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Fotografia: Yakir Benveniste
Publicado a: 14/02/2024

Num palco entre duas plateias.

Festival Rescaldo’24 — 9 de Fevereiro: algures a meio caminho do lugar

Fotografia: Yakir Benveniste
Publicado a: 14/02/2024

Apanhámos a viagem com o Rescaldo já a meio, após o dia 7 na SMUP (Parede) — actuaram TRisTE e ben yosei — e o 8 na ZDB — as Lantana e Catarata deixaram o festival no equador da programação deste ano. O Rescaldo, já na sua 14ª edição, está numa fase de retempero após o folgo destemido e marcando o panorama de (micro)festivais fora do lugar habitual. Numa certa itinerância exploratória de espaços por Lisboa, começou na Barraca, e teve lugar na loja Trem Azul, no Sol e Pesca, no Pequeno Auditório da Culturgest, na Galeria Zé dos Bois e ascendeu ao Panteão. Após paragem em 2018, que levou mesmo o criativo Travassos ao limbo da reflexão: “…passei muitas noites a equacionar essas mesmas premissas [originais] e a relevância do Rescaldo, e tive dúvidas se ainda seria pertinente a sua existência. Mas olhando em redor para o cenário é fácil perceber que não há nenhum festival com as características do Rescaldo. Por isso o Rescaldo faz falta.” Ponto chave trazido da entrevista concedida ao Rui Eduardo Paes para o ReB, num rescaldo do Rescaldo em 2022, no reafirmar do regresso nesse mesmo ano, na nova fase — a das aves-raras, como ilustram os cartazes das edições desde então. Aves imaginárias, de crista levantada, em pousos proto-estáticos, prontas a levantar voo para outros espaços e dimensões.

O Auditório da Reitoria da Universidade Nova de Lisboa é uma sala com boa acústica e traço moderno, proporcionando um ambiente entre o conforto da madeira e o vazio do negro, uma caixa mágica, e que foi bem revelada para eventos musicais como o celebrativo festival Causa|Efeito, no ano transacto. O Rescaldo tem dose dupla neste lugar, segue essa pista, com Folclore Impressionista a abrir, e Tó Trips a fechar a terceira noite do Rescaldo.

Folclore Impressionista, neste caso é o conhecimento (im)popular, numa tradição inventada, que pretende impressionar. Sabemos que o Estado Novo se serviu duma folclorização da tradição impondo a recriação duma cultura popular. Reinventadas foram as tradições, numa estética à medida da propaganda, em claro empobrecimento. Aqui trata-se antes de uma invenção criativa, em redor de uma tradição cultural inexistente, dum “futuro que existiu em tempos, num passado mais ou menos distante” como os define Rui Miguel Abreu. Em palco, e sob a tela branca estão na aventura imersiva do lugar João Paulo Daniel, Sérgio Silva e António Caramelo. Não sabíamos à partida, sabemos após o vivido, que tudo aquilo é material inédito. Este Folclore tem duas edições discográficas (reveladas em vinil) da sua acção, A New Sensation: Music for Television (2020) e Idea of Nature (2022) com selo autoral da Russian Library. A experiência de os ver em palco traz um valor acrescentado, a dimensão facilitadora da imagem, ao ponto de deixar a dúvida criativa se é musica para servir as imagens ou o revés. A imagem é dinâmica e remete para o campo do animatógrafo e dos primórdios da projecção da imagem, a lanterna mágica da fonte de luz projectada através de placas de vidro — as Fantasmagories. São placas de vidro contendo imagens fixadas as que Caramelo manipula e “anima” dando-lhes movimento através de uma mesa de luz e câmara video. Sobrepõe, emparelha e arrasta diapositivos que em tela revelam uma paisagem sonora. Paisagem que é alimentada pelo plasma granular trazido dos dispositivos analógicos encimados pelo impressionante leitor de bobines de fita magnética Akai reel-to-reel. A fita do tempo sonoro é revelada na magia operativa, como num laboratório de luz vermelha o é para positivar a película, manipulam em diversos momentos as rotações das bobinas, intervindo no tempo maquinal. Sobre isto é desbravada a textura contida no sintetizador analógico e noutros dispositivo de controladores sonoros. Na adição das parcelas surge o resultante espectro plasmático embebido da dimensão dum passado, duma revivência, ainda que não saibamos qual sem projectar um futuro. Um Phill Niblock, que foi fundamental nestes universos que se escutam, que remetem à abstracção longínqua tão arrastada como hipnotizante, suspensa no espreguiçar do drone. Ficamos retidos nos jogos de refração e ecos das imagens, entre o microcosmos e o um mundo que ainda não sabemos existir mas cultivamos na memória para não perder de vista.



Tó Trips, figura incontornável da lusitanidade no que que à musica que importa diz respeito. Guitarrista saltimbanco, de lugar em lugar, de banda em banda, a transcrever o seu repentismo criativo nas cordas em afinações distendidas com as dos mestres do delta do Mississippi. Tó Trips que viaja e faz-nos andar entre um cá e lá, entre um mediterrâneo prévio à drenagem humana a que assistimos, que liga as culturas do lugar ao sul, que transporta e faz transportar o que somos lembrando de onde viemos. Falamos duma música criativa que traduz a ancestralidade contida no cruzamento e miscigenação cultural, somos feitos desta confluência que se ouve. Traz na bagagem o seu mais recente 12″, Popular Jaguar (2023) para ouvirmos mas também um road-book, um livro do seu caminho — “Ínfimas Coisas”. Livro de estrada, um “road & roll” no percurso da partilha criativa estrada a fora, como em Kerouac, que é fonte inspiradora. Para palco traz cinco guitarras, das quais usa preferencialmente três, uma delas o mítico modelo de cor do fogo, a jaguar. Que confessa, concerto adiante, veio de arranjar ontem mesmo — “vamos ver como funciona”. Confesso a minha paixão, desde adolescente, pelo mesmo modelo, por ser a que o meu guitarrista predilecto, o “não-guitarrista” Blixa Bargeld usava no tempo em que fez parte dos Bad Seeds de Nick Cave. Tó Trips começa o concerto com “Península dos Índios”, designação aprendida numa noite de hotel em França com um funcionário fazendo referencia à Península Ibérica, o que ficou na memória deste irreverente guitarrista. Prossegue com “Rua Escura”, o tema-título do álbum “Popular Jaguar”, que para além da referida guitarra evoca a figura de quem anda sempre na sombra, sem dar nas vistas, sem dar alarido, mas que está aí atento. “Amor em Tempos Fodidos” evoca o tempo de criação do tema e mesmo da composição do disco, como balanço fundamental em tempos em que os criadores puderam ter tempo para criar mais que nunca mas que arriscaram na arte da sobrevivência como nunca. Depois prossegue viagem “Para lá de Marraquexe” a travessia do Mediterrâneo, lembrando as aventuras em que eram protagonistas os que “iam daqui com 20 paus no bolso” de quem ouviu falar em miúdo com espanto e veneração. Tema chocalheiro este, com o guitarrista a tornar-se uma vez mais one man band, empregando adornos sonoros, ao estilo de caretos do Entrudo, no pulso e tornozelo. Tó Trips é e toca com grande honestidade, a revelar isso mesmo a confissão no “Processo de uma Aparição”. Tema em aberto, sem fecho de composição, comenta “demorou anos a compor e talvez ainda nem esteja acabado”. Dedilhar languido em passagem como que a tecer uma banda sonora para um filme noir, de enredo lento. Mesmo não querendo, o final haveria de ter lugar naquela intima prestação. Chegamos pela mão do mestre guitarrista até uma saborosíssima “L.A. Chet”, tema de devoção ao mestre trompetista Chesney “Chet” Baker. Terá sido a voz de Baker a entrar no prolongado sampler disparado a par do tema contando uma grande estória? Foi a companhia ideal e soube tão bem ouvi-los aos dois. Sabemos que Chet acompanha Tó Trips na  banda sonora da sua vida. Tó Trips tem também ele esse lugar em muito das vidas de nós.


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