Demorou, mas finalmente aconteceu. Sintra teve, finalmente, direito ao seu próprio festival de arte emergente e disruptiva no final da semana passada, entre os dias 12 e 15 de Setembro. Foi literalmente um Clarão que se fez sentir naquele que é um dos concelhos mais jovens do país e do qual tem vindo a brotar imensa cultura, por norma sempre empurrada para o centro das grandes cidades (em especial, Lisboa) para que possa sobreviver no circuito.
Cinema, artes visuais e plásticas, associativismo, performances, instalações, exposições, feira artesanal e, claro, música não faltaram ao convite endereçado pela Clarabóia para dar origem a um certame de entrada gratuita que urge em repetir-se em infinitas edições. Tudo aconteceu na Quinta da Ribafria e o Rimas e Batidas marcou presença nos três últimos dias para reportar todos os espectáculos musicais que estavam escalados para o palco principal deste grande e bonito evento, onde pudemos testemunhar uma série de artistas alternativos (uns com mais anos disto que outros) que não desperdiçaram a oportunidade de entregar ao público uma série de actuações incríveis, onde ninguém destoou pela negativa — coisa que acontece com frequência até nos grandes festivais recheados de headliners. Está provado que é nas margens que está o ganho.
Ya Sin teve a honra de inaugurar o segmento da música ao vivo no festival, mas isso significou ter diante si uma plateia muito vazia — provavelmente foi até esse o motivo que levou ao adiamento do espectáculo por cerca de 15 minutos. Após a sua voz se fazer escutar no microfone, a massa adepta foi-se condensando à beira do palco. Acompanhado por quarto músicos, que se desdobraram entre baixo, bateria, teclas e guitarra numa banda apelidada de Luv Core, celebrou junto do público uma linguagem que considera ser R&B de fusão, algo que se traduz numa música sedosa onde elementos de canto e rap se manifestam sobre uma cama instrumental que vai do reggae à neo-soul e ao cabozouk — uma verdadeira manta de retalhos de diferentes influências, conforme se faz notar também pela camisa feita de vários remendos que enverga. As suas músicas falam-nos de derrubar muros, da correria de Lisboa e até mesmo de amor, sendo interpretadas em diferentes línguas — escutámos inglês, crioulo e, claro, português. Apesar do som não ter estado nas melhores condições — a voz muitas vezes vinha acompanhada de um certo ruído —, Ya Sin deu uma performance competente e nem pareceu assim tão novato nestas andanças quanto realmente é. Há margem para progressão, claro, mas nota-se desde logo um certo potencial de internacionalização deste seu som que parece um verdadeiro pote de mel para a audição. Fomos ao seu concerto às “escuras” e de lá saímos com a clara intenção de mergulhar mais a fundo em Underneath D’Garmentz, o álbum de estreia lançado este ano.
Com valências de DJ e produtor, Épico foi quem arrancou com o espectáculo de nastyfactor atrás dos decks através de um breve set regado a malhas internacionais. Uns minutos depois, o som pára e ouve-se um “como é que é Sintra?!” Era o sinal dado pelo rapper de Mem Martins antes de se mostrar em cima do palco para dar um espectáculo mesmo ao lado de casa. Não são precisos muitos minutos de performance para percebermos que o autor de A Beleza Das Coisas Feias é um dos mais underrated a actuar neste momento no hip hop nacional, dono de uma caneta cada vez mais vertiginosa, talvez por ter passado a delegar as produções das suas músicas (onde também demonstrava um talento bem acima da média, diga-se) a outros colegas. “Padrada”, “Amanhã” e “Pra Lá e Pra Cá” foram algumas das faixas interpretadas pelo ex-GROGNation, que pelo meio ainda convocou o parceiro de longa data Harold para dividirem o microfone em “Bora” e “Voodoo”. Foi com a enérgica “Big Boy” que se despediu de um público sedento por mais temas, que prontamente se fez escutar com vários “só mais uma” em coro. Perante a insistência, nastyfactor ainda ponderou recorrer ao Spotify depois de ter confessado não ter mais beats consigo, mas a tentativa acabaria por ser em vão.
Teve o seu lado poético ver Landim ao vivo no dia em que se assinalaram os 28 anos desde a morte de 2Pac, lenda que divagava entre o lado consciente e gangster do rap como poucos e que serviu de inspiração para muitos dos artistas que despontaram a partir do Casal de São José, bairro representado pelo autor de Kamikaze, um dos discos clássicos do hip hop cantado em crioulo que celebrou 10 anos de vida em 2023. Veterano da cada vez mais efervescente cena musical de Mem Martins, entrou em acção acompanhado pelo DJ e produtor Progvid, com quem dividiu o álbum Programa em 2022, para uma recepção bem calorosa, sinal de que, afinal, há mais a unir-nos do que a separar-nos por entre as ruas. Irrepreensível na forma como conduziu o espectáculo, doseou o alinhamento com faixas mais recentes e alguns dos seus mais antigos hinos pessoais, convocando ainda para o palco um par de figuras históricas da zona, Singa e Tchiko Sampa, bem como Ghoya, um dos expoentes máximos do rap crioulo. Incendiou por completo a plateia quando trouxe “Karma”, o banger do subsolo que fez o seu nome ecoar em bairros de norte a sul há mais de uma década, para o sistema de som do Clarão, coroando uma actuação na qual já tinha passado em revista outros temas icónicos como “Na Mó di Dios”, “10 Anu”, “Real Dimás” ou “Rotina Di Lokos”.
A finesse da batida de Lisboa estende-se até aos limites da periferia e os RS Produções são um dos colectivos que mais afastado se encontra do centro da capital mas que, mesmo assim, tem tido uma importante palavra a dizer dentro dessa estética, ao ponto de integrar o catálogo do selo mais emblemático do meio, a Príncipe Discos. Com Nuno Beats, DJ Narciso, DJ Nulo e DJ Lima nos comandos atrás dos decks, o grupo foi colocando músicas e animando as hostes ao microfone à vez, mostrando uma enorme versatilidade na hora de fazer a festa. Ao longo de duas horas, mantiveram sempre a moral lá em cima graças aos frenéticos ritmos que iam soltando, cobrindo um vasto terreno dentro da electrónica global que ia do kuduro ao funk brasileiro, entre temas 100% originais e outros que funcionavam mais em jeito de remistura. Independentemente do formato da música, deixaram claro o quão artesanal era o material com que nos estavam a presentear: “Isso aí é tudo beats feitos por nós. Tudo no quarto.” Foi sempre a levantar poeira até às 2 horas da manhã seguinte.
A sofrência disfarça-se de rock quando nëss é o protagonista. Criado nas Mercês, no conselho de Sintra, iniciou o seu percurso enquanto artista a solo em 2020 no seio da criativa Troublemaker Records. Com vários singles editados desde esse momento, está agora em vias de lançar o seu primeiro disco, que nos revelou a meio do concerto no Clarão ter edição prevista para 2025. Acompanhado por Francisco Couto no baixo e Ricardo Mendes na bateria, o artista colocou os dedos em varias feridas, desde as suas lutas pessoais até aos temas que tocam muitos de nós, comuns mortais. Sempre em inglês, os versos de nëss não são de fácil digestão, mas o embalo das suas canções provocam-nos uma letargia viciante, como uma droga que sabemos que não nos faz bem mas que teimamos em não largar. Infelizmente, não nos matou a sede de “don’t ask, it’s rude”, mas entregou um espectáculo que causou arrepios com temas como “solanin” — que considera ser a sua faixa mais underrated e se inspira numa manga que se foca num personagem que, à sua imagem, vive esgotado entre trabalhos enquanto tenta criar arte nos intervalos — ou uma dedicatória ao seu malogrado amigo André Miguel, também conhecido por Lisboeta Italiano.
É engraçado o à-vontade enorme com que Soluna já encara a performance em palco, dado que a sua carreira ainda não é assim tão extensa quanto isso. Voz segura, sorriso constante e movimentos/danças que complementam o lado visual do espectáculo trazem-nos à cabeça a ideia de estarmos perante um protótipo de diva pop, alguém que seguramente tem a estaleca para vir a ser uma Beyoncé de Portugal. E a sua passagem pelo Clarão foi uma espécie de “dois em um”, já que o concerto envolveu a participação de Yeri e Yeni Varela, irmãs gémeas que neste momento estão a apostar num projecto a duas vozes, Yeri & Yeni, que já se vai manifestando em palcos e até mesmo em discos (Branko recebeu-as recentemente no seu mais recente Soma). “Contigo”, “Flaca” e “Confortable” foram algumas das faixas que escolheu trazer consigo na bagagem para um alinhamento que teve um momento bem especial com Soluna à guitarra enquanto cantou uma música em kimbundo que aprendeu em pequena com a mãe.
Eles não são MÁQUINA., são um maquinão. O power trio formado por Tomás Brito (baixo), Halison Peres (bateria e voz) e João Cavalheiro (guitarra) não toca os seus instrumentos, prostitui-os, obrigando-os a afastarem-se do espectro rock ao qual tanto os associamos e aproximando-os de um certo tipo de techno mais cavernoso. Podiam muito bem ser os autores da banda-sonora de uma próxima longa metragem de Quentin Tarantino, caso o afamado realizador decidisse criar uma película em ácidos centrada na vida nocturna de Berlim. O título do seu primeiro disco, DIRTY TRACKS FOR CLUBBING, é o rótulo perfeito para atribuir à música que fazem, um surf rock do mais vertiginoso que existe e apenas para os que têm coragem de se fazerem às gigantes ondas da Nazaré. Deram uma hora de concerto de pulsação acelerada que arrancou pequenos moshes, crowd surf e mil e uma outras reacções do público. Provavelmente a actuação que mais marcou esta edição de estreia do Clarão.
Depois to takeover dos RS Produções na noite anterior, o segundo dia do Clarão voltou a terminar com um grupo de DJs e produtores a animar o final da festa. Desta vez, dançou-se ao som do Coletivo Lenha, que se fez representar por DJ 420@ôa, Vampiro e DJ Mafia, e da sonoridade mais local que se tinha escutado na madrugada passada passámos ao amplo domínio da IDM, uma electrónica frenética que tem resistido ao teste do tempo e se foi alastrando dos Reino Unido até ao resto do globo sobretudo graças ao mundo digital — dos videojogos à Internet. O trio maravilha deste conjunto sediado em Lisboa foi incansável no disparo de breakbeats de conotação mais raver, indo do UK garage ao jungle ou à electrónica mais acidificada. Foram duas horas de dança intensa até ficarmos com os ténis castanhos da terra que fazia de pista, muitas vezes ao som de malhas retrabalhadas para contextos de club mais vanguardistas, como aconteceu com as remisturas dos clássicos “Lady – Hear Me Tonight” (de Modjo), “1 Thing” (de Amerie) ou “Pump It” (dos Black Eyed Peas).
O arranque do último dia de programação do Clarão voltou a ser palco para mais uma (e grandíssima) surpresa. Tal como Ya Sin, o trabalho do Soul Quintet também não era um assunto totalmente dominado por estas bandas, mas a tracção que tem vindo a somar em alguns palcos e programas televisivos já andava a despertar especial interesse. O guitarrista luso-angolano Miguel Pereira lidera um conjunto de músicos onde cabem Jery Bidan (guitarra ritmo), Lucas Mekelburg (bateria), Joseph Miller (baixo) e Mauro Pedro (congas), todos eles extremamente virtuosos, remetendo-nos rapidamente para a ideia de um quinteto de jazz de verdadeiros veteranos que dialogam uns com os outros através dos seus instrumentos com a maior das facilidades. Mas essa ideia de jazz fica patente apenas do ponto-de-vista conceptual, já que a música desta banda se centra em Angola, mais especificamente no semba, como se sente facilmente no disco de estreia (Liberdade de Expressão) e sucessivos singles que têm saído da criatividade destes músicos. Da harmonia dos 5 elementos aos momentos em que cada um dos artistas teve a oportunidade de rubricar solos de elevado nível de tecnicidade, foi aqui que encontrámos um dos concertos musicalmente mais ricos de todo o festival. E o quadro só ficou ainda mais bonito quando, no encore para o derradeiro tema, a filha de Miguel Pereira subiu ao palco e ambos se emocionaram num ternurento abraço.
R&B, electrónica e violino é uma combinação que, à partida, pode nem cativar muito à sua descoberta. É caso para dizer que a sua execução, para que realmente funcione em estúdio e em palco, está apenas ao alcance dos mais criativos. Um dos raros exemplos que temos em mente dentro deste universo de fusão é o de Sudan Archives, mas felizmente, desde há um ano para cá, que nos podemos orgulhar de ter um nome português para lançar neste debate. SUZANA, que começou por despontar na banda ao vivo de Tristany, estreou-se a solo com os singles “Dorme Bem” e “Não Dá”, temas que, apesar das parecenças citadas acima, a descolam por completo da norte-americana que referimos — Sudan Archives vive mais do beat, enquanto que SUZANA transporta claramente o feeling da canção portuguesa e da diáspora nas suas criações. Ainda a construir repertório e sem qualquer disco editado, a sua prestação pareceu uma espécie de ensaio, onde pôde testar temas com voz e outros completamente instrumentais, uns de pendor mais afro e outros em que se nota uma influência clara da música clássica. Acima de tudo, destacamos-lhe a execução irrepreensível e um enorme potencial para vir a alcançar patamares bem superiores, mal comece a ter uma ideia mais clara de como pode colar todas as suas influências em total harmonia num conceito solidificado. Uma coisa é certa: “Dorme Bem” é uma das canções mais doces que vimos ser editadas por cá nos últimos tempos e aquela que quase levou os presentes às lágrimas no final do seu espectáculo, que contou com o apoio de uma banda formada por Edvânia (violino), Ândria (violino), Camboja Selecta (DJ), Ariyouok (loopstation) e Luana (voz).
Era, provavelmente, o momento mais aguardado de toda esta primeira edição do festival Clarão. Afinal de contas, não é todos os dias que nos podemos gabar de estar a receber uma vencedora do Festival da Canção em Sintra. E talvez tenha sido essa noção de raridade face ao que estávamos prestes a assistir que fez com que o público desse tudo o que tinha para deixar iolanda com boas impressões desta mística terra. Foi a própria artista quem se disse completamente impressionada pelo carinho que recebeu ao longo de todo o concerto, onde se fez acompanhar por YANAGUI (teclas), Gustavo Liberdade (baixo) e Luar (guitarra). Uma das mais promissoras cantautoras portuguesas da nova geração, passou em revista o catálogo que tem construído ao longo dos últimos dois anos, dando-nos a oportunidade de escutar novamente “Contigo” (que divide com Soluna na versão de estúdio) e alguns dos seus êxitos como “Cura”, “Lugar Certo”, “Lugar Certo”, “CALMA” e, claro, o “Grito” que lhe valeu a representação de Portugal no concurso Eurovisão’24. Do seu vozeirão, faltam-nos palavras para qualificar o quão imaculada é a sua prestação ao vivo, levando as cordas vocais ao limite em certos momentos cirúrgicos para nos apanhar sempre de surpresa. À mestria com as palavras e o canto junta-se o tom humorístico com que aborda a plateia entre temas — e, diga-se, achámos-lhe um piadão do caraças —, ingrediente que contrabalança na perfeição com o lado mais triste das lindas músicas que tem rubricado.