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Fotografia: João Pedro Fonseca
Publicado a: 25/01/2024

A ampliação tecnológica do meio natural.

Filipe Baptista: “Procuro que se sinta o infra-mundo que opera por baixo da superfície e que se reflicta sobre ideias de transformação”

Fotografia: João Pedro Fonseca
Publicado a: 25/01/2024

A arte e a tecnologia (e a conjugação das mesmas) constam há muito tempo do vocabulário de Filipe Baptista: em 2012, inicia simultaneamente o seu trabalho nas áreas da dança e da performance, e os seus estudos em Informática no Instituto Universitário de Lisboa, servindo de rampa de lançamento para a exploração artística por via de ferramentas multimédia e para colaborações no mais diverso tipo de disciplinas criativas, desde peças de teatro até videojogos. 

Eventualmente, o recolher de toda esta experiência resultou num padrão estético de obras transdisciplinares que investigam o corpo humano em relação ao habitat, sempre em torno do cruzamento entre matéria natural e ferramentas tecnológicas. Exemplos disso são as peças A.T.M.A. [Access Terminal for Memory Archives] ou VESSEL, contando ambas com o apoio da label/colectivo Zabra, que irá ter como 21ª edição do seu catálogo Remnant, a estreia discográfica de Baptista, que concedeu uma entrevista à nossa publicação.

Com base nos princípios que permearam o seu portfólio até então, Remnant tem como base a recolha de filmagens e field recordings efectuadas em 2023 como mote para a produção de música electrónica experimental que procura projectar “(…) uma viagem sonora onde se fundem memória, sensação, informação e desejo.” O single de avanço, “Forest Array”, explora estes princípios, sónica e visualmente — comprovado por um videoclipe onde o artista recorre a filmagens e scans 3D dos locais onde concebeu o disco, com pulsos e movimentos accionados em tempo-real através de uma rede codificada. O lançamento do álbum está assinalado para 27 de janeiro, e será apresentado ao vivo no espaço físico da Zabra no mesmo dia e no dia seguinte, pelas 20h.



Ainda que já contes com um certo percurso dentro da intersecção entre artes performativas e tecnologia, Remnant assinala o teu primeiro registo discográfico. Existe alguma linha que traçe esta obra de tudo o que realizaste até então, em termos de modus operandi?

Esta é, de facto, a primeira peça que projecto como sendo essencialmente um álbum sonoro e sinto que esse é o ponto mais diferenciador face às criações anteriores. Ela começa existindo unicamente como um álbum, mesmo que depois acarrete também consigo, inevitavelmente, um universo visual, e que a vá apresentar num formato de performance/concerto/instalação. Mas apesar de ser a primeira peça que se inicia num disco, o facto de ela envolver uma implicada produção sonora e se expandir para um projeto transdisciplinar acaba por me fazer sentir uma familiaridade face ao que já fiz antes, tanto do ponto-de-vista da pesquisa como da técnica, através das colaborações que fiz com outres artistas ou mesmo das peças que criei anteriormente, nas quais também fiz todo o trabalho sonoro; e tal como nos outros projectos, também armadilhei esta peça com várias pistas para aquilo que são os temas e questões mais centrais para mim neste percurso, e que me interessam muito comunicar com as pessoas neste momento. Esse trabalho de arquitetar e engenhar o projecto foi-me bastante familiar, ainda que tenha começado pelo disco e que o projeto seja algo diferente e novo em relação ao que fiz anteriormente. 

Remnant é definido enquanto “uma peça que se centra na cristalização de vários elementos naturais através da utilização de diversas tecnologias, humanas e não humanas, refletindo processos associados à memória e à transmutação.” Que registos procuras obter de tais elementos naturais ao submetê-los a ferramentas associadas a uma realidade tão díspar?

Para mim, usar estas ferramentas tecnológicas é um gesto natural e inevitável. Sinto que no meu método de criação é mesmo uma extensão muito natural das técnicas com que me fui reunindo ao longo dos anos e que continuo a desenvolver e a explorar, seja no domínio visual, no domínio sonoro, ou no desenho de dispositivos de interação pessoa-máquina — mas não pretendo nunca que, nas peças, a tecnologia seja “exotificada”. Para mim, o uso destas ferramentas é mesmo um gesto muito natural de criar dispositivos que existem no presente, através de um approach de neo-alquimia tecnológica; por isso, o que me interessa com este projecto é que, através da subjugação destas matérias ao domínio da técnica, se vislumbre a possível transmutação a nível de sensação e de percepção, e ampliar a apreensão do que já lá está presente, de modo a encontrar, nessa fluidez da forma e do gesto, aquilo que é o espectro do sensível e do brutal. Procuro que se sinta o infra-mundo que opera por baixo da superfície (não só no interior de cada receptáculo e agente que cada um de nós é, mas também no domínio invisível do habitat), e que se reflicta sobre ideias de transformação, das operações invisíveis mas pervasivas, e da transmutação das coisas. Além disso, a realização da natureza sistémica de tudo aquilo que é ‘orgânico’, e a fluidez que é possível emanar através da aparente austeridade de uma máquina, são dois pontos de tensão que, nesta ideia de criar peças de arte, também me tem sempre interessado colocar em diálogo.

O corpo humano tende a ser um agente fulcral do teu trabalho: A.T.M.A. [Access Terminal for Memory Archives] ou VESSEL são exemplos de obras de uma exploração onde corpo e máquina se complementam para proporcionar uma finalidade artística homogénea através de conceitos de memória, registo de informação, ou transformação. Este agente tem alguma relevância no disco, ou procuras direccionar o projecto na observação do mundo natural em geral?     

A primeira peça que referiste, certamente, mas a segunda vem também por inevitabilidade. A questão do corpo é interessante, pois apercebi-me naturalmente dessa apetência conforme fui criando. Talvez tenha ocorrido por ter começado o meu percurso artístico ligado à dança e à performance, enquanto estudava Informática na faculdade em simultâneo (ali entre 2012-2017); por vezes até penso que as pistas do que viria a fazer mais tarde estavam todas lá desde o início. Mas esses pontos que referes têm, sem dúvida, relevância: em 2017, criei uma peça que publiquei online em formato de videojogo, que lida com a cristalização de memórias e com a transfiguração de espaços e a presença suspensa de corpos; em A.T.M.A., usei a tecnologia como veículo para extrudir sons e visuais do meu próprio corpo; e no caso de VESSEL, foi construída uma máquina com olhos e ouvidos virados para o espaço, e que trabalha com os corpos humanos visitantes, por isso explora de uma forma mais preponderante questões relacionadas com a alteridade.  

No entanto, aqui com Remnant há esta questão de pensar um corpo além do humano, e de usar as tecnologias como veículo para a exploração destes lugares naturais, nos quais existem imensas transacções a acontecer e um potencial enorme do ponto-de-vista daquilo que é a relação do humano com o extra-humano, com o tangível e o intangível, e o processo de tornar tudo isso inteligível. Para além da belíssima analogia que existe nestes sistemas vivos e orgânicos com as transacções de informação existente numa rede digital, a vontade de invocar estes elementos nesta peça foi também inevitável, pois relaciona-se com o facto de eu próprio me encontrar neste tipo de espaços quando estava no lugar interno de onde este álbum surgiu, e nos quais já tive experiências fortíssimas ao longo dos anos: passei aí momentos-chave que se prendem com tudo aquilo que tento comunicar, coisas que vi, ouvi, vislumbrei, senti, e reflecti.  Depois também pensei no facto de, na História da civilização humana, estes lugares estarem desde muito cedo ligados a questões relacionadas ao sagrado, à transcendência e ao facto de sermos um elemento que faz parte desta enorme rede de multi-agentes, e isso faz a ponte para muitas das questões que têm permeado o meu percurso. 

O videoclipe do single de avanço, “Forest Array”, é caracterizado pelo uso de filmagens e scans 3D de lugares onde te encontravas no momento da concepção do disco. Que lugares são estes?

Hum… prefiro não revelar geograficamente onde ficam esses lugares. Mas posso dizer que são vários locais de uma enorme área florestal densa e selvagem ao qual me desloco ocasionalmente e onde já passei dos momentos mais fortes e transcendentes que experienciei até hoje; são lugares onde posso estar indefinidamente exposto àquela beleza e brutalidade toda e deixar o tempo atuar. Surgem depois experiências associadas à modulação da consciência e do domínio do humano-animal e do corpo-espírito, que são questões que estão na base deste projecto — mas se desenvolver por aqui, dará certamente uma enorme conversa.

O que serviu de matéria para recolha registada nas field recordings e filmagens traduzidas para o resultado final sónico de Remnant?

A nível do som, são acima de tudo registos que tinha gravados no meu gravador Zoom, num período que passei no início de 2023 no lugar em questão; houve outros registos que recolhi em visitas posteriores. Destes sons podem reconhecer-se a água, a vegetação, animais, humanos, manipulação de materiais como pedra e ferro, etc.. Essa foi a maior base de sons que usei e fez-me sentido começar a partir daí, dada a fabulação que está aqui em jogo. Foi começar por pegar nestas gravações e subjugá-las a diferentes técnicas de transformação, recorrendo à computação digital e a um intricado sound design

Também usei, embora em menor escala, alguns samples que encontrei online e que encaixaram muito bem em partes que pediam certos elementos. Por exemplo, as vozes que se ouvem ora são gravadas por mim ora são destes samples que saquei (de filmes, de videojogos, de documentos sonoros, etc.). A nível de visuais, usei unicamente vídeos e scans 3D dessa área onde gravei os primeiros registos sonoros e onde passei alguns períodos a reflectir, a escrever e a viver. Fez-me sentido que o universo visual passasse pela mesma lógica de cristalizar fragmentos destes espaços e fabricar vários artefactos de memória, que são posteriormente processados.

Considerando o processo do videoclipe de “Forest Array”, pretendes apresentar o álbum ao vivo dentro do mesmo registo, através do cruzamento do conteúdo sonoro com elementos visuais estimulados em tempo-real?  

Sim. Estou neste momento a preparar o concerto de apresentação do disco e ele irá contar com um espaço arquitectado num formato de instalação, onde se encontrarão projectados no espaço vários sons e imagens que gravei e que estão na base do que usei para criar o álbum. Aqui há uma componente de interacção entre o público e a peça exposta, pois podem navegar e experienciar livremente estes artefactos de memória que estão suspensos e instalados no espaço; depois, num segundo momento, existe a ativação do devido espaço através do concerto-performance, na qual irei tocar o disco ao vivo. Vão estar presentes alguns vídeos e objectos 3D como os que usei no videoclipe, como o mencionas, mas também outros novos registos.


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