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Fotografia: João Octávio Peixoto
Publicado a: 08/11/2022

Em pedra.

Ill Considered no Mucho Flow’22: quando a terra treme a gente flutua

Fotografia: João Octávio Peixoto
Publicado a: 08/11/2022

(Desafio para esta pequena crónica: não usar a palavra “visceral” no retrato/análise do concerto dos Ill Considered na cave do Teatro Jordão, em Guimarães, no passado sábado…)

Emre Ramazanoglu à esquerda, na bateria; Liran Donin, ao centro, no baixo eléctrico; Idris Rahman, à direita, no saxofone tenor. Power trio, na verdadeira acepção da palavra. Ao jantar, um par de horas antes, os três membros dos britânicos Ill Considered confirmavam que a estratégia para o seu concerto de estreia em Portugal como parte do cartaz do Mucho Flow era a mais simples possível: “chegar lá e tocar”. De facto, os Ill Considered são um caso particular e encará-los como parte da efervescente cena britânica só por causa do que possa constar nos seus passaportes é um desfavor: o trio desenvolveu nos cinco anos que já leva de actividade uma intensa e feroz abordagem à criação musical que passa por uma rigorosa devoção à livre improvisação, como bem documentado na dúzia de edições que já soma. E mesmo em Liminal Space, o álbum de 2021 para que recrutaram aliados como Theon Cross ou Sarathy Korwar, o facto de as sessões terem sido mais “estruturadas” não significou exactamente que tenham entrado em estúdio com material pré-composto, apenas que definiram ordens de entrada para cada um dos solistas de forma a ninguém se perder no meio dos autênticos turbilhões sónicos que os três são capazes de gerar. Essa aversão à repetição é uma das marcas que os distingue de boa parte dos pares que no país do Brexit se têm dedicado a insuflar novos pulsares nesta coisa a que (ainda…) chamamos “jazz”.

E foi assim, em Guimarães. Desde o primeiro momento que se percebeu que os Ill Considered não estavam interessados em fazer prisioneiros, apenas em não deixarem pedra sobre pedra, entrando por aquela cave dentro como um rolo compressor num campo de malmequeres. Ramazanoglu é uma autêntica locomotiva, um portento de força que apesar de tocar musculadamente tem um discurso rítmico cheio de subtilezas que nos diz que nem o peso, nem a velocidade podem servir de desculpa para a falta de inventividade. O seu trabalho nos pratos e as síncopes que gera com o jogo entre a tarola e o bombo têm um sem fim de nuances que os seus companheiros entendem como curvas na estrada. Liran Donin usa o Fender Precision como gerador de grooves infinitos, é a luz na frente da tal locomotiva, a linha contínua num mapa de território desconhecido, sem nomes que nos indiquem sequer em que continente estamos. E depois há Idris Rahman: a linguagem corporal do saxofonista faz lembrar o vocalista de uma banda de hardcore, sempre curvado, perdido no olho do furacão que ele próprio conjura: frases curtas, riffs furiosos como gritos, atonalidade que agita e força os corpos amontoados na plateia ao movimento. Só que, apesar de toda a força, a música dos Ill Considered nunca perde o norte, mantendo sempre a constância do groove como uma granítica base para o delirante discurso solista do saxofone.

Vimos dois concertos de “jazz” recentemente para plateias de pé (não são assim tão vulgares, por cá): este dos Ill Considered, no Mucho Flow, e o de Alabaster DePlume, no Jazz ao Centro. Em ambos, no centro de tudo, estiveram saxofonistas que não se encaixam na norma dos sopradores desta cultura, dois singulares criadores. O que tocou em Coimbra, no entanto, tem um discurso meditativo e espiritual, ao passo que aquele que se apresentou em Guimarães é todo ele nervo e músculo. Curiosamente, ambos são capazes de nos fazerem levitar – um, porque tem um espírito que eleva, e o outro porque faz tremer o chão. Precisamos de ambos.


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