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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 02/08/2022

Monumentos vivos.

Anteloper e Damon Locks no Jazz em Agosto 2022: os blues e a verdade abstracta

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 02/08/2022

Há momentos  em festivais como este que não acontecem no palco, antes caem entre espectáculos, como a água que se escapa pelas fendas de um piso qualquer: reveladores jantares com jornalistas que nos visitam, gente que se encontra no metro horas antes do primeiro concerto do dia, conversas que se têm ou escutam no átrio, sorrisos que se partilham no jardim com quem se viu no dia anterior e nem sequer fala a mesma língua. De certa maneira, nem que dure apenas uma semana, um festival assim pode ser um ensaio para uma qualquer utopia, uma experiência que tenta provar que é possível erguer novas histórias, novas realidades, novos valores e interesses. E assim sendo, escrever sobre estes momentos será uma forma senão de os perpetuar (“nada dura para sempre”, não é o que diz o poeta?) pelo menos de os fazer durar mais um pouco, certo? Haja quem, portanto.

Ontem foi especial, o Jazz em Agosto, e a diversos níveis: com o ar mais limpo, uma vez já extintos os fogos mais próximos, de acordo com os noticiários, e em dia de agitação nas redes a propósito de um lamentável caso de racismo aqui mesmo ao lado, foi maravilhoso ver sete rostos negros em palco, quatro deles de mulheres, a pegarem nos blues para nos elevarem a todos e a todas com a mesma força. Mas antes de termos visto o anfiteatro ao ar livre da Gulbenkian transformar-se numa nave – uma Ark — que nos transportou até uma galáxia mais justa, houve tempo para ver e escutar Jaimie Branch e Jason Nazary a transformarem o Auditório 2 do edifício sede numa câmara hiperbárica capaz de nos devolver a todos à pressão certa graças à combinação precisa de estímulos visuais e aurais, numa sessão de psicadelismo free como certamente nunca antes se viu neste evento.

A foto que Jaimie colocou nas suas redes deixa claro que o trompete é apenas uma das ferramentas à sua disposição: um conjunto de controladores, sintetizadores, efeitos e outros dispositivos electrónicos serviu para, juntamente com idêntico arsenal do ainda baterista Jason Nazary, preencher o espaço aural disponível com uma densa neblina de bleeps e bloops, uma espessa massa electrónica sobre a qual se escutaram uma bateria com músculo rock feita de tensas e insistentes repetições, sem adornos tecnicistas de qualquer espécie, e breves arremedos de trompete que nunca chegaram a alcançar o estatuto de “solo” – mais tweets do que posts longos, mais gritos repentistas do que discursos ponderados.

Jaimie vestia jersey de futebol americano a referenciar o mítico segundo álbum dos Outkast, com um Sapo Cocas dependurado do suporte de microfone, qual artefacto de carácter simbólico-pagão disposto ali para abençoar o absurdismo apresentado (“it’s not easy being green”): também não há-de ser fácil ser uma trompetista punk que se está nas tintas para as regras e apostada em mostrar que há outras maneiras de se encaixar num festival de “jazz” para lá de ensaiar uma maior ou menor aproximação à mesma tradição que Wynton Marsalis preserva na redoma do Lincoln Center. E até deu para ouvir Branch a não tentar disfarçar o facto de não fazer ideia de como é que se canta ao entregar-se de plenos pulmões a “Earthlings”, tema do novíssimo Pink Dolphins que fala sobre fazer sentido enquanto lá atrás um dinâmico ecrã caleidoscópico nos forçava a entrar noutra dimensão em que isso pouco importa. Havia muita gente a coçar a cabeça no final: “mas que raio acabou de se passar aqui?”. Diga-se, no entanto, que a resposta deve ser muito menos valorizada do que o acto de alguém ter forçado a colocação da pergunta.



Mas o momento realmente especial veio no final, já após se vislumbrarem uma série dos tais momentos de que se falava no início deste texto. O concerto do Black Monument Ensemble de Damon Locks foi qualquer coisa. Melhor espectáculo do ano para quem assina estas linhas (e quem assina estas linhas, esclareça-se, já viu meia dúzia de coisas valentes em 2022). Depois da verdade abstracta dos Anteloper, os blues segundo o Black Monument Ensemble. “Os blues”, ensinou-nos LeRoi Jones, aka Amiri Baraka, em Blues People, livro publicado originalmente em 1963, “à medida que se cristalizaram na sua própria forma estrita, era a música mais queixosa e melancólica que se poderia imaginar”. Damon Locks pretende erguer um novo monumento a essa criação negra e americana, através da performance que nele é não apenas acto criativo, mas igualmente gesto político e libertador.

O ensemble que Locks ontem dirigiu há-de, certamente, ser dos mais originais em termos formais de que há memória no cartaz do Jazz em Agosto: ao seu lado dispuseram-se as cantoras Erica Nwachukwu, Monique Golding e Tramaine Parker (curioso que em dias de intensa discussão sobre as complexas questões de género apareçam no programa oficial referenciadas como “cantores”); Angel Bat Dawid foi a portentosa clarinetista de serviço; e depois havia ainda Arif Smith em congas, talking drum e outros tambores africanos e o incrível baterista Dana Hall; ao líder couberam não apenas os disparos de certeiros loops criados seguindo as regras hip hop e de discursos pré-gravados, mais ainda os ocasionais assomos ao microfone (aqui sem recurso ao “efeito Burroughs” que usou enquanto membro da Exploding Star Orchestra) e, pois claro, a interpretativa dança em que voltou a misturar movimentos de tai-chi, de artes marciais asiáticas, sul-americanas e africanas, de b-boying e algo mais.

A música fez-se, sobretudo, de uma moderna reinterpretação do impulso primordial dos blues, algo de que Moor Mother também fala, mas afastando-o da ideia do lamento e da melancolia referenciada por LeRoi Jones e apondo-lhe ao invés noções de orgulho, júbilo e exaltação. Os incessantes poli-ritmos conjurados por Hall e Smith nunca abandonaram África, o que nos abriu a performance a uma simbólica leitura – afinal de contas esta foi em tempos capital de um Império erguido, precisamente, à custa da exploração das vidas humanas desse grande continente: harmonizou-se a palavra “amor”, exaltou-se a ideia de comunidade, cantou-se a negritude e a sede de futuro – “I can rebuild a nation”, exclamou-se em viva voz. A dada altura, Angel entregou-se à polifonia vocal de olhos fechados e punho erguido com a mesma seriedade com que executou solos de comedida perfeição, posicionando-nos numa imaginária, passada e espiritual Nova Orleãs enquanto ali mesmo ao lado, na Congo Square, ribombavam os tambores. Performance, sim; entretenimento, nunca. E quando num loop disparado por Damon se propõe o grave do kick de uma 808 como medida para o entrelaçar das percussões de propulsão humana, essa é a mais perfeita tradução da ideia de afro-futurismo.

Interessante notar que um concerto de destaque num festival como o Jazz em Agosto não convocou para cima do palco nenhuma das ”vozes” instrumentais normalmente associadas ao género: não havia saxofone ou trompete, nem piano ou contrabaixo e a bateria, instrumento que de facto integra muitos dos combos tradicionais do género, nunca se remeteu ao plano secundário de gestora do tempo e do swing, optando antes por assumir uma dianteira que foi rítmica, obviamente, mas também muito mais, lembrando pela repetição os poderes cerimonial e espiritual que possui em muitas culturas. A bateria foi aqui o portal para uma dimensão alternativa, a verdadeira fundação do tal monumento negro que Damon Locks ontem tornou visível através da performance. Dizer que foi extraordinário, muito sinceramente, é dizer pouco.


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