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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 06/10/2022

Pluralidades.

Imaterial’22 – 5 de Outubro: em Évora, os tesouros musicais do mundo são património vivo e urgente

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 06/10/2022

O Festival Imaterial decorre em Évora até ao próximo domingo. Nesta segunda edição, este jovem festival compromete-se com o futuro e, no seu programa, explica que se quer fazer “pensando, reflectindo e divulgando o património dos povos de todo o mundo, espalhando as suas visões da vida e contribuindo para um entendimento mais pleno e harmonioso entre aqueles que habitam o planeta em cada momento histórico”. Não é coisa pouca, mas se é preciso apontar, aponte-se para cima.

Em dia de republicano feriado, o evento que arrancou no passado dia 1 propunha um programa variado, reflexo dessa ambição que lhe dita os passos: a estreia mundial de um documentário sobre Malan Mané, lendário cantor dos guineenses Super Mama Djombo, com a presença da académica Lucy Duran; a apresentação de um importante projecto académico, “É Preciso Avisar Toda a Gente”, coordenado pelos investigadores da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Manuel Deniz Silva, Ricardo Andrade e Hugo Castro e que se propõe estudar a canção de resistência portuguesa durante a ditadura criada por artistas exilados; e ainda dois concertos no salão nobre da cidade, o Teatro Garcia de Resende – da portuguesa Amélia Muge e das galegas Tanxugueiras.



A estas últimas coube o fecho da noite com uma festiva apresentação. As três artistas combinam tradições fundas da Galiza, de canto e dança, com uma moderna barragem rítmica. E se em certos momentos a colagem pode soar mais forçada, denotando uma natural ambição comercial — criam, nitidamente, música para impactar grandes multidões –, quando esse artifício é colocado de lado e as três cantoras, os seus coreografados movimentos e as pandeiretas se fazem ouvir em harmónicas e polirrítmicas combinações, a verdade funda da tradição que representam no presente vem ao de cima com cativante energia.

O momento alto, porém, coube a Amélia Muge. Em palco com Catarina Anacleto, violoncelo e voz, Maria Seia, percussão e voz, e Rita Maria, mais uma voz, as geniais Amélias que a multifacetada artista expôs no seu mais recente trabalho — sem a menor sombra de dúvida, um dos melhores registos discográficos do ano (e repare-se que se dispensa aqui a limitativa palavra “nacional”) — ganham distinta vida, sublinhando o óbvio facto de que palco e estúdio são dimensões paralelas, mas com fronteiras muito claras.

Ao Garcia de Resende Amélia Muge levou um exuberante “ensaio”, como lhe chamou na entrevista que nos concedeu e num dos momentos em que comunicou com o público que praticamente lotava a sala, mostrando como a arte de estar em palco pode ser gizada até ao último pormenor e ainda assim surgir fresca, palpitante, urgente e orgânica. 

As quatro artistas elevaram a um novo patamar o repertório de Amélias, que Muge criou em modo solitário, operando tecnologicamente o “milagre” da multiplicação da sua própria voz. Em palco, a imaginação enunciada originalmente no estúdio por Amélia e o seu mais directo cúmplice António José Martins ganha outra cor. O som, operado por Martins, é pleno de nuances e os microfones suspensos parecem captar até a mais leve respiração daqueles corpos que são também instrumentos – as palmas são apenas uma das manifestações de tal condição. Há ainda a cuidada dimensão visual a partir das ilustrações criadas para o belíssimo objecto físico que é o CD de Amélias (esta pode ser uma arte imaterial, mas ainda bem que há quem a resguarde para o futuro em edições que se podem manusear e admirar e cuidar), algo que contribui para a experiência imersiva do concerto.

Amélia Muge dedicou o seu espectáculo às mulheres, às que morrem no Irão em nome da liberdade, às que em Moçambique insistem em cantar, às que por todo o lado existem e nos mostram o mais fundo de si. Os ecos de diferentes tradições — do fado ao cante e mais além — ressoam de forma muito subtil e inteligente na música de Muge, um tesouro vivo de que todos podem desfrutar bastando para tal que abram os ouvidos. E este espectáculo é, literalmente, uma demonstração do poder da criatividade, a prova de que o passado, o futuro e o presente são meras ilusões se quem canta o faz para se ligar a todos os que antes fizeram o mesmo e para que quem venha depois tenha algo a que se agarrar.

É esse, no fundo, o desígnio deste Imaterial: revelar os tesouros que o mundo foi oferecendo à história e que os dias de amanhã não podem esquecer. E agora mais do que nunca.


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