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Fotografia: Diogo Vasconcelos & xipipa
Publicado a: 30/01/2020

O terceiro longa-duração do músico saiu na passada sexta-feira.

Filipe Sambado: “Há bandeiras que tenho mesmo que segurar”

Fotografia: Diogo Vasconcelos & xipipa
Publicado a: 30/01/2020
Filipe Sambado não chegou, foi chegando, de forma tranquila mas verdadeira e honesta, entendendo que a música tem que ser veículo para mais do que palavras que se esvaziam logo que os singles caem das playlists e aterram nesse imenso mar do esquecimento. Nesta entrevista fala-nos da inspiração que buscou e encontrou em José Afonso e no rio imenso de Fausto, fala de como Rosalía lhe apontou o caminho e de como sente que Conan Osiris ou Pedro Mafama estão em sintonia com esta vontade que também é sua de injectar algo que é intrinsecamente nosso numa certa ideia de pop. Curioso que um homem que apontava microfones a actores envoltos em fantasias pouco credíveis nas nossas novelas agora veja os microfones serem apontados para si mesmo e para as ideias que a sua música carrega. E para os seus gestos também: cancelou um concerto numa sala que recebeu um comício do Chega, assumindo princípios que se calhar muitos não entendem porque são assim tão importantes. E aceitou o convite para o Festival da Canção por acreditar ser capaz de fazer diferente. E vai aceitando, a custo, diz-nos, falar sobre a sua arte em tantas entrevistas para que é solicitado. Ainda bem, porque Filipe Sambado tem coisas a dizer-nos, e muitas estão agora estampadas em Revezo, o novíssimo disco que acaba de lançar.

Comecemos por aí: demasiadas entrevistas. Faz parte desta coisa de ser um operário pop, certo? É suposto, faz parte do job description, isto de teres que explicar a tua arte e teres que andar a dar entrevistas… Eu acho que isto significa que está a ser bem recebido. Sinto que o disco está a ser bem recebido e eu se calhar não estava à espera de tanto sufoco por parte da imprensa, no sentido de ter que dar resposta. Estou-me a queixar porque estou a preparar os concertos e fico sem tempo. Este cansaço é um cansaço bom, mas é difícil agendar as coisinhas todas.  Antes de falarmos sobre o disco, o Revezo, faz-me um balanço do teu percurso. O que é que tu achas que foram os dois ou três marcos que te trouxeram até aqui?  Acho que os três marcos são mesmo os três discos. Mas o marco mais importante, que não é nenhum dos discos, é o momento em que eu assumo que quero dizer coisas completamente minhas e que me quero chegar à frente nesse sentido. Acho que esse é o marco principal: quando eu passo dos EPs para os discos e mudo mesmo a vontade e o rigor com que estou a fazer as coisas. Tu distingues EP de álbum. Dás a entender que no fôlego mais amplo há um comprometimento diferente, é isso? Senti um compromisso diferente a partir do momento em que fui fazer o disco. Foi um bocado também um lado de aposta. A altura em que fiz o Vida Salgada foi um momento em que eu afunilei interesses, tentei desviar-me mais das outras coisas e tentei estar muito focado naquilo. Às vezes até num lado um bocado negativo: perdi um dente, por exemplo. No sentido da dedicação fui desleixando outros aspectos, coisa que agora ando a tentar corrigir. Mas acima de tudo foi isso: tem sido um percurso até aqui de entender qual é que é a minha voz e de que forma é que aquilo que eu digo é cada vez mais honesto e meu. Essa é a coisa que faz diferença.  Dizes que tens estado a tentar entender-te a ti próprio. E achas que o mundo lá fora já te percebeu ou ainda sentes que és um mistério embrulhado num enigma rodeado de uma névoa de desentendimento? Como é que achas que a cena musical portuguesa olha para ti e te encaixa? Não sei ao certo. Para mim está a ser um bocado uma coisa meio viajada. Não tenho a certeza. Eu confesso que às vezes até me vou compreendendo por coisas que as pessoas dizem. Nem tudo o que dizem, não é? Mas às vezes há conversas que tenho com certas pessoas, que têm ideias sobre mim e que me ajudam. Quase como se houvesse um cruzamento de pareceres entre aquilo que eu acho…  Então era isto que eu queria dizer… Não é isso, não é bem assim. Da mesma forma que eu arranjo justificações para as coisas posteriormente a elas serem ditas, quando outra pessoa faz isso às vezes abre ainda mais leituras do que aquilo que eu às vezes posso sentir que represento. Quando eu me expresso de uma forma mais queer, automaticamente isso atrai outras pessoas que também são queer, porque há uma base comum. E de repente vais conhecer esse universo, vais percebendo onde é que é o teu espaço nesse universo, que é uma coisa importante. E quando dou por mim a falar sobre problemas sistémicos na sociedade, estou também a perceber como é que eu posso falar sobre eles e onde é que eu me encaixo no meio das minorias. Lá está, não posso ocupar lugares que falam de outras pessoas. É tão simples quanto isso. Isso para mim é muito importante, a maneira como eu me tento conhecer, com que autoridade é que me posso referir a certos assuntos.  Olha, tu achas que o que fizeste, conquistaste e provocaste até este momento faz de ti um simples comentador desta realidade ou também um actor com responsabilidades na transformação do país em que nós vivemos? Eu sou jornalista há 30 anos e devo contar pelos dedos das mãos o número de artistas portugueses que entrevistei e que usaram voluntariamente, sem que ela tenha lhes tenha sido atirada para o colo, a palavra “queer”, por exemplo. Ou seja, dá ideia de que este país está a transformar-se. Tu fazes parte da transformação ou és um mero observador dessa transformação? O que é que tu sentes? Há bocado usaste a palavra comentador também. Acho que tenho ambas as valências. E tem a ver mesmo com isso: há coisas que eu não posso comentar não sendo eu uma pessoa que sofre directamente com isso. Eu nunca tive que sair do armário e a expressão “queer” é uma expressão de género, e limita-se a isso. Nunca tive que lidar com ter que dizer à minha família que sou homossexual porque não sou. Nesse sentido eu sou um observador da realidade. Tenho um lado empático, de cumplicidade. Há outras coisas nas quais me sinto parte de uma mudança. Há bandeiras que eu tenho que segurar. Umas apoio, outras posso dar por mim a segurar. E tem a ver com isso. Eu sou uma pessoa activa na medida em que coloco o dedo na ferida. E às vezes sou mais narrador de episódios meus, outras vezes sou narrador de episódios que observo. E que disco é este? Como é chegámos até aqui? Paraste para pensar no que é que querias dizer? São coisas um bocado diluídas. O disco não é muito conceptual, não tem um conceito na maneira como eu decidi fazer. Não criei um conceito para o disco.  Ele não nasceu, foi nascendo, é isso? Eu fiz as canções num certo período, a maior parte delas, pelo menos. Acho que sete canções do disco foram feitas num período mais ou menos próximo. Que período foi esse? 2018. Já tinha muitas canções bastante avançadas quando o disco anterior saiu. A usar guitarra e voz. Eu comecei a encontrar foi uma linha que lhes era transversal.  Qual é o teu espaço de criação?  Estas sete músicas que fiz antes, que incluíam mais algumas que não entraram no disco, foram muitas delas escritas no trabalho. Enquanto eu estava a trabalhar, ainda antes de estar a fazer só música, que foi uma coisa que eu só passei a fazer desde Janeiro de 2019, eram escritas nos intervalos do trabalho. Eu queria muito ir para casa e estava a descobrir essa vontade e esse prazer de estar em casa, de voltar para um terreno de conforto. E sentia bastante esse privilégio também.  Que trabalho era esse? Eu era perchista em novelas.  Nós temos uma moderna cena musical que inclui o Nerve que trabalhava num call-center, o Conan Osiris numa sex shop, tu em novelas. Nada disto é glamoroso. Ou se calhar tudo isto é glamoroso à sua maneira…  Pá, nós temos na verdade um país muito pouco apoiado culturalmente, portanto é normal. Eu acho que isso é uma coisa que se nota, mesmo os artistas dentro deste meio, não estou a falar daqueles fenómenos comerciais, normalmente começa-se mais tarde. A coisa começou a correr bem mais tarde, mais perto da casa dos 30. Lá fora, é muito normal vermos um gajo do hip hop que faz uma banda e de repente aos 23 anos está a assinar um contrato gigante. Cá nem há contratos gigantes, e mesmo a tua carreira só se estabiliza quando tu chegas a uma idade já mais madura também. Isso pode ser interessante. Disseste que cá não há contratos gigantes mas apesar de tudo já há algum tempo que ingressaste numa família com uma história séria na música portuguesa. Essa, sim, gigante.  Tens consciência disso? Tens o teu nome num catálogo com uma história que se estende da Amália ao António Variações e mais além. Isso é impressionante. E a primeira vez que eu reuni lá saltou logo à vista. Depois começas a falar com as pessoas e o mais curioso da editora é a sua dimensão. Apesar da história, a editora é pequena, acaba por ser uma coisa meio familiar. O Francisco, por exemplo, refere-se à editora como a maior editora independente do país. Porque não é uma major, de facto, e isso é engraçado. E depois tu vês todo o historial que aquilo tem e é um peso… se bem que eu sou egocêntrico o suficiente para chegar lá de rei na barriga à mesa. Eu venho como a mais recente aquisição e vou marcar imensos golos [risos]. Tem que ser esta a atitude.  Há uma diferença, obviamente, entre escreveres as canções no trabalho e o que nós temos aqui em 2020. Quando é que tu começaste a pensar como é que tu querias vestir as canções? E que passos é que tu tomaste nessa direcção? Lembro-me de há um tempo estar a falar com um miúdo que é o Van Ayres. Estava a falar com ele e ele tinha acabado o último disco dele, porque o novo ainda não saiu, e ele disse-me daquelas frases que são muito simples e que te marcam numa conversa. Ele disse: “a minha cena ao fazer este disco era que eu queria estar a divertir-me imenso”. E eu tentei fazer isso.  Um processo criativo, mas também lúdico.  Tive uma fase do disco em que eu estava carregado de coisas na cabeça e fui para o estúdio já com as canções feitas. Eu tenho um espaço que me permite produzir as partes mais elementares daquilo. O disco foi lá todo gravado e depois fomos misturar para outro sítio, mas o disco foi todo gravado na minha pequena sala. Inicialmente era experimentar de tudo. E eu estava-me a divertir bastante, mas estava a sentir pouca união nas canções, e havia sempre uma ou outra canção que parecia já mais fechada e que ia criando um eixo certo de seguimento para o disco. E eu comecei a perceber de que lado de influência vinha. Pá, e fiz uma coisa que nunca tinha feito antes: durante um período balizei as minhas influências. [Existiam] músicas em que eu já estava a sentir um lado da parte do Fausto, nomeadamente, com o Por Este Rio Acima, que é o disco dele que me marca mais. O Zeca de uma forma mais abrangente.  Tu estudaste a obra deles conscientemente? Sim, sim. Houve esse momento. Estes foram os mestres.  O Zeca e o Fausto. Sim, acima de tudo. Depois claro que o Zé Mário [Branco] também e o próprio Adriano [Correia de Oliveira], mas acima de tudo foi o Por Este Rio Acima, não é o Fausto, não é tudo, é o Por Este Rio Acima, o arranjo percussivo e a orquestração do disco, o trabalho que o Eduardo Paes Mamede faz ali, assim qualquer coisa de mágica para mim. E esse disco foi mesmo o início. Depois é: já conheces muita coisa do Zeca porque é inevitável conhecer, mas, a certa altura, já tinham aparecido sugestões disso no disco anterior, com o “Dono da Bola” e a “Dá Jeitinho”. As canções de que eu estava a gostar mais eram as que estavam a pender mais para ali, já nos arranjos. Vamos mergulhar um bocadinho nisso. Tu tens 34, portanto nunca tiveste consciência do Zeca em vida. Porque é que a tua geração sente a necessidade de ir escutar estes mestres? Porque é que tu achas que isso acontece? Há uma série de pessoas tão diferentes como tu, o Fachada ou o Halloween que sentem que precisam de ir àquele momento do Zeca e do Zé Mário.  Tu és uma pessoa que fala muito nisto e concordas comigo: nós estamos a viver um período bastante auspicioso e com bons frutos a nível musical. A cena está cool. A cena está a correr bem. E a verdade é que se tu andares anos para trás, a cena que correu melhor, no sentido de qualidade, tanto da palavra como da pesquisa e dos valores estéticos e musicais que eram feitos na nossa música, foi essa. Os gajos que estudaram a tradição, estudaram o folclore, que se preocuparam em deixar um país descrito num período histórico, foi essa geração das décadas de 60 e 70. Quando queres ir ver a música portuguesa para além do folclore mais tradicional e mais puro, as pessoas que souberam ir beber aí e que souberam fazer uma coisa que é um marco do seu tempo foram essas. Com um dado ultra importante: estavam todos perfeitamente conscientes de que a música era uma ferramenta de transformação da sociedade. Achas que esse momento volta a ser possível de replicar? Eu sinto totalmente essa responsabilidade e não consigo escrever uma letra em que não sinta que tenha que estar a falar sobre alguma coisa que seja fulcral para mim.  Se eu vou falar, é bom que diga alguma coisa”. Exactamente. Eu tenho que sentir isso. Eu acho que antes de tudo eu tenho mais cuidado com a letra do que com tudo o resto. Olha, para além desses óbvios mestres, quem mais te inspirou?  No ano passado a Rosalía. A Rosalía foi a pessoa que me disse, “ouve lá os teus mestres à vontade, tens aqui uma receitazinha, eu estou-te a deixar a receita aqui mais ou menos a jeito, podes pegar por aqui para fazer a tua cena”. E eu decidi, e muito bem, perceber de que forma é que ia assumir a ligação que eu tenho com este passado. São ritmos que sempre me contagiaram muito, os ritmos mais próximos do hip hop e do r&b, e foi super divertido perceber onde é que tu, puxando um contratempo ao chula, de repente partes a perna e estás a dançar um ritmo africano. Pareces o Zeca no Coliseu, a falar da ligação entre os ritmos da Beira e de Angola.  Claro, exactamente. Esse é que é o gostinho mais encantador de estar a fazer o disco: puxas aqui só este tempozinho do tambor e estás no tarraxo, man. Estás a tarraxar. É essa coisa.  Ok, a Rosalía. E mais? Eu vou referir o Conan [Osiris], embora seja outra coisa completamente diferente, mas o Conan e o [Pedro] Mafama. E o Mafama é uma pessoa que foi espectacular conhecer. Nós cruzámos-nos num concerto e de repente passámos duas horas nesta conversa, exactamente no que estou a dizer. O bombo da kizomba que te puxa para a frente na dança é o mesmo bombo, tal e qual da chula e do malhão, que antecipa o tempo 1. É o que te prepara para dançar. Esta é que é a cena e está em todas as danças tribais e hipnóticas… O bombo que é promessa de futuro.  Exactamente. Estou é para dançar. O beat pode estar sempre a correr.

Quando tu falas dessas afinidades com o Conan e Mafama, podemos falar de um movimento neste momento em Portugal? Cruzamento da pop com raízes populares? Há um movimento de renovação de uma identidade portuguesa a acontecer neste momento por cá? Espero que haja um movimento de consciencialização. Já vou sentindo isso a espaços.  Quando vemos tu a passares uma noite a falar com o Mafama ou o Conan a gravar com a Ana Moura, isso são sintomas de algo? Há uma vaga de fundo a acontecer na música portuguesa? É super importante ter essa consciência. Até por inscrições geográficas. Acima de tudo aquilo que se pode fazer ainda melhor do que já está a ser feito é esse lado da inscrição geográfica. Não é só o cantar em português. Não tens que largar todo o teu passado, não é isso, mas teres noção de que tens coisas que são significativas também, e que às vezes tu não te lembras mas estão cá atrás da orelha. O ponto é esse: estão cá. Se tu fizeres o esforço de perder um bom tempo a tirar proveito disso e perceberes de que forma é que aquilo que tu estás a dizer é melhor transportado se tiver uma inscrição também ela geográfica.  Nestes 30 anos eu assisti a momentos em que as novas bandas o que queriam era ser iguaizinhas aos Pearl Jam, Red Hot Chili Peppers, etc. E agora, o que é estranho na era do streaming, em que tudo acontece em simultâneo em todo o lado, parece que as pessoas de repente acordaram para essa ideia de diferença. “Eu quero ser diferente”.  Isso que tu referiste é o lado positivo da globalização, é o lado da real democracia da escuta. Esse é o lado positivo. A outra parte é que agora é tudo demasiado acessível e antes, imagino eu, tu querias ser aquela banda inglesa ou americana que tu ouvias porque a tua capacidade de acesso era outra. Hoje se calhar queres perceber como é que tu és aquela banda… Mas não vais esconder que és de Vila Real.  E tira-se o proveito. Se queres ser a trapstar do Minho, sê a trapstar do Minho. Acho que faz todo o sentido. Lá está, se calhar estávamos a esquecer o Chico da Tina, num registo mais humorado. O próprio Primeira Dama… pá, tanta gente que está a fazer isso agora.  Ia-te perguntar: qual é que foi a importância do Primeira Dama e Chinaskee neste filme? Foram os meus co-produtores. O Manuel, além do papel da co-produção, dei-lhe também a função de dar sempre uma revisão a todas as harmonias de vozes. Portanto, ele gravou as segundas vozes, praticamente todas do disco, se não todas, eu acho que gravei uma ou outra que ele se esqueceu, mas ele é um profundo conhecedor de harmonia. O pai dele é um grande maestro português de coros.  A harmonia é o passo seguinte quando se começa a levar isto a sério.  [Risos] Exacto. Ele dá sempre aquele parecerzinho: “pá, espera aí, essa última nota vamos concluí-la assim, vamos fechar assim com aquele encaixe quente”. Não ponhas esse azulejo na cozinha”, não é?… Sim. E depois tenho a Violeta [Azevedo], uma pessoa com quem eu já tinha tocado em Jasmim. E eu gosto muito da Violeta, é uma amiga que me é muito querida. Eu já lhe tinha feito este convite: “vais estar comigo num disco em que vais ser tipo logo o segundo plano, voz e a seguir é a flauta”. Pode não ter resultado exactamente assim, mas lá vem a Violeta acompanhar esse processo comigo, e teve a criar estas flautas que acompanham uma boa parte do disco. E o Chinaskee já há um tempo que tinha passado a ser o meu baterista e ajudou-me com a parte das percussões. Para eu não estar preocupado com a parte técnica da coisa, ele esteve sempre por perto — e vai fazer parte também da formação ao vivo, que há-de ser Primeira Dama, Violeta, Chinaskee e um amigo meu que é o João Pratas, que vai estar mais atento à parte dos beats para torná-los mais orgânicos. Uma parte do disco que é interessante é o facto dos beats serem todos tocados, embora seja tudo loopado e usado com uma filosofia de beat, o sample é todo tocado. Fala-me do disco a nível poético. O que é que tu sentes que estás a dizer aqui? Vou mandar a maior bazófia: já desde há um tempo para cá que eu tento não deixar um único verso que não esteja à altura do anterior. É uma coisa que eu tento mesmo fazer.  Não facilitar.  Não facilitar. Há tempos pediram-me para fazer uma versão de uma música dos Trovante, que era a “Travessa do Poço dos Negros”, e eu fiz a versão e cortei não sei quantas estrofes. Há uma estrofe que está muito bem escrita e eu questiono, “mas se tu consegues escrever uma estrofe assim, porque é que as outras estão com esta qualidade?” Quando inicias o teu percurso e estás a mandar coisas cá para fora, muito bem, mandas e às vezes mandas coisas menos boas e é normal às vezes coisas inacabadas. Mas eu com as letras tenho esta coisa, a partir do momento em que percebi que consigo mandar uma rima com uma certa qualidade, eu tenho que tentar que todas as rimas mantenham o critério de qualidade da canção em si. Claro que há momentos em que posso dizer que está aqui uma rima do caraças, que está um luxo. Sei lá, gosto muito na “Gerbera Amarela do Sul” da quadra do “Mais eucalipto que pinheiro/ É deserto o ano inteiro/ E o manjerico do poleiro/ Canta o seu inferno varão”. Eu acho imensa piada a isto. É um bocado um delírio de jardinagem [risos], mas que para mim é super claro.  O Festival da Canção tem secado a música portuguesa? [Risos] Não, não é o Festival da Canção que seca a música portuguesa, mas o fenómeno provoca algumas secas à música portuguesa.  És um elemento disruptor na edição deste ano? Ou esperas ser, pelo menos? Eu acho que devo ser porque há muitas semelhanças naquilo que é apresentado no festival.  Achas que quando as pessoas recebem o convite metem o chip de “vou escrever uma música à festival”, é isso? Isso não sei. Acho que às vezes a malta luta contra isso, mas depois até cai na armadilha. Não sei ao certo como é que funciona porque aqui o subconsciente também tem armas com ele.  Vais com algum tipo de expectativa? Não, não. Para mim ter conseguido encaixá-la foi bom. Se for a Elvas é bom porque o meu primo continua lá e já é a última pessoa da família que lá permanece. Aproveitava e ainda mandava uma almoçarada com ele. Seria porreiro.  Para terminar: onde é que esperas que o Revezo te conduza? Que esperanças depositas neste disco? Eu estou num momento de pragmatismo com a minha música: eu quero que ela possa ser feita e que saia. E agora tenho a possibilidade que isso aconteça em mais dois discos porque é o contrato que tenho com a Valentim. Enquanto esta situação me permitir fazer música descansado, não ter que ter outro trabalho, é um encanto.  Não achas que daqui a 20 anos vão continuar a ser precisos perchistas nas novelas portuguesas?  Mas eu aí se calhar arranjo outro trabalho. Eu sinto que agora tenho a possibilidade de fazer discos com uma frequência que me interessa muito fazer e tenho uma possibilidade financeira através do apoio que tenho com a editora e dos ganhos que tenho tido através dos concertos.  É um bocado ainda um acto de loucura querer ser um artista assim no Portugal pós-2020?  Tu tens que saber dançar muito bem na corda do entretenimento e do criador. Esse termo, artista, faz-me alguma confusão. Então? Acho que os conceitos arte e artista devem ser avaliados muito mais tarde e não tem a ver com a intenção de… O futuro é que dirá se o que estás a fazer é arte ou não, é isso? Sim, sim. Porque toda a gente que é criadora na sua área pode considerar-se artista. Ser membro activo da cultura é mais interessante, ser criador também interessa. Isso tem uma coisa um bocado banal, é um exercício mental, essa ideia da arte é uma coisa meio histórica e acho que é uma coisa que deve ser contemplada mais tarde. Isto que temos que viver agora, mesmo sendo numa corda, estás aqui num registo do entretenimento ou da cultura. Tu vais dar um concerto e há uns que só querem música, no sentido mais lato de entertainer, e há sítios onde vais tocar que te querem ouvir a ti.  Já começaste a escrever canções novas ou não? Não, quero fazer uma pausa para depois atacar o próximo de duas formas. Acontece muito ir desenhando melodias para a voz na cabeça, é uma coisa que me acontece muito, e apetecia-me tentar criar linhas melódicas da voz quando já tivesse alguma coisa feita instrumental. Forçar-me a fazer o processo inverso, porque queria ter um disco com convidados, convidar pessoas para fazer músicas.  E quem é que tu gostavas de convidar? Ah, já te falei de alguns.  Sim, os Mafamas e os Conans…  Embora trabalhe sempre com o Primeira Dama, certamente que o hei-de convidar também para fazer um tema comigo em que assumimos um lado de featuring. Pá, com o Luís Severo também. Tenho a porta aberta para fazer um tema com o RIOT porque tive uma experiência incrível e maravilhosa com ele e queria mesmo fechar um tema inteiro. Tu queres ir buscar o Fausto? Não vou chatear o Fausto. O Fausto já não é pessoa para ser chateada. Não tem de se cansar.  Pá, pensei também fazer alguma coisa com o Marcus [Scúru Fitchádu] desde que estive com ele numa mesa redonda de discussão que isso ficou assim lançado para o ar. A cena é esta: se eu quiser fazer um disco agora com 10 canções, eu tenho que deixar pessoas de parte. E isso é bom. É positivo. Eu ver-me obrigado a deixar pessoas de parte para fazer um disco com convidados é uma coisa óptima.  Última pergunta: dois ou três discos portugueses que achaste muito bons nos últimos tempos?  Linha Verde do Co$tanza, acho que esse foi assim o mais incrível. Eu ainda não ouvi o da Capicua, mas gostei muito do “Madrepérola”, e eu não sou muito fã da Capicua. Não me bate muito.  Não costumas orar nessa igreja? Não, não. E aquilo entrou-me com imensa força até, especialmente a última parte em que ela larga um bocado mais o name-dropping e começa a rimar já mais de peito às balas, aí é que ela vai ao sítio certo. E achei essa muita gira e fiquei com muita curiosidade de ouvir o disco. Pá, para mim o do Severo foi o melhor, mas não foi uma coisa nova para mim porque é uma pessoa que me é demasiado próxima, percebes? E ouvi agora também dois temas do Scúru Fitchádu no outro dia na Antena 3 e também tenho que ir picar.
Filipe Sambado // Revezo

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