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Fotografia: Paulo Pacheco
Publicado a: 14/11/2022

Consciência total.

Hamid Drake no Guimarães Jazz’22: a mais bela das vénias a Alice Coltrane

Fotografia: Paulo Pacheco
Publicado a: 14/11/2022

Guimarães é uma cidade com uma vibração muito particular e nestes dias de um Outono com sol generoso e temperaturas amenas é possível calcorrear as suas ruas de pedra e deixar os olhos perderem-se em edifícios cheios de história ou então ir ver os tesouros que estavam guardados nas reservas do Centro Internacional das Artes José de Guimarães (CIAJG) e demorar o olhar no extraordinário acervo que o artista reuniu e que inclui inúmeros artefactos africanos, chineses ou pré-colombianos.

No programa para a terceira etapa do Guimarães Jazz incluíam-se duas propostas muito distintas: em primeiro lugar uma apresentação do trio formado por Anders Koppel (órgão Hammond B3), pelo seu filho Benjamin Koppel (saxofone alto) e ainda por Martin Andersen (bateria).

Saber-se que se poderia escutar um instrumento tão particularmente carregado de história como o B3 – devidamente ladeado pela sua inseparável coluna rotativa Leslie – deveria ser argumento suficiente para se marcar presença. O espectáculo do trio dinamarquês arrancou em tons algo litúrgicos e solenes, teve momentos de desenfreado groove, algum peso rock, liberdade absoluta e encaixe em tradições, ou seja, foi diverso e talvez até algo desequilibrado – houve momentos realmente entusiasmantes e outros nem por isso…

Estranhamente (ou talvez não…), houve passagens nas diferentes peças que o trio executou que apontavam claramente para alguns standards e até deu para escutar, nalgumas fugazes frases, ecos de Beatles e de uma ou outra melodia do universo erudito clássico, mas, como nos assegura o alinhamento fornecido pela organização, as nove composições que se escutaram no Pequeno Auditório do Centro Cultural Vila Flor (CCVF) pertencem a Benjamin (6 delas) e Anders Koppel (as 3 restantes). Talvez isso tenha acontecido por haver espaço para improvisação e citações livres dentro de algumas das composições ou talvez tenham sido apenas os nossos ouvidos a pregarem-nos partidas. Adiante.

Descalço e com umas curiosas meias listadas, Anders Koppel dava um show paralelo com a dança constante do pé esquerdo nas teclas que geram os baixos no B3, enquanto o outro, em constante movimento sobre o pedal de volume, parecia o de uma antiga costureira a “pedalar” numa Singer, aumentando o efeito que o vibrato da Leslie já oferecia. Anders é um organista de mão-cheia e mesmo aos 75 anos continua pronto para as curvas das composições, deixando perceber pelo sorriso estampado no rosto que toca com enorme deleite. O seu filho, bem mais sério, mostrou-se seguro nos uníssonos exigentes, solou com garra e entrega, mostrando um som redondo e cheio nas passagens mais bluesy e gospel e alguma capacidade de arrebatamento quando a música saía das mais apertadas margens idiomáticas. Já o baterista mostrou-se solto, cromaticamente generoso (escovas, baquetas com e sem bolas de feltro, mãos… tudo serviu para extrair som do seu kit) e mais do que competente a carregar um padrão.

O concerto foi agradável, mas longe de ser brilhante.



O brilhantismo da jornada de sábado estava, percebeu-se depois, todo reservado para o concerto que mais expectativa gerou deste lado – aquele em que o mestre percussionista Hamid Drake se propôs homenagear a eterna Alice Coltrane e que teve lugar à noite no grande auditório do CCVF.

Há, de facto, coisas extraordinárias que só a mais inventiva e criativa música nos consegue oferecer: momentos que nos realinham energias, que nos marcam benignamente, que nos restauram por dentro e nos transformam de alguma maneira. E este encaixa-se, certamente, nessa categoria, entrando directamente para o lote de melhores espectáculos presenciados este ano (e onde se encontram ainda as apresentações do Damon Locks’ Black Monument Ensemble no Jazz em Agosto, de Amélia Muge no Festival Imaterial, de Amaro Freitas na Casa da Criatividade de São João da Madeira ou dos Ill Considered no Mucho Flow, igualmente em Guimarães).

Com um ensemble de primeira água e de origens muito diversas que incluía Ndoho Ange (dança, declamação), Sheila Maurice-Grey (trompete e voz), Jan Bang (live sampling, efeitos), Jamie Saft (piano acústico, piano eléctrico Fender Rhodes e órgão Hammond), Pasquale Mirra (vibrafone, pequenas percussões), Brad Jones (contrabaixo e guembri), Hamid Drake (bateria e percussões) revisitou, de forma tão reverente quanto inventiva, a obra de Alice Coltrane.

O alinhamento passou por “Dreaming of Turiya” (referência ao nome espiritual de Alice e talvez a “Turiya”, do álbum Huntington Ashram Monastery, de 1969), “Ptah, The El Daoud” (do álbum com o mesmo título, de 1970), “The Sun” (do álbum Cosmic Music que o casal Coltrane auto-editou em 1968 antes de o ceder para lançamento com carimbo Impulse no ano seguinte), “Om Nam Sivaya” (um dos mantras devocionais do reportório de Alice que no concerto serviu também para apresentar os músicos e para contar uma belíssima história), “Journey in Satchidananda” (uma vez mais do álbum homónimo, lançado em 1971) e ainda uma peça que o alinhamento fornecido pela organização indica ter por título “Desireless” (e que não consta em nenhum dos trabalhos que a pianista e harpista lançou em nome próprio – talvez um original de Hamid Drake).

Percebeu-se claramente que, com o desenho deste colectivo, Drake procurou uma grande paleta cromática e harmónica para interpretar a sua visão da obra de Alice Coltrane: e para isso foram decisivos não apenas os pianos eléctrico e acústico do excelente Jamie Saft (músico de Nova Iorque com extensa e interessantíssima produção) e ainda o órgão gerador de drones que também usou, mas também o vibrafone de Pasquale Mirra (músico italiano que tem explorado outras avenidas musicais e que o ano passado lançou um belíssimo álbum com Gianluca Petrella, Correspondence) e as ressoantes manipulações electrónicas de Jan Bang (artista norueguês que chegou a colaborar com Jon Hassell, entre variados outros artistas) que se dedicou, sobretudo a samplar os contributos dos outros músicos, transformando-os depois em etérea matéria aural. Ndoho Ange é uma expressiva artista que cruza o espaço com movimentos fluídos que parecem dever tanto à dança contemporânea como ao mais livre instinto e foi ela que foi interpretando fisicamente o que a música parecia impelir-nos a todos a fazer, não fossem as regras que ditam que temos que permanecer sentados nestes contextos.

Logo na fase inicial do concerto, Hamid Drake partiu para um longo solo que pareceu estender-se por uns bons 15 ou 20 minutos, exibindo não apenas toda a sua reconhecida mestria, como uma óbvia capacidade de nos enredar em hipnóticos ritmos de crescente complexidade, mas também de irresistível beleza, estilhaçando o tempo em mil pedaços reluzentes. Saft foi o segundo músico a solar, começando por explorar zonas de maior abstracção, mas demonstrando ao longo do concerto ser igualmente capaz de criar grooves circulares, repetivos e por isso agicamente hipnóticos. Foi ele que aguentou o longo discurso de Hamid Drake, embrulhando a sua nobre voz na luz cristalina que se solta do Rhodes: o músico contou-nos, com tom suave, como conheceu Alice Coltrane aos 16 anos, após um concerto, quando ainda respondia ao nome Hank (Henry Lawrence Drake era então o seu nome), e de como esse momento o marcou e lhe apontou um caminho para a vida, tanto musical como espiritualmente: “ela deu-me a força e a determinação para eu encontrar a minha voz”, contou-nos, antes de nos dizer que Alice Coltrane deve ser equiparada aos maiores de sempre, de Haydn ou Mozart a Coltrane ou Charlie Parker. Depois falou do divino feminino, da força da mulher, referiu as duas “rainhas” que o acompanham, como Ange veio de Guadalupe e Grey tem raízes na Serra Leoa – somando isso a todas as outras nacionalidades, percebe-se também que Drake fez questão de não olhar para a obra de Alice do ângulo de apenas uma cultura. Ouviram-se palavras em inglês, sânscrito ou árabe, parecendo que além de uma viagem entre as dimensões física e espiritual, esta música procurava também cruzar fronteiras e atingir aquilo a que a própria Turiya chamou “consciência universal” (é esse o título de um álbum que editou em 1971). 

Com os espíritos elevados, os músicos entregaram-se à música, servindo-a de forma generosa e sem ego: não se escutaram solos indulgentes ou tecnicistas, antes profundas e devotas amostras de uma harmonia ampla. Sheila Maurice-Grey, fantástica trompetista, foi discreta, harmonizou vocalmente com o líder e deixou-se perder no meio dos cânticos. Tal como todos nós. Foi de Sheila o derradeiro momento musical do concerto que quando terminou, mais de hora e meia depois de ter começado, nos deixou a todos em feliz suspensão. Escrever que foi maravilhoso não chega para explicar o que ali aconteceu. Esperemos agora que este projecto possa vir a ser documentado discograficamente tão cedo quanto possível. Dedos cruzados, deste lado.


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