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Ilustração: Riça
Publicado a: 23/10/2019

Do hip hop para qualquer lado: Crónicas de um HipHopcondríaco é da autoria de Manuel Rodrigues.

Crónicas de um HipHopcondríaco #32: E veio a palavra de Samuel a todo o Coliseu…

Ilustração: Riça
Publicado a: 23/10/2019

Não foi um simples concerto mas sim um acontecimento. No passado dia 18 de Outubro, Sam The Kid voltou a escrever o seu nome na história da música portuguesa (sim, porque isto vai muito além dos limites do hip hop) ao servir um espectáculo que não se focou apenas no formato – acompanhado por uma orquestra e pelos ilustres colegas dos Orelha Negra – mas também no conteúdo, revisitando várias etapas de um percurso discográfico que celebra no presente ano duas décadas – Entre(tanto), o álbum de estreia, foi editado em 1999. Sam The Kid foi um verdadeiro gladiador num Coliseu a rebentar pelas costuras.

Comecemos precisamente pelo alinhamento. Previam-se canções mais recentes, algumas delas retiradas do projecto que divide com Mundo Segundo (o rapper portuense chegou a marcar presença para duas amostras da conexão Gaia-Chelas), outras hipoteticamente sacadas do álbum que lançou em conjunto com Beware Jack (palpite que acabou por não se concretizar), não esquecendo a sua ainda pintada de fresco “Sendo Assim”, sabiamente guardada para a recta final da actuação, com direito a reconstituição cenográfica do Quarto Mágico (mesa, cadeira e MPC colocadas à direita de palco). Esperavam-se também visitas ao venerado Pratica(mente) com canções como “Juventude (É Mentalidade)”, “À Procura da Perfeita Repetição”, “Retrospectiva de um Amor Profundo” e “16/12/95”, vulgarmente conhecida como “Sofia”. A grande surpresa da noite deu-se, porém, quando o rapper de Chelas, nascido em 1979, decidiu em jeito de antologia revisitar algumas das suas músicas mais antigas, presentes nos longínquos Entre(tanto) e Sobre(tudo). Recuar até Entre(tanto) é, para mim que nasci em 1986, reviver a minha juventude. Traz-me à memória os meus tempos de escola, das calças largas e ténis com enchumaços. Andava quase sempre de discman no bolso e com a mochila repleta de CDs que rodavam de mão em mão até acabarem completamente riscados e sem utilidade nenhuma. Ouvi “A Caixa” um milhão de vezes, ao ponto de reconstruir na cabeça os percursos do puto Samuel à procura de uma chave em forma de H. Sempre me intrigou a inicial em si. Seria este um H de hip hop e a caixa uma representação da cultura? Seria a chave uma forma de a revelar ao mundo? Se assim for, qual o significado da busca e da ansiedade de a abrir? E qual a interpretação do desfecho da história? Mistério por resolver ou simples filmes da minha cabeça, o que interessa ressalvar é que sempre prestei muita atenção às letras de Sam The Kid ao ponto de as esmiuçar ao mais ínfimo pormenor.
  Na viragem do milénio, ainda longe do fácil acesso à grande auto-estrada da informação, não só se tornava difícil pesquisar sobre músicas e álbuns como também descobrir quem eram os rappers que nos chegavam em forma de frequências. A ligação directa com o domínio auditivo só acontecia à boleia de concertos, videoclipes e revistas. No caso das mixtapes, com dezenas de participações, a tarefa era ainda mais complicada. Não havia correspondência visual. Chullage era apenas um nome, Valete idem, Xeg aspas. O anonimato mantinha-se durante semanas e meses – em alguns casos, anos. Ouvir “Xeg & Sam” ao vivo, no Coliseu dos Recreios, com a participação de Xeg e Sanryse, levou-me até esses tempos dos soldados incógnitos, quando a mente procurava desenhar retratos dos rappers que viviam exclusivamente nos auscultadores. Avancemos até Sobre(tudo), obra de arte que rodou incessantemente na aparelhagem lá de casa. Aquando do seu lançamento, Sobre(tudo) foi uma verdadeira bomba atómica. Não havia nada assim, nem a nível de letras e muito menos de produção. Entre canções incisivas e com o seu tom de provocação como “Não Percebes” e “Q Mal Tem” era possível encontrar registos introspectivos como a profunda “B.I.” (belíssima epopeia pelos meandros do eu), “Lamentos” (os sentimentos de arrependimento…) e “Sangue”, que no Coliseu teve direito a envolventes frases de cordas, refrão em MPC e remate com a voz gravada do avô (como não amar a frase “tudo isto é uma brincadeira, vamos lá ver para onde vai / seja, de qualquer maneira, sou teu avô não sou teu pai”). Um dos temas de Sobre(tudo) mais celebrados da noite foi certamente “O Recado”. Dizer que conheço este património musical de trás para a frente é pouco. Na verdade, deve ter sido das músicas que mais vezes dissequei em busca de interpretações e outras tantas modulações do território da mente. É um pedaço de arte em forma de storytelling, uma obra poética recheada de inteligentíssimas figuras de estilo. Um justo documento para integrar o plano nacional de “leitura”. Por fim, o formato. Como prometido, o concerto do Coliseu dos Recreios contou com a participação de Fred Ferreira, João Gomes, DJ Cruzfader, Francisco Rebelo, AMAURA, David Cruz e uma orquestra de 24 elementos conduzida pela batuta de Pedro Moreira. Algumas músicas resultaram bem no formato sinfónico, outras nem tanto, algo que é normal acontecer nestas situações – por vezes tem a ver com a própria génese das canções. Veja-se o caso de “Sangue” e “Negociantes”, duas das que brilharam nas suas novas roupagens. Está logo lá, no ADN. O exemplo de uma música propícia a reinterpretações deste género é “Q Mal Tem” – dá para imaginar o sample da “Tourada” de Fernando Tordo a ser embebido nos naipes de cordas da orquestra. Talvez no futuro, numa próxima odisseia ao vivo acompanhada de outros marcos incontornáveis como “Trabalha”, “Sexta-Feira” ou “Paiadores do Hip Hop”. É sonhar muito alto?

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