O Rimas e Batidas conversou com Travassos, o músico, designer, editor e programador (agora também com a contribuição de João Castro) do Rescaldo, que tem este ano datas marcadas para acontecer entre 2 e 6 de Março próximos. O que se segue é o rescaldo do Rescaldo por parte de quem melhor o pode fazer, numa avaliação do percurso do festival e das razões que o levam a achar que, dois anos após a sua interrupção, nos fazia falta.
Agora que o Rescaldo está já na adolescência (cumpre-se este ano a sua 12ª edição), é boa altura para se fazer um balanço. Como vês a sua evolução? O que se mantém das premissas originais e o que foi mudando, tanto devido às circunstâncias como ao próprio cenário musical que cobre?
Qualquer altura é boa para fazer balanços, mas nesta fase é particularmente importante olhar para trás e analisar com critério a curva de crescimento, afirmação e queda do Rescaldo. Quando soube que o Rescaldo não iria ter continuidade na programação da Culturgest, numa fase em que estava num auge de aceitação, um enorme buraco instalou-se no meu estômago e rapidamente concluí que a partir desse momento estava de mãos e pernas atadas. Isto porque esse foi um período de ruptura, dos mais cruciais nos últimos anos, que desregulou todo um sector que estava em crescente consolidação, e que, de uma forma ou de outra, a todos afectou.
Falo do fim do Maria Matos enquanto sala de média dimensão com programação regular de qualidade e, consequentemente, da mudança de paradigma da nova gestão da Culturgest, que assumiu como princípio programar só para o grande auditório e abdicar totalmente do pequeno. O que deixou pelo caminho uma parcela muito significativa de músicos. Porque nem todos têm capacidade para encher um grande auditório, ou estariam a meio de um processo para lá chegar. Basicamente deixou de haver estruturas com meios dignos para nutrir uma esfera que, de um dia para o outro, deixou de ter salas que conseguissem apoiar a sua sustentabilidade.
Ficou no ar a promessa de um TBA que iria colmatar esse gap, mas que aconteceu sempre aos soluços sem grande visão do papel que lhe cabia desempenhar. Só recentemente se começa a ver uma pequena luz ao fundo do túnel.
As premissas originais mantêm-se intactas, continuam a ser válidas e plenamente necessárias. Contudo, passei muitas noites a equacionar essas mesmas premissas e a relevância do Rescaldo, e tive dúvidas se ainda seria pertinente a sua existência. Mas olhando em redor para o cenário é fácil perceber que não há nenhum festival com as características do Rescaldo. Por isso o Rescaldo faz falta. Sempre nos sentimos muito acarinhados por todos e isso dá-nos muito alento.
Como o próprio nome do festival indica desde o início, há a intenção de apresentar nas programações de cada edição a música que mais impactou no ano anterior. E no entanto o Rescaldo acabou por funcionar como um barómetro das novas tendências, do que está para vir. Isso já estava intencionado ou aconteceu?
Nunca houve nenhuma intenção do festival assumir esse papel, mas concordo que acaba por funcionar como um barómetro ou uma rampa de lançamento, na medida em que muitos dos músicos que deram os primeiros passos no Rescaldo são hoje unanimemente legitimados com carreiras estáveis e continuamente promissoras.
O Rescaldo começou por ser um projecto pessoal teu, em conexão com a tua actividade editorial, na Shhpuma, o teu trabalho como designer de capas de discos, designadamente as da Clean Feed / Trem Azul, e o teu percurso musical. Pelo que sei, entretanto associou-se a ti o João Castro, da Nariz Entupido. Isso introduziu uma outra perspectiva das coisas?
O Rescaldo sempre foi um projecto solitário. Talvez mais ligado à dinâmica da Trem Azul, que facilitava uma série de contactos e de envolvimento directo num circuito. E intrinsecamente conectado com a Shhpuma. Nasceu com o intuito de fazer uma ponte entre os concertos e as edições. Funcionava como um complemento de aposta nesses projectos, o que lhes conferia uma projecção considerável. Tendo em conta a capacidade de internacionalização, através da boleia da Clean Feed, e também pelos seus próprios canais.
João Castro foi a melhor coisa que podia ter acontecido ao Rescaldo. Foi ele quem mais me motivou e incentivou a voltar a encontrar novas casas para o festival. E em boa verdade ele tem sido o motor desta nova edição. A sua escolha não é à toa, pois ele acompanha o Rescaldo desde o início e conhece os seus passos melhor do que ninguém. E acima de tudo pelo seu dinamismo enquanto promotor, através da Nariz Entupido, que tem sido fundamental para alimentar o panorama e preencher o vazio dos últimos anos. É um indivíduo perspicaz e acutilante que não tem qualquer receio de me confrontar de uma maneira sempre saudável e respeitosa. E isso agrada-me muito, porque acaba por aumentar bastante o nível. Foi muito interessante e desafiante toda a construção desta nova edição com o João.
Na sua actual configuração, dividindo-se entre vários spots de Lisboa, há mais do que o propósito de ter como poiso os lugares que já têm um historial de programação das “outras músicas”, uma filosofia de ocupação plural da cidade?
O festival sempre se repartiu por vários locais ao longo da sua história. Começou por ocupar a Barraca, nas suas primeiras edições, e depois alastrou-se para outros lugares como a Trem Azul, o Sol e Pesca, o Panteão Nacional e a ZDB. O vínculo à Culturgest acabou por ajudar o festival a fixar-se naquele espaço. Era, apesar de tudo, uma posição privilegiada com uma máquina de produção bem oleada, que tudo facilitava. Uma situação benéfica e cómoda, tanto ao nível financeiro como técnico e prático. O festival tornou-se assumidamente um evento da Culturgest e o público já o identificava como tal.
Obviamente que as escolhas relativamente aos espaços que acolhem o Rescaldo têm de ter uma ligação com o tipo de música que estamos a programar. Têm de ser locais com carisma e abertura. Sempre nos agradou essa lógica de ocupar espaços plurais na cidade, e creio que no futuro essa vai ser cada vez mais a nossa intenção. Sendo que queríamos e precisamos de ter poisos certos que nos possam garantir certo e determinado tipo de condições que só poucas entidades podem oferecer.
Dado estares numa posição privilegiada de observação destas tais outras músicas, que opinião nos podes dar sobre o estado actual da cena ou das cenas, tendo em consideração que o Rescaldo cobre uma grande variedade de géneros e tendências musicais, da improvisada e da exploratória às margens do rock, da pop, da electrónica com beat e de tudo o que aparece nos interstícios?
Um dos privilégios que me dão mais prazer é estar na posição de poder observar, desde cedo, as movimentações que vão acontecendo nos mais variados espectros sonoros. Apesar de cada vez estar mais exigente na avaliação, nunca deixo de ser surpreendido com novos músicos, novos projectos, novas articulações e reconfigurações. O nosso pequeno território tem-se revelado sempre fértil e activo, independentemente de todos os constrangimentos associados a este tipo de música. Ninguém pára de criar, de lutar, de desbravar novos caminhos e de se reinventar. É absolutamente fascinante.
Em jeito de balanço, precisamente, que pontos altos da história do Rescaldo podes referir? E porque nada na vida é necessariamente positivo, tens falhanços a assinalar, bem como formas de os compensar que tenham sido tomadas?
O primeiro grande momento foi ver a Barraca a transbordar e todos a alinhar no mood. A partir desse dia comecei a acreditar seriamente nas potencialidades do festival. O facto de o Rescaldo ter sido acolhido e apadrinhado pela Culturgest foi um passo muito importante, tal como uma medalha de mérito. Assim como o foi, de seguida, a conquista da garagem da Culturgest — não foi fácil – e termos conseguido optimizar esse espaço de ano para ano. No final tudo parecia ser evidente.
Assinalo o concerto dos Black Bombaim com Peter Brotzmann, que resultou num excelente disco que certamente vai ficar para a história. Todo o processo de juntar uns putos do stoner com um gigante do free jazz, que aparentemente pouco tinham em comum, foi uma experiência inesquecível. Destaco também o concerto dos Calhau, que foi deveras sui generis. No final, todo o público estava extasiado. Muito especial foi juntar Carlos Bica e Norberto Lobo. Foi um encontro muito feliz, que infelizmente nunca mais voltou a acontecer. De referir ainda o concerto da Nova Orquestra Futurista do Porto. Deixou todos de boca aberta, plenamente deliciados. Joana Gama no Panteão Nacional foi mágico. E houve tantos outros momentos.
Claro que também existem falhanços, que funcionam como alertas e te fornecem directrizes para aprimorar o futuro. Aconteceu com casos de músicos que, pura e simplesmente, ainda não estavam preparados para pisar um palco como o da Culturgest. Era uma prova de fogo para muitos, e alguns, não muitos, revelaram-se frágeis e imaturos e não conseguiram responder à altura.
Quais são, para além do que já foi falado, os critérios de programação do festival? As escolhas são feitas com base no que gostas ou correspondem a uma oportunidade conjuntural, de pertinência, de leitura do que é importante, do que as pessoas esperam ouvir? De uma forma ou de outra, como lidas com a ideia de que aquilo que é excluído pode ser entendido como uma não-validação, mesmo que não seja essa a tua intenção?
Os critérios de programação regem-se por princípios constantes, que têm a ver com o próprio conceito geral do festival. Que é fazer um balanço/rescaldo anual da mais relevante produção lusa, independentemente do seu género ou proveniência. Apresentando, em cada noite, dois concertos, ou mais, de géneros e públicos teoricamente distintos, procurando assim aproximar artistas e públicos, promovendo uma salutar convergência de sensibilidades tão necessária quanto natural. A avaliação tem sempre em conta factores como qualidade, criatividade e inovação ou ainda perseverança de carreira.
Muito importante é assistir a concertos antes de programar os projectos, e por vezes é humanamente impossível assistir a todos, mas é uma regra que tento cumprir o mais fielmente quanto possível.
Nunca programarei algo de que não gosto só por uma questão de conveniência. Se isso acontecer demito-me.
O festival tem uma dimensão limitada e certamente que nem todos podem ser escolhidos. É uma grande injustiça se encararem esse factor negativamente. Terão de continuar a trabalhar, e saber esperar pela sua oportunidade.
Numa altura em que vai importando – com pressões a surgirem quando tal não se verifica – haver uma presença cultural de mulheres e de minorias (artistas racializados e de identidades de género e sexualidades não-normativas), que comentários farias a uma crítica que assinalasse o facto de, nesta 12ª edição, não parecer haver essa preocupação? No caso das participações femininas, estão em cartaz apenas Clothilde, Toda Matéria e Fala Mariam no Carro de Fogo de Sei Miguel. E não há nenhum afrodescendente programado.
Isso é um assunto que não me preocupa minimamente. Nem nunca irei ceder a pressões dessa natureza, porque pura e simplesmente não têm qualquer nexo. A programação, quando é elaborada, tem em conta os critérios que foram mencionados anteriormente e nunca está em causa se são mulheres, homens, azuis ou amarelos, o que conta são a virtude dos projectos e o seu encadeamento no alinhamento do cartaz.
De um ponto de vista mais realista, a matemática é simples: se existem aproximadamente 70% de homens a praticar esta música e somente 30% de mulheres é evidente que isso se reflecte na programação. Estes dados estão cada vez mais esbatidos, felizmente, mas trata-se de um processo com uma certa complexidade que demora tempo a ser nivelado. Tudo vai no bom caminho. Afrodescendentes!!?? Onde é que eles estão? São uma raridade nestes géneros de música.
A ideia de rescaldo implica uma noção de periodicidade, e esta faz-se de ano a ano. Ainda assim, tens projecções quanto ao que se pretende que o Rescaldo seja futuramente?
O plano do Rescaldo para o próximo ano é conseguir expandir-se a outros espaços que consideramos terem todas as características para o albergar. Existem parcerias apalavradas e promessas no ar e, sobretudo, a intenção de ir mais além. Acho que o Rescaldo merece que isso aconteça.