolutamente vibrante. Larry herdou as conquistas de homens como Grasso ou Gibbons e construiu com elas uma ponte para o futuro. Como Grasso, Levan compreendia a necessidade de encarar um set como uma viagem que exigia uma dinâmica muito própria. E tal como Gibbons, Levan revelou-se perfeito a utilizar as qualidades de DJ ao serviço da intervenção sobre matéria criativa alheia na forma de potentes remisturas que são ainda hoje verdadeiras peças de colecção (como é o caso do seu trabalho em “Bad For Me” de Dee Dee Bridgwater ou “Got My Mind Made Up” dos Instant Funk, por exemplo). Mas a essas duas óbvias qualidades, Levan acrescentou mais uma – a produção de material original com os N.Y.C. Peech Boys, projecto que manteve com Bernard Fowler e Michael DeBenedictus. Hoje é perfeitamente vulgar ver grandes DJs da cena house mundial a expandirem o seu leque de opções com incursão no trabalho de estúdio. Pode até pensar-se que produzir é quase um requisito para alcançar um certo estatuto. Mas em Levan, a produção foi uma consequência, o resultado da procura de uma visão. “Don’t Make Me Wait”, incluído no álbum Life is Something Special, de 1983, é um clássico de funk temperado por tecnologia que, como os trabalhos que Kevorkian também vinha a desenvolver desde o seu envolvimento com a editora Prelude, encarava sintetizadores e caixas de ritmos como um passaporte para o futuro e uma evolução para o impasse em que o disco parecia ter mergulhado.

 


https://www.youtube.com/watch?v=yK5V7czvpXE

 


O som que chegava da Europa em toda a sua glória tecnológica, por um lado, e as ondas dub oriundas da Jamaica – que se faziam sentir muito seriamente em Nova Iorque por via dos fluxos migratórios que desde finais da década de 70 conduziram até aí uma série de veteranos da cena musical de Kingston –, por outro, começaram a nortear as produções mais aventureiras da época, incluindo as de Levan. Ao eurodisco ou synth pop desses dias foi-se buscar a autonomia proporcionada pela tecnologia que finalmente libertava o groove da necessidade de ter uma boa banda de estúdio à disposição. Já a exploração do espaço – actividade que quando maximizada pelo sistema de som de um clube causava um impacto dramático – teve por impulso as lições aprendidas com os mestres do Dub. Levan tinha estudado essas lições com toda a atenção e a sua cabine no Paradise Garage estava equipada com processadores de efeitos, como o reverb ou o delay, que usava para deixar a sua marca nos discos que passava. François Kevorkian foi outro dos produtores que encarou o Dub como fonte de inspiração, utilizando alguns dos seus ensinamentos em remisturas da primeira metade dos anos 80 como “Situation” dos Yazoo (um dos mais destacados exemplos do synth pop europeu) ou “Go Bang!” dos Dinosaur L de Arthur Russell, ele próprio, aliás, um dos mais proeminentes exploradores do ponto de intersecção entre disco e espaço.

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