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Fotografia: Joe Magowan
Publicado a: 22/07/2021

Para chegar mais longe (e a mais pessoas).

Emma-Jean Thackray: “Nunca tinha mostrado este lado de compositora de jazz orquestral”

Fotografia: Joe Magowan
Publicado a: 22/07/2021

Emma-Jean Thackray projecta uma imagem de pessoa introvertida, mas, ao mesmo tempo, plenamente confiante, alguém que acredita nas suas próprias capacidades, mas que não pretende abusar delas. Ou seja, nunca poderia ser uma estrela pop, o que não deverá ser problema ate porque tem sido no campo do “novo” jazz que se tem afirmado, sendo um dos nomes mais recorrentes sempre que se procura enumerar o contingente que dá essa vibração especial a Londres.

Via Zoom, sentada no seu estúdio, a (respirem fundo…) trompetista e cantora, compositora, letrista e arranjadora, produtora, engenheira de som, DJ e apresentadora de rádio (é bem provável que haja algo mais…), fala de forma solta e descomprometida sobre Yellow, álbum que amanhã mesmo chega às plataformas de streaming. Lançado através da sua própria Movementt, selo criado dentro da estrutura da Warp, este é um trabalho que revela maior ambição formal, mais “Brian Wilson“, como ela mesma sugere, com arranjos para cordas e metais a contrastarem com o que foi mostrando nos EPs em que basicamente trabalhou sozinha no seu estúdio. Claro que Emma-Jean Thackray já teve muitas oportunidades para mostrar ao vivo como interage com os seus músicos e foi isso que lhe cimentou a reputação que agora carrega para Yellow. E terá também sido essa reputação que, no passado mês de Junho, levou Jools Holland a convidá-la a mostrar-se ao mundo através do seu popular programa Later With…

No seu novo trabalho, a trompetista (e tudo mais…) aceita o peso que uma estreia de fôlego implica e apresenta serviço, não apenas assumindo múltiplas funções, inclusivamente tomando a dianteira no plano vocal, mas também explorando uma série de avenidas musicais que são demonstrativas da sua ampla perspectiva musical que se estende do jazz espiritual ao house, da electrónica mais planante ao jazz-funk de fusão dos anos 70, da família Coltrane à encarnação Mwandishi de Herbie Hancock. E daí à subtileza e sofisticação pop de Brian Wilson. Bem, se calhar, e ouvindo o material do novo álbum, talvez Emma-Jean Thackray possa até ser um novo tipo de estrela pop. Certo, certo é que ideias e capacidades não lhe faltam.



Quando conversámos no ano passado estávamos a “cinco minutos” de entrar em confinamento. Na altura falaste-me sobre planos para uma digressão, planos para o teu primeiro álbum. Inicialmente, como é que tu lidaste com a pandemia e tudo o que veio com ela?

Eu não tive escolha senão lidar com a doença, porque apanhei COVID-19 logo no início. Eu estive de cama durante algumas semanas, a sentir-me horrível. Depois disso, passei por um longo processo de recuperação. Eu não consegui cantar ou tocar trompete durante meses, devido à longa duração dos sintomas. Lidei com isso porque tive de o fazer. Fui forçada a confrontar tudo. Em muitos aspectos, acho que lidei muito bem com isso. Tenho um local, um estúdio, carradas de discos para me manter ocupada. Eu sou uma pessoa introvertida, de qualquer forma. Gosto de estar na minha, não apareço à frente de toda a gente, desligo o telemóvel e deixo-o numa gaveta. Esse tipo de coisas. Mas, ao mesmo tempo, sendo eu uma freelancer, isso traz outras questões à tona. “Merda. O que é que eu vou fazer para ganhar dinheiro?” Aceitei fazer uns quantos remixes, que é algo que eu já vinha a fazer e também algo que eu adoro. Abordei o meu trabalho de forma diferente. Estava bastante chateada por a digressão não ter acontecido. Tu sentes que estás numa certa trajectória e quando surge um desvio tu meio que entras em pânico. Mas nós, enquanto humanos, creio que nos adaptamos muito rapidamente a novas situações. Na verdade, não temos mesmo outra opção que não seja adaptarmo-nos.

Em relação ao álbum, quando é que decorreram as sessões de gravação?

A maioria aconteceu antes da pandemia. Mas foram feitas, também, algumas coisas já na altura do Verão. Gravar umas cordas, arranjar cantores adicionais para preencher os vocais, conseguir uns sopros. Isso foram tudo overdubs, feitos posteriormente. Também tive de esperar até recuperar o meu fôlego para conseguir cantar. Não é que eu não conseguisse cantar, mas eram apenas frases curtas. O mesmo aconteceu com o trompete. Tive de esperar um bocado. Tive de esperar até ter algum apoio para o fazer. Por isso, muitas das vozes foram gravadas, creio, por volta de Setembro ou Outubro.

O disco soa-me a uma recusa em submeteres-te à depressão geral que envolveu o globo já há mais de um ano. Está repleto de luz, é espiritualmente rico, soa positivo. Dirias que é a tua contribuição para a cura que todos precisamos de atravessar?

Antes de mais, obrigada. Isso é muito amável. Mas eu não sei, até porque o escrevi antes de tudo isto, quando ainda estávamos todos repletos de esperança [risos]. Ficou todo escrito em 2019. Mas eu sinto que esta é a altura perfeita. As pessoas precisam de sentir os raios de sol, a comunhão. É sobre isso que o álbum fala, o facto de nós sermos uma unidade dentro do universo. Essa era a minha intenção. E creio que isso é mais urgente do que nunca, com tanta gente a sentir-se isolada e tudo mais. O timing foi perfeito, creio. As pessoas precisam de algum positivismo. Espero que a escuta seja uma experiência que traz alguma vitalidade a quem ouve o disco. Seja em casa, no sofá, ou num clube, o que acabará, eventualmente, por acontecer: eu quero que as pessoas o escutem e que isso lhes traga aquilo que elas precisam.

É aquilo que se diz dos artistas: vocês não vivem no presente, estão sempre um pouco mais adiantados. Talvez estivesses a pressentir algo [risos]. Mas olha, reuniste aqui um grande elenco para tocar o álbum contigo. Quando estavas a compô-lo, pensaste logo em todas estas vozes e instrumentos?

Sem dúvida. Eu tinha uma ideia geral do mural sonoro que queria mostrar. Isso veio-me à cabeça e eu só tive de o escrever e expressar. A visão geral estava na minha mente. Este som “grande”, influenciado pelo Brian Wilson. Queria ter este som intenso, “grande”. É algo que eu já venho a tentar fazer há algum tempo. Nos meus EPs anteriores tu tens pequenos vislumbres disso, da forma como eu gosto de escrever. Tens, por exemplo, o LEY LINES, em que sou apenas eu, sozinha em casa a samplar-me a mim mesma. Lá tens alguns vislumbres desse tal som. Depois tens o meu outro lado, de dirigir e fazer arranjos para um grande ensemble. É isso que eu sempre achei que ia ser, uma compositora de jazz orquestral. Só que nunca tinha mostrado esse lado a ninguém num disco. É isso que quero com este trabalho, que este álbum seja um reflexo de mim, de todas as formas de como eu gosto de trabalhar. Seja sozinha, a fazer overdubs de mim mesma e a samplar-me, ou a fazer arranjos para todas estas pessoas. São tudo formas de trabalhar das quais eu gosto. Tudo facetas minhas que eu consigo mostrar neste momento.

E tu desempenhas várias tarefas dentro do disco: produzes, compões, arranjas, tocas, cantas… És a artista completa. Exploraste novas avenidas neste disco, que sintas não ter percorrido antes? O que é que foi mais desafiante para ti, dentro de todo este leque de funções que desempenhas?

Eu acho que todas elas sabem ao mesmo. Todas elas têm a mesma origem. A que me roubou mais tempo foi a mistura, sem dúvida. Não foi necessariamente a tarefa mais árdua, mas demorou muito tempo. A forma como eu gravei algumas das faixas foi com recurso a equipamento que estava um bocado danificado [risos]. Tive de fazer algumas coisas [para corrigir isso], como isolar a pista da tarola, porque não estava a “bater” como eu queria. Isolei a tarola, fiz um mapa MIDI de todas as tarolas que queria puxar para cima e larguei lá os samples da mesma tarola, mas gravada separadamente. Impulsionar a tarola para o plano correcto foi um processo que me tirou muito tempo. Foi doloroso. É um trabalho muito minucioso. Mas valeu a pena, porque agora a tarola soa um bocado mais alta. É isso. Tirou-me muito tempo e deu-me algumas dores. Mas o processo em si sabe-me tudo ao mesmo. São apenas formas diferentes de executar aquilo que tenho na minha cabeça. Eu faço o que tiver de fazer, com o que seja que tenho à minha frente, de forma a tornar possível aquilo que eu idealizo.

Tu contaste com a presença do David Holmes em algumas das sessões de gravação. Ele é um dos meus heróis pessoais.

A sério? Ele é fantástico!

A sério. Como dirias que era a atmosfera geral durante essas sessões?

Divertida, creio eu. A forma como eu transmiti as ideias a toda a gente… Eu escrevi as partes da malta dos sopros e das cordas e pedi-lhes “toquem isto”. Por isso, foram uma espécie de músicos de sessão. Na secção de ritmos deixei que as coisas fossem mais fluidas, até porque são o núcleo da banda com quem eu ando na estrada, os meus melhores amigos. Eu não tinha mostrado as composições à maioria deles, antes de as gravarmos. Eles não tinham ouvido nada. Eu não costumo gravar demos. Sinto que se a demo for boa o suficiente, eu simplesmente a edito. Já o fiz antes. Então, cantei para eles, passei-lhes uma folha com as partes principais e “bora gravar!” É um processo estranho porque, depois de ter estado um ano em digressão, as canções vão mudando um bocado. Evoluem. Mas os músicos vão-se sentindo mais confortáveis com elas e conhecem-nas melhor do que quando as estávamos a começar a tocar. Na altura era tudo novo para eles. É viver no limite do “eu não tenho bem a certeza do que estou a fazer.” Creio que há ali um bocado de magia. As pessoas trazem alguma da sua loucura para o processo.

Já mencionaste o Brian Wilson mas, em termos de referências musicais, tu pareces estar a cobrir inúmeros territórios. Ouço no Yellow algo de Stevie Wonder ou das cenas soul mais orquestrais, mas também o jazz de fusão e o jazz espiritual dos anos 70. Ao mesmo tempo, este é também um álbum que vive do som do presente. Essa tensão, entre o que guardas do passado e aquilo com que contribuis para o presente, é algo que eu creio que define o que de mais especial se encontra neste disco. Achas que estou a fazer sentido?

Sinto-me lisonjeada por isso tudo. Obrigado. Claro que eu escutei tudo isso que referiste, desde os Parliament-Funkadelic ao George Duke ou à Alice Coltrane. O Stevie Wonder e toda aquela cena dos 70’s, mais funky. Tentei mesmo capturar um pouco dessa essência, dessa música que eu adoro. Não se tratou de estar a tentar emulá-la, de copiá-la, e creio que é isso que traz a frescura, é um som actual. Eu não pensei “quero que isto soe a P-Funk”. Foi mais “eu quero que isto soe ao ‘eu’ que ama P-Funk”.

Isso faz todo o sentido. Como eu dizia há pouco, o álbum é muito revigorante. Mas há um momento especial que meio que parte na direcção oposta, a “Spectre”. Podes falar-me sobre esse tema?

Eu escrevi-o… Creio que foi a segunda canção que compus para este disco. E sim, é sobre as minhas próprias disputas relativamente aos problemas da mente, da minha saúde mental. É também sobre as pessoas que estão à minha volta, dos meus amigos… É sobre aquilo que eu passo e sobre aquilo que eu vejo os meus passarem. As coisas mais dolorosas. Queria encontrar uma catarse, abrir-me através da letra, das metáforas. Eu não gosto de ser demasiado directa, “eu hoje sinto-me assim porque…” Ao usar as metáforas, as pessoas podem aplicá-las às suas próprias vidas. Seja qual for o problema mental que te está a amarrar ou a sombra que te persegue. São mesmo coisas muito difíceis de lidar e eu espero que te juntes a mim nesta catarse, que te sintas minimamente mais liberto, mesmo que seja apenas um bocado. Quero dar isso às pessoas. A canção simplesmente saiu de dentro de mim. Eu nem me lembro de a escrever. Apenas aconteceu. Comecei a cantar a melodia, fui até ao piano e a coisa simplesmente fluiu toda de seguida. Interpretei-a exactamente como eu a queria. “Acho que acabei de criar uma canção! É melhor escrevê-la para não a esquecer!” [risos] Depois, logicamente, tive de lhe dar uns toques e mexer um bocado na letra, refinar a coisa. Mas no que toca ao esqueleto original, estava todo lá. Simplesmente fluiu da minha cabeça.



Espantoso. E tu cantas em todas as faixas, algo que creio ser inédito para ti, estou certo?

Sim! Já tinha feito umas coisas antes, mas nada de tão grande como neste álbum.

Como é que te sentiste? Foi difícil encontrares a tua própria voz? Até porque tu já eras uma instrumentista de reconhecidos méritos. Sentes que a tua voz é só mais um instrumento ou encontraste nela uma outra forma para expressares as tuas emoções?

Acho que a vejo como um instrumento, mas é claro que existe o benefício de poder usar palavras como uma camada adicional para eu comunicar. Não são tudo, mas podem de facto ajudar. Não é que eu estivesse a pensar algo como “tenho uma mensagem para passar neste disco e vou cantá-lo todo porque as pessoas precisam de ouvi-la”. Foi tudo muito natural. Sempre cantei. Em discos anteriores, fi-lo apenas quando senti que a faixa precisava disso. Achei que era a coisa certa a fazer neste álbum. Fez sentido no meu íntimo eu cantar em todas as faixas. Explorei mais a canção do que em trabalhos anteriores. Quis comunicar dessa forma. Uma das coisas que tenho feito é cantar nalguns programas de televisão (NR: a modéstia de Emma-Jean impede-a de mencionar que foi no programa de Jools Holland). Toquei um destes temas ao vivo e não se vê o trompete em lado nenhum. É interessante, porque eu sou apresentada como a “trompetista jazz de Londres”. Eu penso, “faço todas estas coisas, não toco apenas trompete…” É a mesma coisa que me apresentarem como sendo uma cantora de Londres e eu pensar “mas eu também toco trompete” [risos]. Estou ansiosa por regressar aos concertos porque tenho a certeza de que vão existir pessoas que não fazem a mínima ideia de que eu toco trompete. Vou levar o trompete e elas vão ficar surpreendidas. E isso é divertido [risos].

Ia perguntar-te isso. Como é que este formato se vai traduzir para um espectáculo? E congratulo-te desde já por teres esgotado a data para o concerto de estreia, em Londres.

Obrigado! Eu não creio que vamos tocar todas as faixas do álbum. Há músicas que foram feitas para existir apenas no disco. Depois há outras que sim, servem para tocarmos ao vivo. Vai existir muita improvisação envolvida. Cada vez que tocarmos, o espectáculo vai ser diferente. Vai ser uma experiência. Nós conhecemos a sequência dos acordes e as estruturas. Mas vão existir momentos em que nos vamos libertar e podemos brincar um bocado. Basicamente, temos o esqueleto de cada canção. Temos também alguma da “carne”, mas podemos vir a alterar algumas coisas, vesti-las de maneira diferente. O esqueleto será o mesmo em todos os espectáculos. Mas ainda não pensei exactamente como é que tudo se vai desenrolar ao certo. Estou a meio desse processo. Agora estou a preparar-me para o lançamento do álbum e, se tudo correr bem, espero conseguir partir em digressão no final deste ano ou no início do próximo. Para já, não tenho certezas. Mas estou entusiasmada para descobrir como é que tudo vai correr! Tenho uma ideia daquilo que quero fazer, algo mais dançável, mas também vão existir momentos de loucura total.

Em Portugal, neste momento, ainda só se estão a fazer espectáculos para públicos sentados, cumprindo a distância social. É impossível dançar durante um concerto, neste momento. Esse não será o caso para as actuações que tens em agenda, pois não?

Neste momento, aqui, sim. As pessoas têm de estar sentadas à mesa. Mas esperemos que não seja esse o caso, que as pessoas já possam voltar a estar em pé. É esse o plano. Claro que terão lotação reduzida, menos pessoas. Mas também a vacinação por cá está a correr tão bem, que eu creio que lá para o final de Julho estaremos numa situação melhor.

Foste também anunciada para o festival Jazz à la Villette, em Paris, e tens mais umas quantas datas na calha para o próximo ano. Esperemos poder ver-te também em Portugal. Olha, eu li que tu assinaste um contrato com a Warner Chappell Music; o que é que isso significa exactamente? Vai manifestar-se já neste álbum ou apenas em edições futuras?

Tem que ver com o meu publishing. Eu vou continuar a editar através do meu próprio selo, mas eles ajudam-me na parte do publishing.

Isso significa, talvez, que vai passar a ir mais vezes à televisão ou a contribuir para bandas sonoras e coisas do género?

Espero que sim. O plano é esse. Sempre quis fazer isso. Tenho um mestrado em composição e é isso que quero fazer — compor, produzir. Estou entusiasmada em relação a isso e espero que eles também o estejam em relação a mim. Posso trabalhar com eles em dois níveis distintos: compor para filmes ou, através de um A&R, trabalhar com outros artistas do catálogo deles, providenciar-lhes arranjos ou o que quer que seja que for preciso. Espero conseguir diversificar o meu trabalho. Fazer uma coisa hoje, amanhã outra totalmente diferente. É isso que me deixa muito entusiasmada.

Vais manter a tua Movementt dentro da Warp?

Sim.

Uma última coisa: da última vez que falámos tu mencionaste que poderiam existir outros artistas a lançar trabalhos pela Movementt. Já tens planos relativamente a isso?

Tenho planos, no sentido em que será, inicialmente, através de uma colaboração. Talvez, no futuro. A pandemia veio complicar as coisas, financeiramente. Mas também me ensinou algumas lições. Preciso de abrandar. Fico demasiado entusiasmada em dar o passo seguinte e meio que esbarro contra uma parede devido à exaustão. Estou sempre em sprint até cair e não conseguir mais. Quero dar um pequeno passo atrás, ir mais devagar. Ter ideias para o futuro e tentar conseguir realizá-las mas, ao mesmo tempo, também deixá-las acontecer naturalmente. Vamos ver. Se isso acontecer, muito bem. Mas não vou apressar nada. Apenas deixar acontecer.


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