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Ilustração: Riça
Publicado a: 29/01/2020

Do hip hop para qualquer lado: Crónicas de um HipHopcondríaco é da autoria de Manuel Rodrigues.

Crónicas de um HipHopcondríaco #38: Uma sensação de déjà-vu

Ilustração: Riça
Publicado a: 29/01/2020
Alguma vez vos aconteceu aterrarem numa cidade pela primeira vez e sentirem nesse mesmo instante que já a conhecem há muito tempo? Experienciei isso recentemente quando o meu avião encostou o seu rodado no alcatrão da pista do aeroporto de Marselha. Calma, não abandonem já esta viagem a pensar que isto é algum tipo de abordagem espiritual ou um regresso a uma vida passada como acontece nas películas da grande tela. Nada disso. A explicação é simples. Passei uma boa parte da minha adolescência embrenhado no hip hop francês e, como tal, ouvi grupos das mais diversas latitudes e longitudes (os que acompanham esta crónica sabê-lo-ão, mas nunca é demais sublinhar). É por isso normal que tenha colocado os ouvidos em muitos projectos de Marselha. Mas será isso suficiente para a minha mente ter desenhado o seu próprio mapa das ruas daquela que é capital da região Provence-Alpes-Côte d’Azur? Talvez não. A não ser que tivesse escutado quase à exaustão o tema “Demain C’est Loin”, dos IAM, retirado do monstruoso clássico L’École du Micro d’Argent, editado em 1997. Falo de um documento de elevada importância histórica, uma espécie de reportagem ao coração dos bairros de Marselha, onde imperam naturalmente problemas de prostituição, toxicodependência, tráfico de droga, alcoolismo e violência, como em qualquer aglomerado HLM (nome dado pelos franceses aos bairros de habitação social) desta nossa desequilibrada e problemática esfera, na verdade. Desenganem-se aqueles que pensam que este tema é uma visão superficial escrita à superfície do betão ou ao nível da crosta dos empedrados que decoram as apertadas ruas e ruelas do lado mais periférico da cidade. Em “Demain C’est Loin”, Akhenaton e Shurik’n, os rappers de serviço (a eles juntam-se os DJs, beatmakers e produtores Khéops, Imhotep e Kephren), descem as mais sombrias escadarias e escavam até ao ponto nevrálgico de uma vivência à margem da sociedade, quase sempre esquecida ou propositadamente abandonada. O vídeo que a acompanha mostra imagens de uma Marselha que não surge nos excertos institucionais de índole turística ou nos postais que se erguem arrumadinhos nos escaparates rotativos das lojas de souvenirs. É um retrato sem qualquer tipo de filtro de intensidade ou farda que camufle as vivências de rua e tudo aquilo que acontece quando o sol se esconde do lado de lá da linha do horizonte. Não existe aqui qualquer intenção de polir um cenário, tornando-o mais belo e resplandecente. A procura da verdade é evidente e chega-nos pura e dura, como se pede neste tipo particular de abordagem. E chega mesmo a chocar, em determinadas alturas. Mas um abre olhos nunca fez mal a ninguém, pois não? Numa entrevista de 2015 para o site Konbinique tive oportunidade de citar aquando da reportagem do concerto do colectivo na U Arena, em Paris –, realizada por altura do 18º aniversário do lançamento da música, Akhenaton justifica o teor das imagens utilizadas, propositadamente captadas para a ilustração dos cerca de nove minutos de verso corrido (sem refrão, do mais cru que pode existir), contextualizando-as com o paradigma de Marselha do final dos anos 90 – a dada altura chega mesmo a revelar que a polícia lhe “confiscou” cerca de cinco horas de material, por este colocar a nu muitos episódios de má conduta e abuso de autoridade.    Não posso dizer que tenha sentido essa faceta de Marselha quando lá estive, apesar de Akhenaton garantir que o cenário actual é bem pior que o de antigamente, dada a radicalização da camada jovem em resposta a uma promessa falhada de liberdade e igualdade. Senti uma cidade com um enorme carácter e um generoso leque de pontos de interesse cultural, do Vieux-Port à Place Jules-Guesde, onde se ergue um grande arco do triunfo, da estação de comboios de Saint-Charles à Catedral Sainte-Marie-Majeure, e da Notre Dame de la Garde, de onde se avista o simbólico estádio do Olympique de Marseille, também conhecido como Vélodrome, à zona do Cours Julien, recheada de restaurantes, bares e algumas discotecas. Foi nesta espécie de aglomerado noctívago, parente próximo do nosso lisboeta Bairro Alto (ruas estreitas, escadarias íngremes, fachadas cobertas de grafittis e animação para todos os gostos), que acabei grande parte das noites, de cerveja na mão, reflectindo sobre o quão familiar tudo me aparentava e na forma como o meu cérebro interligou as imagens gravadas no meu disco rígido interno com aquelas que se fixavam diante dos meus olhos. O que eu senti em Marselha deverá ter sido o mesmo que Akhenaton sentiu quando aterrou pela primeira vez em Nova Iorque e concluiu que já conhecia a cidade de antemão, por ter escutado um número incalculável de canções que tinham a Grande Maçã como epicentro, documentos dignos de crédito do lado de cá do Atlântico e peças-chave de um puzzle que constrói com uma facilidade pouco vulgar mas ainda assim sólido, repleto de florestas de paralelepípedos de cimento, símbolos históricos, labirintos de asfalto, infinitas encruzilhadas e semáforos irrequietos. Foi mais ou menos essa a minha experiência. Nunca me tinha acontecido tal coisa.

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