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Fotografia: João Duarte
Publicado a: 26/09/2022

Uma energia de combustão lenta.

Alabaster dePlume no Jazz ao Centro’22: “do que é que precisam?”

Fotografia: João Duarte
Publicado a: 26/09/2022

Quando questionado sobre o que virá a seguir, em conversa mantida na Casa das Artes Bissaya Barreto algumas horas antes do seu concerto no Salão Brazil, Alabaster DePlume responde: “do que é que precisas?” A pergunta foi repetida durante o seu demorado concerto com genuíno interesse. O saxofonista-poeta-filósofo acredita que faz música para, precisamente, responder a essas imperiosas necessidades e não separa a sua prática desse benigno encontro com as pessoas. DePlume insiste: “a música fazemo-la juntos e por isso é sempre diferente. Cada comunidade diz-me, através da sua disposição e energia, aquilo de que necessita”. GOLD, o seu mais recente trabalho, lançado na primeira metade do ano pela International Anthem, surgiu com essa intenção, e o músico acredita que tem uma qualidade “curativa” o que ajuda a explicar a sua dimensão espiritual, no sentido musical do termo, claro.

Na verdade, no concerto de ontem foram convocados – e homenageados – dois espíritos: o de Pharoah Sanders, em primeiro lugar. O músico norte-americano passou a outro plano aos 81 anos e a notícia chegou a DePlume em mensagem enviada por Gilles Peterson, contou-nos. A vénia não podia deixar de ser feita até porque Alabaster reconhece o malogrado mestre como uma influência funda. A outra forte presença sentida foi a de jaimie branch – j-breezy, como o saxofonista fez questão de nomear a trompetista que nos deixou há cerca de um mês. Na conversa tida na Casa das Artes, DePlume confessou-se chocado e zangado com a inesperada partida da artista de Fly of Die e revelou-nos que estavam a trabalhar juntos em nova música. “A sua partida deixou-me revoltado, zangado. As pessoas pensam que a ira é uma coisa negativa, mas eu acho que depende de como a aplicas e das razões que a fazem nascer”. Já dizia esse outro poeta-agitador, Johnny “Rotten” Lydon, que “a raiva é uma energia”. E energia, de facto, foi algo que não faltou na apresentação coimbrã deste singular artista que chegou de Lisboa de baterias claramente carregadas. Mas é uma energia de combustão lenta, disposta em música circular, com algo que nos remete para uma África mais interior, embora não seja fácil identificar coordenadas exactas (talvez entre a Etiópia e a música devocional sufi?).

Acompanhado por Conrad Singh e Marcelo Viana Frota, ambos em guitarras e vozes, e Donna Thompson em bateria e voz, DePlume brilhou de forma intensa. Habituado a recrutar músicos em cada nova paragem, Alabaster ainda tentou convencer José Miguel Pereira, o homem do leme do Jazz ao Centro, a subir ao palco com o seu contrabaixo, missão em que não sucedeu já que questões logísticas imperiosas se atravessaram à frente de tal ideia (um festival, mesmo um com esta micro-dimensão, não se faz sozinho). Ainda assim, o quarteto sem baixo preencheu o espaço sonoro disponível com distinção, fazendo uso dos dois instrumentos de cordas para proporcionar ao líder – que num par de momentos também trocou o seu tenor por uma guitarra – um discreto amparo harmónico para que as suas palavras e o seu instrumento pudessem brilhar. Alabaster é um performer na verdadeira acepção da palavra, alguém que se entrega fisicamente à arte, que se empenha e que sem reservas salta sempre sobre o abismo de olhos completamente abertos. E não há – e quem isso garante já o viu ao vivo em três países diferentes e em contextos, de público e de programação, igualmente bem distintos – um pingo de artifício no “número”: nem um compartimento secreto dentro da cartola, nem fumo ou espelhos ou distrações desenhadas para não percebermos o “truque” já que tudo ali é genuíno – palavrões, crípticas mensagens atiradas como setas directamente ao coração, incentivos à levitação ou à dispensa do medo… E isto na parte poética, sempre tingida com humor, porque a verdade parece aceitar-se melhor de sorriso estampado no rosto. Alabaster sorri sempre, até quando toca o seu instrumento, naquela abordagem oblíqua que o caracteriza, atacando a palheta de um ângulo improvável, característica que lhe confere um tom altamente personalizado, nada canónico. E se o que arranca ao instrumento é simples, como de resto a música que faz e que não se detém em idiomas concretos, já o resultado que logra alcançar, de um empolgamento emocional verdadeiro, é talvez mais complexo do que se julgaria à partida. Ou é magia ou humanismo em acção. Se calhar até as duas coisas, ao mesmo tempo. Talvez porque seja exactamente isso o que todos precisamos.

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