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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 13/07/2020

Um monumento vivo em discurso directo.

Gary Bartz: “Nos EUA, não somos ensinados nas escolas de forma correcta”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 13/07/2020

O veterano Gary Bartz assinou recentemente um novo trabalho com os jovens britânicos Maisha. O EP foi carimbado pela editora inglesa Night Dreamer na sua série Direct to Disc, sessões em que os músicos são desafiados a registarem novos trabalhos cujos masters são directamente cortados em acetato. Seun Kuti ou Seu Jorge já participaram nessas sessões e Emma-Jean Thackray assina a próxima edição na série. Para Gary Bartz foi uma novidade absoluta e, em conversa no Zoom, com um fundo cósmico por trás que só reforçou a ideia de que estávamos a conversar com um ser de outra dimensão, o veterano que trabalhou com gigantes como Max Roach ou Art Blakey, Miles Davis ou Pharoah Sanders admitiu que nunca tinha feito nada assim.

Bartz está prestes a completar 80 anos, mas continua hiper-activo: dá aulas, faz concertos e, claro, grava discos como o que se traduziu neste encontro com os Maisha, jovens da nova geração que tem despontado em Inglaterra nos últimos anos. E para esse encontro, Bartz levou não apenas o seu saxofone, mas também a longa história que possui.

A sua discografia em nome próprio inaugurou-se em 1967, com Libra, o primeiro de uma série de álbuns para a Milestone, incluindo o mega-clássico Harlem Bush Music – Uhuru. Seguiram-se ligações à Prestige ou à Capitol para que gravou o belíssimo Music Is My Sanctuary, trabalho de 1977 que contava com produção dos Mizell Brothers e que é hoje encarado como um tesouro no panteão do jazz temperado com mais groove.

Como sideman, Bartz gravou com inúmeras personalidades, de Joe Chambers a Roy Ayers, de Cindy Blackman a Donald Byrd, de Alphonse Mouzon a Jackie McLean e de Leon Thomas a Miles Davis, claro, com quem andou na estrada na era de Bitches Brew. É, e é justo referi-lo, um monumento vivo. Mas não é o peso da história que lhe tolda a visão e Bartz faz questão de aplaudir as novas gerações e admite que é tanto professor como estudante. E sobre quem lhe sampla os discos? “Fizemos o mesmo com o Charlie Parker e o Beethoven”.



Olá!

Bom dia! 

Muito obrigado por atender a chamada. Quero começar por falar deste disco com os britânicos Maisha. Como é que isso surgiu?

Bem, Gilles Peterson, não sei se sabe quem é o Gilles…?

Sim, claro. 

Ele sugeriu que colaborássemos e marcou-nos um concerto num festival chamado We Out Here. Eu vim e conheci os rapazes. E gostei deles. Gostei da maneira que eles pensam a música, e eles são boas pessoas, no geral, o que é sempre importante para mim. 

Eu ia perguntar-lhe precisamente sobre isso: o quão importante é ter uma certa química espiritual para um trabalho destes poder acontecer?

É sempre importante. O que também é importante é que eles sabem ouvir. Eles ouvem-se uns aos outros porque eles são uma banda e qualquer banda tem que aprender a ouvir todos os seus membros, até porque tocam uns com os outros a toda a hora. Mesmo que eles não tentem ouvir, a verdade é que acabam sempre a ouvir: porque têm que o fazer. E aí começam a compreender a musicalidade de cada um e acabam a ajudar-se uns aos outros. Mas é o ouvir que faz diferença. 

O Miles Davis costumava dizer: “não toques tanto, ouve”.

Sim. O Miles era o melhor ouvinte de sempre. Ele era como o Muhammad Ali. E foi por isso que ele continuou a mudar a música: ele conseguia ouvir coisas. E conseguia ouvir coisas internas, que vinham de dentro, e depois ele ouvia o que vinha de fora. Aí, ele juntava o que tinha ouvido internamente e aquilo que tinha gostado do que vinha de fora. E ele mudava as coisas porque tinha de ser diferente.

Este novo jazz britânico é muito vibrante, há muitos discos a saírem, novos clubes a abrirem para essa música ser tocada por estes jovens, muitos dos músicos solistas são mulheres, podemos ouvir pessoas como Nubya Garcia a tocar saxofone, Emma-Jean Thackray a tocar o trompete, o que é pouco usual… Passou pelo festival We Out Here, que o Gilles organiza, que tal lhe pareceu esta nova cena? 

É refrescante. Muito refrescante. Como um bom copo de vinho branco [risos]. Fico sempre feliz pelos jovens músicos de todas as gerações que mantiveram isto a andar. Em todas as formas de arte, são os jovens que mantêm a chama acesa. Nunca houve uma inovação neste tipo de música que não viesse através de 1) uma banda profissional, que trabalhe regularmente e que tenha estado pelo menos um ou dois anos com os mesmos membros; e… qual era a segunda coisa? [Risos] Hum, mas é importante para os músicos que estejam juntos e ouçam. Quando a banda está junta, eles têm de se ouvir uns aos outros todas as noites. 

Do que é que se lembra da sessão? Sei que vocês estiveram juntos na Holanda durante um dia. Como é que a sessão correu? Quer dizer, você é um veterano e esteve nesta situação muitas vezes, mas como é que correu esta sessão em particular?

Na verdade, eu nunca estive numa situação como esta porque esta foi uma gravação “direct to disc” e eu nunca tinha feito isso. Cada vez que vou para o estúdio, eu aprendo algo. Todas as vezes. E eu já estive milhares de vezes em estúdio. Isto foi como se se tratasse de uma gravação ao vivo. Não podes repetir, não podes corrigir nada, ao contrário de muitas das gravações de hoje em dia. Elas saem e todos os erros… e existem sempre erros. E devem existir erros! E isso para mim é um problema com a música moderna, é não existirem erros. E o Miles costumava dizer aos músicos, “eu amo os teus erros”. Porque erros são parte de criar. E como tu tratas os teus erros é o que te define enquanto músico, muitas vezes. Há pessoas que tratam os erros como se fossem a pior coisa que já aconteceu e livram-se deles. Há outras pessoas, “oh, eu gosto disso, deu-me outra ideia”. Tudo depende da forma como tratas os teus erros. Mas toda a gente comete erros. Todas as grandes gravações têm erros. Todas! 

É muito verdade. Eu lembro-me de entrevistar um líder de uma banda africana, talvez há 10 anos, e nós estávamos a falar das gravações, que eram sempre ao vivo… era uma banda do Benim. Ele referiu que todos os discos que eles fizeram tinham erros, porque não havia maneira de corrigir as gravações. E disse-me algo como: “só é um erro se o fizeres uma vez, se o repetires deixa de ser um erro”. 

[Risos] Certo, certo…

Fez este EP com Maisha, mas vai haver mais encontros no futuro? É o primeiro de muitos?

Oh, eu espero que sim. Eu tenho trabalhado em material porque este projecto aconteceu rápido. Eu gostava de ter tido mais preparação porque teria pensado sobre o assunto. Sem saber e sem nunca ter passado pelo processo, eu não sabia como iria correr. Agora que vi como tudo se processa, o próximo será ainda melhor. 

Aqui estamos, a falar através desta tecnologia, Zoom, e provavelmente interfaces digitais foram parte da equação quando estavam a discutir o projecto. O que quero perguntar é: o quão diferente é esta realidade musical em 2020 se a compararmos com o final dos 60s/início dos 70s, quando começou a fazer o seu nome?

Eu acho que música é uma forma de arte para os ouvidos. Para ouvir. Então, não interessa quando, onde, como… é o mesmo processo. Quer dizer, Beethoven fez o que nós estamos a fazer. Nós estamos a fazer o que o Beethoven fez. Nós estamos a fazer o que Mozart fez. Nós estamos a fazer o que Bach fez. Mas estamos a fazer… eu não diria melhor, mesmo que eu ache que seja melhor. Eu acho que é melhor porque nós descobrimos uma maneira de fazê-lo com um grupo de pessoas. Bach só conseguia fazê-lo sozinho. Ele só conseguia sentar-se e criar do nada mas sozinho. Ele não tinha um baixista, ele não tinha um baterista e outras pessoas. Nós percebemos como fazer isto com um grupo de pessoas, por isso o processo é, na verdade, tema e variações. É isso que andamos a fazer. Nós tocamos o tema e as suas variações. Como gosto de dizer, todos os grandes músicos fizeram isso. Eu não acho que seja diferente. Todas as gerações têm de enfrentar as mesmas 12 notas [risos]. O meu amigo Larry Willis estava sempre a dizer, “o desafio quando me sento ao piano é 10 contra 88”. 

No início dos 70s, quando formou a NTU Troop, o que é que alimentava essa incrível música que vocês fizeram? Obviamente, havia algumas ideias políticas radicais no ar, mas como é que tudo aconteceu nessa altura?

Nos anos 60, o mundo era tão volátil que eu não achei que precisasse de outro músico. Nós tínhamos o suficiente disso. Todos eram músicos. Todos cantavam ou tocavam algo no secundário. Eu comecei a sentir que as coisas eram demasiado sérias para eu ser apenas um músico, por isso pensei em juntar-me aos Black Panthers, ou algo do género, porque eles estavam prontos para a luta, para se oporem à guerra, o Vietname estava a acontecer. Essa teria sido a minha guerra, Vietname, e eu não tinha intenções de ir para o Vietname. Eu não estava chateado com eles [risos]. Através da minha amizade com o Max Roach, Charlie Mingus e pessoas como essas, nós tínhamos discussões… nós não éramos ensinados de forma adequada na escola. Eu não sei como é o vosso sistema, mas nos EUA não somos ensinados da maneira correcta, por isso tive de aprender depois de deixar a escola. Muito dos meus 12 anos na escola foram um desperdício. E eu cresci numa cidade segregada, havia apenas três escolas que eu podia frequentar e o sistema educativo, mesmo sendo uma grande cidade, não era de qualidade. Mas como eu estava a dizer, encontros, debates, fui-me cruzando com quem pe podia ajudar a educar-me, gente com casas cheias de livros, como o Max Roach… ele recomendou-me uma livraria onde eu poderia encontrar livros com informação real, Ninguém nos recomendava estes livros na escola porque na verdade não queriam ensinar-nos porque eles achavam que demasiada informação poderia ser perigoso [risos]. Como nós podemos ver hoje em dia, nós temos tanta informação que é mais fácil dizer algo como “fake news”. É mais fácil dizer isso porque está em todo o lado. Mas as pessoas têm que ser espertas o suficiente para perceber o que é fake news e o que não é. Têm que perceber o que está errado naquilo que lhes estão a ensinar. Isso diz respeito ao indivíduo. A família e os pais têm de ajudar nesse trabalho. Não podemos contar com os professores, nós temos que contar connosco. Mas eu aprendi isso com o Max Roach e o Charles Mingus. E aí vi que a existia uma maneira da música ser uma força do bem e mais do que apenas entretenimento. 

Uma força de transformação, mesmo. Eu ia-lhe perguntar sobre o Miles. Você já falou de Max Roach, Charlie Mingus e o Miles? O que é que diria que o Miles lhe ensinou?

Oh! Ensinou-me tanto. Muitas coisas. Se és um estudante, saberás sempre como aprender. Se fores realmente um estudante. Algumas pessoas não são. Eles dizem que são, mas eles não o são. O Miles era um estudante. Sempre um estudante. O John Coltrane? Sempre um estudante. Professor também, claro. Todos os professores são estudantes. É um círculo. Quanto melhor o professor, melhor o estudante. Mas ele ensinou-me muito. Coisas sobre o negócio, a forma como comandava a banda ou criava música, a maneira como ele pensava sobre música. 

E você carregou essa tocha: tornou-se um professor. E hoje em dia está a usar estas novas tecnologias para ensinar. O quão gratificante é ensinar? É uma benção, mas também é uma responsabilidade?

Sim, é uma responsabilidade, mas como costumo dizer é um círculo. Porque eu estou a aprender também. Eu estou sempre a aprender. Perguntou-me sobre o Miles e foi isso que aprendi que ele. Ele era um professor, mas também foi sempre um estudante. Ele estava sempre a ouvir, sempre a pensar, sempre a sonhar. E estava a inovar. Mas era por isso que ele conseguia inovar: porque conseguia ouvir e aprender. Era como o John Coltrane. Trane? Que ética de trabalho. Ele só fazia isso [risos]. Ele só praticava. E é isso que digo aos meus miúdos agora. Nós temos feito as aulas por Zoom e uma coisa que a maioria deles diz é: “eu não posso tocar com ninguém, eu tenho saudades de tocar com pessoas”. Mas eu digo-lhes que tocar com outras pessoas é o resultado… O Charlie Parker, por exemplo, tocou durante três anos e meio na casa da sua mãe. Sozinho. 12 a 15 horas por dia. Parece que o que estou a fazer resulta quando o faço em casa, parece resultar quando saio e toco com outras pessoas. Mas é o que fazes em casa… aí é que está o trabalho. E nós fomos postos numa situação em que temos de ficar em casa, por isso duh! É melhor trabalhares [risos]. 

Isso é sempre uma boa ideia, tenho a certeza. A sua música tem sido samplada por alguns dos grandes do hip hop, Jurassic 5, por exemplo, ou a Tribe Caled Quest. O que é que pensa quando pessoas novas reciclam a sua música através do sampling?

Eu acho que não é diferente de nós samplarmos o Charlie Parker ou Louis Armstrong. Ou Scott Joplin. Ou Bach. Ou Beethoven. 

É tudo parte da mesma reciclagem de ideias e energia. É uma boa forma de ver esta prática. Última questão: no que é que está envolvido aGORA? Há novos discos a caminho?

Há uma gravação com o Adrian Younge e o Ali Shaheed Muhammad. Isso deve estar quase a sair. Eu estive numa gravação com A Lakecia Benjamin — e estou no último álbum dela. Tenho algumas gravações minhas que quero meter fora. Há-de acontecer, certamente.


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