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Ilustração: Riça
Publicado a: 01/07/2020

Do hip hop para qualquer lado: Crónicas de um HipHopcondríaco é da autoria de Manuel Rodrigues.

Crónicas de um HipHopcondríaco #48: O Santificado Templo

Ilustração: Riça
Publicado a: 01/07/2020

Era uma espécie de ritual. Sempre que podia, e às vezes chegava a faltar às aulas para cumprir com o horário de funcionamento do estabelecimento, atravessava a Mata de Loulé, situada nas imediações da Escola Secundária de Loulé, e dirigia-me até ao terminal rodoviário, onde esperava calmamente pelo autocarro que me levasse até ao sagrado santuário. Normalmente, a rota era garantida pelos mesmos dois ou três motoristas, populares no seio da malta estudante que tinha como ponto de partida Almancil, como era o meu caso. Havia um senhor que nos era particularmente familiar. Não me consigo recordar agora do seu nome mas era ele que, todos os dias, às oito e qualquer coisa, conduzia o velhinho autocarro pela extenuante subida de curvas e alcatrão. Não havia vez em que não me passasse pela cabeça que aquele velhinho machimbombo não iria ter a força suficiente para nos carregar às costas até ao destino e que nos deixaria a todos pendurados em plena passagem de nível, à mercê das toneladas de aço que por ali fugiam perpendicularmente. Era um senhor velhote, de boina e sorriso rasgado. Um perfeito conhecedor do trajecto entre as duas localidades. Não me lembro de alguma vez o ter visto a chegar atrasado ou sequer a perder tempo no seu atribulado caminho.

É possível que tenha sido este senhor a transportar-me nas inúmeras vezes que me dirigi ao meu amado ermo. Ficava exactamente a meio caminho do percurso que ligava Almancil e Loulé, no Areeiro. Não partilhava com muita gente o que lá ia fazer, desejava à força toda que aquele não se tornasse num local de peregrinação banal e de adoração gratuita. Achava-o demasiadamente sagrado para ser assim profanado. Terei dito a uma mão-cheia de amigos, nada mais. E bastou-me levá-los lá uma vez para que se tornassem frequentadores assíduos do espaço. Contudo, sabia que lhe dariam o melhor uso e que nada fariam para causar mau ambiente ou manchar a nossa imaculada imagem.

À hora marcada no horário desdobrável que tratava de guardar às três pancadas na carteira, até que este ganhasse a forma de um puzzle de pequenos e rasgados fragmentos, o pesado veículo chegava para mais uma ofegante viagem. Escolhia o assento com total liberdade (fora do horário de entrada e saída da escola, a lotação do autocarro descia para menos de um terço) e imaginava o que me esperaria quando o motorista colocasse o pé no freio e abrisse as portas para a saída no Areeiro. Era uma pequena loja com material em segunda mão. Tinha antiguidades, peças feias que não lembravam a ninguém e que nem a mais tradicional bisavó se atreveria a colocar nas prateleiras de sua modesta casa. Dispunha de algum material electrónico que nunca me aventurei a comprar por achar que aquilo não duraria nas minhas mãos um simples fim-de-semana. E sugeria ainda um ou outro instrumento que só utilizaria como elemento decorativo, visto na altura a minha aprendizagem musical não ir muito além da flauta de bisel. Havia, contudo, uma zona que superava isto tudo e que me fazia ir lá frequentemente: a dos discos, também eles em segunda mão. Encontrava um pouco de tudo, do rock estranho à pop manhosa, passando pela folk mais inusitada. Cruzava-me com funk que parecia ter vindo do futuro e soul que ficara muito bem armazenada no passado. Música tradicional irlandesa, ritmos da Guadalupe, tudo e mais alguma coisa. Era mesmo uma descoberta.

Por norma, seleccionava uma boa fornada de discos (por ser em segunda mão, saía-me a tuta-e-meia) para levar para casa e passar pelo ACID ou pela Roland SP-606 — na verdade, o que eu queria era material para choppar, editar, loopar e sequenciar. Queria matéria- prima para beats. O senhor da loja, muito simpático e sempre pronto a ajudar e dar o seu palpite, julgar-me-ia certamente louco, tal era a esquizofrenia musical com a qual se deparava na hora de pagamento. No mesmo lote entrava Mozart, Bo Diddley, Stereo MC’s e música das Antilhas. Ria-se simplesmente, desconhecendo o propósito, que eu também fazia questão de deixar nos limites do segredo. Em casa, torcia, dobrava, cortava, colava, virava às avessas, transformava com efeitos e time stretching, dava-lhe uma nova vida, uma nova cara e indumentária, ao ponto de ficar completamente irreconhecível — por vezes, mexia tanto que até me afastava do propósito inicial. Era obrigado a desfazer algumas etapas para que aquilo voltasse a fazer sentido. Gostava mesmo de levar a manipulação do sample ao extremo. De todos os CDs que trouxe do meu santuário, devo ter conseguido aproveitar cerca de dez por cento: havia música que era simplesmente pobre e que não tinha qualquer sumo para espremer. Ou talvez eu não tivesse na altura a maturidade produtiva para perceber que aquilo tinha o seu potencial. Hoje em dia, olho para aqueles CDs perdidos na minha colecção e penso se não haverá ali música que mereça ser reouvida. Não que eu tenha atingido o patamar de guru na matéria, mas porque os meus ouvidos agora são outros. Talvez ainda saque dali umas coisas boas.


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