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Fotografia: Sebas Ferreira
Publicado a: 19/10/2019

10 anos é muito tempo. O rapper e produtor de Chelas regressou aos palcos em nome próprio.

Sam The Kid no Coliseu de Lisboa: E.S.P.E.C.I.A.L

Fotografia: Sebas Ferreira
Publicado a: 19/10/2019

Evidenciar o óbvio será a maneira mais correcta (talvez a única, arriscamos) de começar este texto: ontem viveu-se uma noite histórica para o hip hop português com a celebração do seu nome maior. Nos livros não irá faltar menção ao dia em que Samuel Mira deu o pontapé final — tão importante que talvez só se perceba daqui a algum tempo… — para que esta cultura, focando-nos principalmente na parte do rap, passasse da adolescência irreverente e talentosa à mestria reconhecida (e orgulhosamente independente). Imprescindível.

Se as filas denunciavam a enchente da sala, a reacção à primeira música, “A Partir de Agora”, refutava qualquer hipótese de acanhamento: apoteose total do público perante um Sam The Kid quase incrédulo a atirar “é uma honra estar aqui”. Um semi-Deus a deixar o seu lado humano sobressair. Antes da entrada do protagonista da noite, Napoleão Mira, o pai, exibiu a veia poética e a capacidade de entrega em spoken word numa abertura épica que ditaria o tom para o resto do espectáculo. O jeito para as palavras é, sem dúvida, um assunto de família.

Para chegarmos a este resultado, a moldura em palco teve que ter o enquadramento adequado. João Gomes, Francisco Rebelo, AMAURA e David Cruz de um lado, DJ Cruzfader e Fred do outro, e uma orquestra de 24 elementos comandada pelo maestro Pedro Moreira a dar vida a alguns dos samples recortados por um “miúdo de Chelas” que no arranque desta agora celebrada carreira estaria longe de imaginar que chegaria aqui.

Entre(tanto), Sobre(tudo) e Pratica(mente) mereceram atenção no alinhamento e, tendo em conta que todos os discos foram lançados entre 1999 e 2006, impressionou a vitalidade que as suas canções mantiveram. “Xeg & Sam”, faixa do primeiro álbum que trouxe o autor de Visão Clara e Sanryse ao Coliseu, foi uma das surpresas. “Foi preciso 20 anos para tocarmos esta música ao vivo”, confessou STK, aproveitando a deixa para dar os parabéns ao aniversariante Bambino. O trabalho de casa foi muito bem feito e as nuances técnicas de um Samuel de 40 anos ajudaram a limar o lado inocente do rapper imberbe que as fez. Acima de tudo, o regresso 10 anos depois do último concerto em nome próprio foi um exigente teste à evolução do MC e produtor. Chegar aqui, nestas condições, não é tão simples como o ABC.

Comprometido com a sua visão do que as coisas devem ou não ser, Samuel exibiu o seu arquivo pessoal para tentar criar uma narrativa coesa: desde um telefonema feito há duas décadas a filmagens de Snake (que mereceu toda a atenção na passagem por “Negociantes) e fotos da família (enquanto o avô, a partir de uma gravação, ensaiava rimas), não faltou vontade de “comunicar com o puto de há 20 anos”. Isto também é sinónimo de maturidade.

Independentemente da falta de uma ou outra preferida da plateia (“Solteiro” estaria nos desejos de alguns, certamente), os clássicos não faltaram: “16/12/95”, “O Recado”, tema que teve direito a solo de saxofone de Ricardo Toscano, “Retrospectiva De Um Amor Profundo”, “Não Percebes”, “À Procura da Perfeita Repetição” e “Poetas de Karaoke” eram cantadas, palavra a palavra, por toda a sala. “Hereditário”, um dos diamantes menos óbvios no meio de tantas pérolas, parou o tempo: não devem existir muitas canções com um quadro emocional tão complexo. O exemplo máximo de meter vida no rap.

As homenagens a GQ, Snake e Beto di Ghetto foram a ponte para o passado que foi fechado pela morte, mas existiram outras viagens no tempo que se fizeram com todos os intervenientes. A memorável “O Crime do Padre Amaro” teve prestações imaculadas do “ídolo” Carlão e SP Deville; a já referida “Xeg & Sam”; NBC entregou-se totalmente no refrão de “Juventude (É Mentalidade)”; Mundo Segundo, num âmbito mais focado no presente, veio dar backs e (quase) roubar o spotlight em “Gaia/Chelas” e “Tu Não Sabes”. E não faltou espaço para os Orelha Negra demonstrarem que se deve sempre voltar aos sítios onde fomos felizes.

Lá nos encaminhávamos para o fim quando as luzes se apagaram para uma pequena alteração no cenário: uma cadeira (que involuntariamente acabou por retirar um pouco da seriedade do momento), uma mesa e uma MPC tinham sido colocadas num dos cantos do palco para a estocada final com “Sendo Assim”, o tema que nos trouxe até estas duas datas com orquestra. Assombroso tecnicamente — o controlo da respiração na entrega de esquemas rimáticos tão complicados tem, se sair em DVD, eventualmente, que servir de material de estudo –, Sam The Man fez simplesmente o que lhe competia, o suficiente para que no fim se pedisse mais, mais e mais. Aos génios, aqueles que dão “o máximo por um clássico”, dá-se o benefício do tempo. Sem pressões. Do concerto, pouco mais há dizer. Foi sublime.


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