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Publicado a: 08/06/2018

Four Tet: quarteto de um homem só

Publicado a: 08/06/2018

[TEXTO] Diogo Pereira [FOTO] Direitos Reservados

“Sleep, Eat Food, Have Visions”

É este o título de uma das faixas de Four Tet, e o seu autoproclamado modus operandi artístico e modo de estar na vida, mais do que adequado a um músico cuja obra evoca o lado mais onírico, espiritual e emocional da música electrónica. Citando o próprio:

“You try to make something that takes people as far away from Earth as possible, something to be played in a very small room with all the lights off with the loudest sound you ever heard that makes you feel as weird as possible. That’s what I’m trying to achieve.”

Four Tet, o nome artístico de Kieran Hebden, refere-se tanto ao seu impressionante ecletismo musical como à sua ampla visão artística, misturando sons orgânicos com texturas electrónicas, e colaborando com músicos de todos os géneros.

Nascido em Londres, em 1977, de pai inglês e mãe indiana, Kieran dedicou a sua vida a explorar uma vasta gama de sonoridades diferentes, do techno experimental ao indie rock, da folk pastoral à música indiana, do house mais melódico à eletrónica de vanguarda, do free jazz à música concreta.

Tudo começou com os Fridge, a sua banda de adolescência, formada em Putney com os seus amigos de liceu Adem Ilhan e Sam Jeffers. Este trio instrumental lançou cinco álbuns bem recebidos e actuou como a banda ao vivo de Badly Drawn Boy no verão de 2000, em digressão pela Europa e pelo Japão. Estávamos em plenos anos 90, no auge do post-rock, que tinha aparecido em 1994 com Hex dos Bark Psychosis.

A música dos Fridge (em que Kieran tocava guitarra) era uma mistura ecléctica e abstracta entre estética shoegaze, texturas ambientais e rock instrumental, com baixos líquidos, bateria potente, guitarras agressivas, e toques de jazz e eletrónica, que devia tanto ao post-rock jazzístico dos Tortoise como à melancolia dos Labradford e à força muscular dos Mogwai, e já deixava adivinhar o talento de Hebden (nomeadamente, o seu apetite por melodias e a sua sede de experimentalismo), por meio de toques de electrónica mais vanguardista e uso de sampling e loops (como em “Cut Up Piano and Xylophone”, peça delicada reminiscente do minimalismo de Reich ou Riley, do álbum Happiness). E tal como a música que a inspirou, conseguia ser enigmática e interessante.

 



O grupo separou-se no início do milénio para seguir carreiras e projectos a solo, e continuar os estudos. Quanto a Kieran, inventou um pseudónimo, e começou a fazer música electrónica graças a um software muito especial, que lhe permitiu fazer algo que sempre quisera fazer mas que nunca conseguira até ali:

“I was playing guitar first and then I had a four-track. I never had a sampler. I could never ever make a loop off of a record, and it was all I wanted to do – there were four or five years of wishing and dreaming I could just loop something off a record, but I didn’t have a piece of equipment that could get me to that. And samplers were expensive at the time, so I couldn’t sample anything at all. But I had millions of ideas about it.

In college, one of the first things I did was get a student loan and buy my first ever computer. The guys from Simian Mobile Disco – way before they were Simian Mobile Disco – were in my computer science study course and they gave me this software for a program called Cakewalk. I was able to sample records and sequence them for the first time ever. That’s when the whole Four Tet thing started.”

E o começo foi logo auspicioso: o primeiro single de Kieran enquanto Four Tet, “Thirtysixtwentyfive”, é uma peça longa, formidável e ecléctica que mistura doces melodias de guitarra acústica e baixo em loop com eletrónica experimental na forma de ruídos estranhos (os “buzzing stereo noises” de que nos fala a voz feminina na segunda parte), como uma harpa distante e um violino dissonante, texturas ambientais (como cristais cintilantes), percussão jazzística, batidas sintetizadas, solos de clarinete e uma dose saudável de sampling. Ouve-se aqui a influência dos seus tempos post-rock com os Fridge, no ritmo que carrega toda a peça, mas há uma inegável presença de eletrónica (sobretudo aquilo a que John Oswald chamou de plunderphonics), e afinidades com o jazz e a música improvisada. O resultado é música de fusão cheia de beleza e mistério, com alguns momentos de tranquilidade, e outros de tensão e energia. É também uma das suas peças mais experimentais (pouco aqui é imediato e acessível, a começar pela duração), sobretudo comparada com as suas incursões mais tardias pela música de dança.

E revela outro dos aspectos pelos quais é mais conhecido: a sua independência (não tem agente e é ele que organiza as suas digressões), tendo sido escrito e produzido pelo próprio a partir do seu quarto.

 



Seguiu-se a sua estreia a sério, Dialogue, na mesma casa de sempre (que editara os discos dos Fridge), a Output de Trevor Jackson, que confirmou os seus talentos e fez adivinhar um sucesso ainda maior. Mais uma vez orgulhosamente experimental, e mais uma vez difícil de categorizar, a música aqui é de uma simplicidade enganadora, baseada em melodias de jazz e música indiana e batidas imprevisíveis misturadas com ritmos hip hop que não saem do tempo médio. Sempre para ouvir, nunca (ainda não) para dançar.

Descrito como “eletrónica orgânica” por Marc Gilman da AllMusic – expressão que viria a ser usada amiúde para descrever a sua música – o que distingue Four Tet dos demais contemporâneos da electrónica é a presença de sons naturais e analógicos. De facto, embora esta música seja feita com equipamento digital, nunca soa fria, distante ou artificial. É música orgânica composta com métodos electrónicos. A maioria do álbum é acústica, e constrói-se em torno de breaks clássicos de jazz-funk e soul, em cima dos quais Hebden coloca texturas electrónicas e ambientais, loops de jazz e curiosas passagens de música indiana, assemelhando-se a um disco de hip hop instrumental com elementos de jazz e world music, como Endtroducing. Ou seja, são exercícios sampladélicos de plunderphonics tanto quanto são jam sessions com instrumentos a sério.

Pouco há aqui de sintetizado, a começar pelas batidas, que parecem clássicos breaks de hip hop desenterrados de antigos clássicos de funk (como o de Bernard Purdie em “Changes”, ou o dos Sly & The Family Stone em “3.3 Degrees From The Pole”), o que faz de Dialogue muito semelhante ao clássico de DJ Shadow, uma espécie de disco de hip hop instrumental com atitude jazz. Formalmente, estamos na presença de electrónica, pelos componentes (beats, samples) e métodos de composição, mas a sonoridade é muito mais orgânica. Ouvimos aqui guitarras, vibrafones, saxofones, tabla e cítara, e claro, muito bombo e tarola. Também continuamos a ouvir ecos do post-rock dos Fridge, mas a música transcende isso, e confirma-se o individualismo e a originalidade arrojada do músico inglês (ouçam o belíssimo solo de flauta de “Calamine”). E o seu gosto por sons e ruídos estranhos prossegue aqui: atentemos, por exemplo, em “Liquefaction”, que inclui um som de um brinquedo de corda a ser activado, junto com marimba.

Fusão de percussão orgânica e sampling, Dialogue pode ser legitimamente chamado tanto um álbum de jazz como de electrónica. Aliás, talvez pareça mais um disco de jazz que um de electrónica, e é esse o seu mérito. Pródigo em criatividade e ideias, e maravilhosamente ecléctico (tanto em géneros como em emoções evocadas), uma das suas maiores virtudes, colocou-o ao lado dos inovadores da música baseada em samples. Quando não estava a minar o território free jazz em busca de sopros furiosos, estava a samplar música indiana clássica, ou os sintetizadores de Morton Subotnick, ou os ritmos clássicos de hip hop à DJ Shadow. E basta ir ao WhoSampled confirmá-lo: além do funk de Purdie, temos o jazz de Don Cherry, o avant-garde de Subotnick, a música de Ravi Shankar e Alla Rakha e o doce riff de Rhodes dos Roxy Music.

“The Space of Two Weeks” e “Alambradas” são downtempo semelhante ao Bonobo de Dial M For Monkey, “Chiron” e “3.3 Degrees From The Pole” são longas peças que parecem partes de “What Does Your Soul Look Like” de DJ Shadow, com os seus solos de saxofone entrecortados por breaks clássicos de hip hop, “Misnomer” é cool jazz, e “Fume” é parte fúria de free jazz vanguardista, parte misticismo de música étnica.

A tudo isto temos a acrescentar uma imprevisibilidade composicional, em que samples deslocadas entram e saem da mistura, competindo no espaço com glitches estranhos e efeitos dub. John Mulvey da NME chamou-lhe “a new kind of trip, a mind-expanding jazz for the Cubase generation”. O processo criativo aqui pode ser comparado ao action painting de Jackson Pollock, com Hebden a lançar samples em cima de uma tela sonora meio aleatoriamente, embora essa espontaneidade possa ser falsamente enganadora, porque há ordem no caos, e mais método do que possa saltar à primeira vista.

E é também um sinal dos tempos, acusando tudo o que se passou na electrónica anglo-saxónica dos anos 90, desde os ritmos bombásticos do big beat a ecos da melancolia do trip hop, o corte e colagem de DJ Shadow e o post-rock dos Tortoise e dos seus próprios Fridge.

Algumas destas faixas são demasiado longas, e não têm o refinamento de futuros álbuns, mas deixam adivinhar o seu futuro talento (nas palavras de Nick Neyland, “These tracks reflect someone with the ability to deconstruct music history, but yet to find the fantastical place that talent would take him”).

 



O seu segundo álbum, Pause, foi descrito como folktronica pela imprensa (numa tentativa de lidar com o aparecimento de uma nova sonoridade, semelhante ao que Simon Reynolds fez quando cunhou o termo post-rock), pela sua mistura de melodias delicodoces de guitarra acústica com batidas eletrónicas. Thom Jurek da AllMusic chamou-lhe “organic as dirt, and full of an acid-head’s sense of space”.

Assistimos então a uma clara mudança na sonoridade. Em detrimento do experimentalismo de Dialogue, Hebden optou aqui por algo mais bucólico: melodias suaves de cordas folk e harpas de meditação zen, enriquecidas por instrumentos como cítaras e gamelão, em cima de batidas de hip hop de tempo médio misturadas com percussão étnica (como tambores de água e aço). Continuamos a estar na presença de “electrónica orgânica”: embora tudo seja samplado, não há aqui nada frio ou sintetizado. A música é quente e humana, tanto prazenteira como melancólica, e continua a parecer mais tocada do que produzida.

Quanto à paleta de emoções, o álbum divide-se entre momentos mais discretos e sentimentais, como “Glue of the World”, e outros mais dançáveis, como “Everything is Alright” ou “Twenty Three”, terminando com o quase infantil “Hilarious Movie of the 90s”, um delicado jogo de melodias de caixa de música e xilofone.

E quanto às samples usadas, Kieran desta vez esquece o jazz de vanguarda e opta pela música étnica, desde o folk de Bittová e Fajt ao new age de Tony Scott, sem esquecer o bucolismo de Michael Cassidy.

Mas continua a querer brincar com sons, e a ser fascinado por eles, oferecendo-nos um conjunto de breves interlúdios ambientais feitos de gravações de crianças a brincar ou pequenos pedaços de musique concrète como o som de teclas a serem premidas ou uma impressora a trabalhar, entrecortados por suaves melodias de piano eléctrico e guitarra acústica.

Em Pause, Four Tet estava muito longe tanto do jazz experimental do seu primeiro álbum, como da música de dança que viria a abraçar no futuro, e a sua música estava a tornar-se mais melódica, simples e acessível. Este é um álbum de tempo baixo, que consiste quase inteiramente em samples de música étnica e folk em cima de lentas batidas hip hop, assemelhando-o, por exemplo, a Dial M For Monkey, o álbum de estreia de Bonobo.

Aqui Four Tet estava a começar a polir a sua sonoridade (reduzindo a duração das faixas, por exemplo), apostando na beleza da simplicidade. E como disse Malcolm Seymour III da Pitchfork, confirmou-o ao mundo como “uma das vozes mais calorosas e gentis da música electrónica”.

 



Rounds, o seu terceiro álbum, foi um marco do artista, e o momento em que ele saiu do underground e entrou no mainstream, sem perder o respeito dos críticos. Nick Neylan da Pitchfork chamou-lhe “the moment everything zoomed into sharp focus”. James Hunter disse “[He] treats software as a rocky road to hummable compositions of seductively intricate invention”. O The Guardian afirmou: “a trove of bewitching melody and subtle invention, Rounds succeeds not only as a meticulously conceived piece of art but also as a moving expression of human warmth.”

Se Dialogue foi o momento revelação, e Pause a confirmação, Rounds foi o definitivo cimentar dos seus talentos, o momento alto da sua carreira, e aquele que continua a ser encarado como um dos seus melhores álbuns. Uma síntese das suas duas primeiras obras, algures entre a folktronica de Pause e o free jazz de Dialogue, é mais uma vez a celebração da sua sonoridade “electrónica orgânica”. Atmosférico e ambiental, é também um dos mais comoventes dos seus álbuns, fazendo-nos corar em vários momentos, e continuando a fundir percussão ora livre e jazzística ora clássica e próxima do hip hop com melodias oníricas e pastorais da pop mais indie e o experimentalismo da electrónica mais vanguardista.

Descrito como o seu álbum mais pessoal até à data, foi construído a partir de um arquivo de 300 samples, sendo a maior parte delas processada até deixar de ser reconhecida, e sendo muitas das melodias resultantes notoriamente fracturadas, devendo muito ao glitch de músicos como Oval ou Jan Jelinek.

Rounds, cujo título deriva de um tipo de composição musical baseado na repetição e no faseamento, adequa-se perfeitamente à música de Four Tet aqui, que se repete mas que acrescenta uma camada diferente à medida que evolui, audível a cada nova escuta.

Estamos perante uma mistura de hip hop instrumental com glitch, mas as suas melodias não são tão acessíveis como as de Pause (embora se continue a ouvir música étnica e folk, na forma de harpa e guitarra acústica), por serem mais fragmentadas, feitas de samples infinitésimas. O álbum divide-se entre estes momentos glitch e outros mais acessíveis, como “As Serious As Your Life” e “Unspoken”, mais desenvoltos e orgânicos. De certa forma, é uma mistura de todas as suas influências até agora.

E continua a haver curiosos momentos despidos de ritmo, como “First Thing” e “Chia”, pequenos interlúdios ambientais que reforçam o bucolismo da música. E contém alguns dos momentos mais belos da sua carreira, como “My Angel Rocks Back and Forth”, uma suave e infantil melodia de harpa que contrasta com percussão fria e artificial, ou “Hands”, um bater cardíaco que se transforma numa batida de hip hop em cima de um dos mais comoventes riffs de piano elétrico que vocês jamais ouvirão.

Mas a peça central é “Unspoken”, de nove minutos, que junta guitarra e piano melancólicos reminiscentes dos seus tempos post-rock com os Fridge em cima de um break de bateria familiar.

 



Everything Ecstatic, de 2005, marcou mais uma viragem na exploração sónica do músico inglês: o baixo áspero do início aproxima-o mais do krautrock dos Tortoise e do electro dos 80s, e este é sem dúvida mais enérgico (se não dançável) e menos downtempo.

Felizmente Hebden continuava tão eclético como sempre foi, desde a distorção da faixa de abertura que faz lembrar as emulações krautrock de Millions Now Living Will Never Die, até “Smile Around The Face”, que lembra as produções solarengas dos Avalanches, namorando o pop, e ao saxofone furioso à Pharaoh Sanders de “Sun Drums and Soil”. Pelo meio, a percussão continua a assumir papel preponderante, ora evocando o seu amor ao free jazz ora assentando em breaks de hip hop mais clássicos.

Uma coisa é certa: começava a assistir-se a outra mudança no seu estilo, já algo distante da folktronica pastoral de Pause e Rounds, sem a esquecer completamente (nomeadamente no regresso dos interlúdios ambientais, e nos gongos balineses da última música, “You Were There With Me”, bem como a sample de Jukka Tolonen em “A Joy”). Este disco é indubitavelmente mais digital e sintetizado (atentem no scratch e tons que abrem “High Fives”, por exemplo, ou na electro metálica de “Turtle Turtle Up” e “Sleep, Eat Food, Have Visions”), fazendo adivinhar a sua futura incursão pela música de dança.

 



There Is Love In You, o seu quinto álbum, entra definitivamente no mundo da música de dança (sobretudo a dos anos 90 da sua Inglaterra natal), e abandona o experimentalismo de Dialogue e Everything Ecstatic em favor de uma sonoridade simples e despida feita de bombos graves e batidas house (à Daft Punk de início de carreira), vozes femininas que recebem o tratamento glitch, cortadas aos pedaços e usadas como texturas, arpeggios sintetizados à Daniel Lopatin e melodias infantis de caixa de música, harpa e guitarra acústica, bem como um curioso interesse pela electrónica vanguardista de meados do século XX, como a de Gianni Safred ou a de Louis Meester, ou a library music da Bruton e da Open Air Impressions. O seu álbum mais pop e dançável até à data, e porventura o mais acessível, até mais do que Pause, a percussão é menos jazzística e complexa, dominada pela omnipresença do kick drum do techno (e por vezes o two-step), e a música mais repetitiva e hipnótica, mais suave e onírica, embora não pastoral. E os críticos responderam em força: John Bush chamou-lhe “realizada e bonita”, “quente, vital e convidativa”, Mark Richardson chamou-lhe o “mais focado”.

As melodias frágeis e etéreas de folk à Vashti Bunyan revelam as marcas da folktronica pela qual ficou conhecido, mas este é um álbum de dança, mais do que pop ou electrónica, e é sobretudo um exercício em minimalismo. Kieran parece ter refinado a sua sonoridade, retirando o que não interessa, sem abdicar daquilo que o tornara idiossincrático e admirado.

 



O seu sexto álbum, Pink, de 2012 (o primeiro com o selo da sua própria editora, a Text), uma colecção de singles de dança, feitos de percussão 4/4 ribombante carregada por algumas melodias electrónicas sinuosas e arpeggios vindos de sintetizadores estranhos, misturada com alguma música étnica (como as bonitas harpas de “128 Harps”), cimenta o seu interesse pela música de dança, que começou em There Is Love In You. Especificamente, ouvem-se aqui influências do techno britânico dos anos 90, como o dos Autechre e Aphex Twin, e o mais recente de Oneohtrix Point Never. “Lion” parece uma faixa de Incunabula, com o seu drone lânguido e ritmos pulsantes, enquanto “Jupiters” parece o que Daniel Lopatin fez quando emulou a electrónica espacial alemã e o minimalismo de Reich na sua compilação Rifts. “Pyramid” e “Pinnacles” evocam a house de Miami e Chicago e “Peace for Earth” é um suave jogo de arpeggios que parece uma banda sonora dos Tangerine Dream. Este parece ter sido uma carta de amor à música electrónica dançável em todas as suas vertentes.

 



Depois de uma série de colaborações com Thom Yorke e Burial, seguiu-se Beautiful Rewind, de 2013, um regresso (como o nome anuncia) à música étnica e ambiental de Pause e Rounds, misturado com os ritmos de dança, arpeggios luminosos e texturas vocais etéreas de Pink e There Is Love In You. Sempre a evoluir, Four Tet provou aqui que não precisava nem de regressar ao passado nem de o esquecer por completo para ser respeitado, aglomerando todas as suas influências em música com emoção e profundidade.

Algumas faixas, como “Kool FM”, soam a house tradicional (como a de Mr. Oizo), enquanto outras entram no garage, no grime e no jungle, parecendo evocar uma música de dança mais agressiva, que consiste em bombos fortes, baixos de tremer o chão e vozes jamaicanas intimidantes e guturais como a de “Buchla”.

Estilisticamente disperso e pouco coeso, este foi um álbum menos convencional, e uma escuta talvez menos agradável que as suas obras até agora, mas revela uma contínua vontade em experimentar. Andy Kellman disse:

 “While the album does seem rather patched together with a lack of focus — it plays out like a pair of distinct EPs and a couple transitional orphans on shuffle — there’s an irrefutable charm to the restlessness.”

 



2015 viu o nascer de um dos seus álbuns mais interessantes (e um dos mais bonitos, psicadélicos e oníricos), Morning/Evening. Lançado em Junho para coincidir com o solstício de Verão, é um álbum inspirado pelas suas raízes, dedicado à música indiana. A ideia partiu de ter herdado uma colecção de música devocional Hindu do seu avô, e divide-se em duas longas faixas (“Morning Side” e “Evening Side”), de títulos inspirados pela corrrespondência das ragas a certas alturas do dia, que combinam percussão complexa (que alterna entre batidas de dança mais imediatas, e ritmos do jungle e do garage), a voz bonita e angélica de Lata Mangeshkar em loop (intocada, ao contrário do que é seu apanágio), drones, efeitos espaciais de sintetizadores, arpeggios à Oneohtrix Point Never, e cordas românticas de bandas sonoras no plano de fundo. O resultado é um álbum de música com surpreendente poder emocional e beleza. Como disse Nina Corcoran, “Hebden has done what he does best: create an atmosphere so encompassing that you lose sight of wherever you are while you’re listening”.

O lado B é particularmente curioso: começa por ser inteiramente despido de ritmo, apenas um jogo pontilhista de bleeps de sintetizador à Kraftwerk, gentis e cintilantes, drones profundos e texturas vocais etéreas indiscerníveis, para dar lugar a um bombo tribal, com a música a voltar ao mesmo sítio onde começou, evocando o estilo de lenta evolução e criação de uma atmosfera típico de Burial.

Além de música religiosa indiana, o álbum é também influenciado pela electrónica do passado, nomeadamente os ingleses Autechre, e o compositor vanguardista Morton Subotnick.

Um álbum desafiante e rico, que exige paciência dos seus ouvintes, tanto pela duração das faixas (apenas duas, de quase vinte minutos), como pela sua natureza, apresentando-se em constante mutação.

 



O seu mais recente álbum, New Energy, lançado em Setembro do ano passado, é notoriamente mais dançável e acessível do que os seus álbuns de início de carreira, e é, acima de tudo, um exercício em ecletismo, provando o seu à-vontade em todos os géneros, e oferecendo uma recompensa a quem o acompanha desde o início: “Alap” e “Memories” são música celestial à Laraaji na forma de um dulcífluo rendilhado de harpas, “Tremper” é parecido ao que Aphex Twin ou Burial fizeram quando emularam Eno em “Night Bus” ou “I”, uma espécie de interlúdio ambiental perfeito, “Two Thousand and Seventeen” é downtempo étnico à Bonobo, “LA Trance” entra em território Burial com a sua percussão cavernosa e o eco de vozes distantes e etéreas, “Lush” é new age misturada com batidas de dança, “You Are Loved” parece ambient house dos The Orb, “SW9 9SL” é deep house imediata, “Daughter” é trip-hop semelhante ao “Teardrop” dos Massive Attack, “10 Midi” é semelhante às faixas de piano preparado de Drukqs.

No fundo, é uma síntese de todas as suas influências e sonoridades até agora. Andy Beta da Pitchfork disse:

“[It has] the low-key warmth of 2003’s Rounds, the free jazz at the heart of 2005’s Everything Ecstatic, the friendly thump of 2012’s Pink, and the sprawl of 2015’s Morning/Evening.”

Desta vez Kieran não usou samples, mas sim instrumentos virtuais – réplicas sintéticas de instrumentos de todo o mundo. Todo o álbum está afogado em suaves ondas de drone, baixos melados, sintetizadores oníricos, tessituras ambientais, cordas étnicas e vozes femininas etéreas, que convivem com as batidas pulsantes do techno e da house. O álbum é leve, luminoso, tranquilo, dançável e esperançoso. Pleno de criatividade e boas ideias sonoras, imprevisibilidade e da mesma falsa simplicidade a que nos habituou, confirma o seu talento para encontrar melodias e ritmos em todo o tipo de sons.

 



A uma discografia longa e fecunda, que abrange inúmeros géneros e épocas da história da música, desafiando fronteiras e classificações, desde o free jazz de Dialogue até à folk pastoral de Pause ou à dança mais acessível de Pink e There Is Love In You, juntou ainda uma série de colaborações com músicos respeitados, desde o baterista de jazz Steve Reid a Thom Yorke e Burial, foi recrutado para trabalho de produção e remistura (desde os Madvillain a Beth Orton), e teve a honra de ser remisturado por J Dilla.

Kieran conseguiu o que poucos artistas conseguiram: alcançar sucesso junto das massas e o respeito dos críticos e a faixa mais alternativa composta pelos melómanos de maior discernimento. A sua obra atravessou géneros, sonoridades e emoções diferentes, sem nunca perder qualidade e originalidade. Tal como DJ Shadow antes dele (ou o seu contemporâneo Burial), parece ter sempre tido um ouvido no passado, outro no futuro, e outro focado no interior da sua mente.

Com o tempo, foi tornando a sua música mais acessível, e explorando novos estilos, mas nunca esqueceu as suas raízes e o seu gosto por som, e nunca perdeu a sua vontade de experimentar.

Paul Simpson chamou-o o “artista definitivo da indie electronic”. É de facto um dos principais músicos de electrónica do século XXI, e um dos nomes essenciais para compreender a electrónica, tanto pela importância que deu ao uso de samples como à sonoridade orgânica de instrumentos verdadeiros.

Ao longo de vinte anos e nove álbuns ergueu uma carreira sob o signo do experimentalismo e do ecletismo, o que lhe permitiu ganhar novos públicos com cada obra, aumentando o número de pessoas que ouvem a sua música, bem como ser respeitado por gente em todos os círculos, sem nunca diluir a sua sonoridade, o que o coloca ao lado de autores como Burial no grupo de músicos electrónicos mais importantes do início do milénio.

Kieran usou as mesmas técnicas de sempre da electrónica, como o sampling e a sequenciação, mas deu-lhes uma nova vida. Como disse Robert Christgau, o seu objectivo foi sempre infantil – usar o computador como caixa de música, construindo melodias de uma fragilidade falsamente simples.

Pelo meio foi capaz de colaborações inauditas, como a sua parceria com o baterista de jazz Steve Reid. Foi ecléctico, sem nunca ser peixe fora de água em nenhum dos universos musicais que navegou. Nunca dependeu demasiado de samples, ou de truques. Traçou um caminho icónico (e iconoclasta), sem nunca ceder a tendências ou comprometer a sua visão artística. Foi capaz de honrar a tradição da música electrónica mais dependente dos ritmos e das melodias mais acessíveis, sem nunca esquecer a sua componente mais experimental.

Como disse Andrew Gaerig, conseguiu aderir às convenções da música de dança continuando a aplicar-lhe a sua psicadelia solarenga, fundindo linhas melódicas com ritmos ora simples ora complexos, numa busca incessante por novos sons, nunca deixando de se reinventar com cada álbum novo.

Foi capaz de criar música electrónica humana, emotiva e calorosa, que nos enche os corações tanto como nos faz dançar, sem deixar de ser complexa e cerebral. As suas músicas são prismas, reflectindo a luz de cada um dos géneros e épocas que evocam, e refractando pedaços que iluminam a alma e estimulam os sentidos. Muitas delas evocam sensações de êxtase ou tranquilidade como a de dar um longo passeio ao ar livre ou regressar a casa após uma rave. Percebeu o poder do som, de o manipular com máquinas, e de criar emoção através dele. Poucos podem gabar-se do mesmo.

 


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