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Fotografia: John Tlumacki / The Boston Globe / Getty Images
Publicado a: 12/11/2024

No seu oitavo álbum de estúdio, Tyler, The Creator atinge a maturidade artística.

CHROMAKOPIA: uma ode à vida

Fotografia: John Tlumacki / The Boston Globe / Getty Images
Publicado a: 12/11/2024

Tyler, The Creator é um artista que me tem acompanhado desde a minha adolescência. Foi com 13 anos que um dos meus melhores amigos me mostrou “Who Dat Boy”, do álbum Flower Boy, que é, coincidentemente, o meu projeto preferido do artista e o primeiro CD que comprei com o meu próprio dinheiro. Foi essa música (e a insistência desse meu amigo para que ouvisse a discografia do artista cronologicamente) que me apresentou a um mundo novo, ganhando através dela sensibilidade para outros géneros e transformando-me no ouvinte de música que sou hoje.

O próprio percurso de Tyler, The Creator, tanto a nível musical quanto temático, reflete o meu como indivíduo: o artista parte de um lugar de frustração, com uma mentalidade niilista em Bastard e Goblin, segue depois para um processo de descoberta identitária em Wolf e Cherry Bomb, demonstrando mais abertura em relação a essa identidade, por fim, a partir de Flower Boy. CHROMAKOPIA representa, nessa lógica, uma morte e uma ressuscitação de Tyler, The Creator como artista e como pessoa. Não é por acaso que em “SORRY NOT SORRY”, a última música de CALL ME IF YOU GET LOST: The Estate Sale, vemos muitos paralelos com “Sam Is Dead”, música na qual Tyler, igualmente, mata os seus alter-egos, dando assim início a uma nova era. É por isso válido analisar CHROMAKOPIA como um álbum que surge de uma necessidade de distanciamento que o artista sente em relação ao seu trabalho anterior, que poderá simplesmente advir da passagem do tempo. É importante mencionar que este é o primeiro trabalho que ouvimos do californiano em que ele se encontra estabelecido nos seus trintas, e nos seus temas vemos sinais, como bem descrito por Alexis Petridis para o Guardian, de uma “early midlife crisis”. 

Não é nenhuma novidade para os fãs de Tyler, The Creator a sua tendência para trabalhar certos motifs ou ideias a nível musical à medida que vai lançando álbuns, nem o caso extremo de Cherry Bomb, um projeto que pode ser descrito como “casulo” em que o artista trabalha ideias novas. CHROMAKOPIA é, tal como Cherry Bomb, um casulo, mas no qual o artista olha para todo o seu percurso de uma forma mais sóbria: uma “limpeza de primavera” com o objetivo de encontrar um novo caminho, uma nova identidade. Talvez a morte dos seus alter-egos, se em “Sam is Dead” foi mais literal, em “SORRY NOT SORRY” Tyler usa-a como um ponto de partida para os pensar e perceber a sua utilidade para a sua vida futura, pessoal e artística, e essa reflexão está em evidência no disco que agora apresenta. Mais do que nunca, é necessário analisar a carreira do artista para se entender este novo LP.

É no início que se começa, e “St. Chroma” desafia “Bastard”, música homónima do seu primeiro álbum, como o melhor opener dos seus 8 projetos. É com esta faixa que começamos a ganhar contexto sobre a temática e a relevância de CHROMAKOPIA. Foi pela primeira parte desta música que o rollout do álbum começou, e é pouco depois do primeiro minuto que temos uma das barras mais importantes deste projeto: “Give a f*** about tradition, stop impressing the dead”. Este é o grande mote do LP, e reflete a escolha de quebrar o calendário muito bem definido de lançamentos do artista, que tipicamente apresenta um projeto novo a cada dois anos, na primavera, desta vez lançando CHROMAKOPIA no outono, e apenas 1 ano depois de The Estate Sale ou, se o quisermos excluir por ser, no fundo, uma extensão do álbum anterior, 3 anos depois de CALL ME IF YOU GET LOST. Este mote indica também que CHROMAKOPIA não é só mais um álbum de Tyler, The Creator: nele está claramente presente uma piscadela de olho para essa nova era de que falo. 

Contribui para esta ideia de quebra com a “tradição” uma influência que ainda não tínhamos visto ser explorada a fundo no trabalho do artista — o gospel. Esta não é propriamente avassaladora, sendo combinada com sintetizadores abrasivos que relembram Cherry Bomb e uma melodia no piano que podia estar em Wolf, mas é um detalhe que não só eleva a música, como é revelador. É bem sabido que Tyler, The Creator é um assumido fã de Kanye West (pelo menos antes da sua faceta mais problemática ter vindo ao de cima), que tem roubado muito ao gospel também. Um dos álbuns de Kanye em que essa influência está muito presente é Donda, que é um álbum que tem como grande tema a relação do artista com a mãe, tal como CHROMAKOPIA. São ainda as palavras da mãe de Tyler, The Creator, Bonita Smith, que abrem o álbum — outro presságio para a sua temática e desenvolvimento. Nesse pormenor há, da mesma forma, um claro paralelo entre “Bastard” e “St. Chroma”: um dos mais memoráveis versos dessa música, que também marca o início da carreira do artista, é “My goal in life is a Grammy, hopefully mom’ll attend the / Ceremony (…)”. Tyler, The Creator deixa explícito assim o binómio que vai definir o álbum: uma certeza no seu talento, percurso e origens, reforçada pela sua mãe, em contraste com a vontade de se mudar, numa nova fase da sua vida em que algumas questões sobre a sua conduta surgem em si ou se tornam mais relevantes agora.

Esta luta está personificada no personagem homónimo desta música de abertura. É aqui e na segunda faixa, “Rah Tah Tah”, em que nos é apresentado St. Chroma, que parte de um lugar de confiança e ego trip, uma estratégia narrativa que já vimos noutros álbuns de Tyler, The Creator (a relembrar “CORSO” em CALL ME IF YOU GET LOST ou “BUFFALO” em Cherry Bomb). A faixa é igualmente influenciada por trabalho mais antigo de Tyler, The Creator, seja por músicas como “Radicals”, do seu segundo álbum de estúdio, Goblin, em que a melodia principal no sintetizador é bastante parecida a esta, ou “JUGGERNAUT” do seu álbum anterior, que evoca uma emoção parecida através de métodos semelhantes. Este é apenas outro exemplo que suporta a ideia de construção, alicerçada na sua carreira, que Tyler, The Creator apresenta neste novo álbum. Não é que isto não tenha acontecido noutros álbuns, seja no caso óbvio de Cherry Bomb, ou no resto dos seus projetos: há várias ideias na música do artista desde o início do seu percurso que não foram descartadas com o tempo, mas reforçadas e limadas pelo artista ao longo deste. A diferença aqui, como tenho vindo a indicar, é a reflexão, que não é apenas musical, mas temática, relacionando-se com a forma como Tyler olha para a sua vida agora que já ultrapassou o marco das três décadas, o que é evidenciado em músicas como “Thought I Was Dead”, em que diz: “(…) T changed like the ‘fit got dirty / I was young man, then a n**** hit thirty”.

É em “Noid”, o único single do álbum, que temos a primeira evidência desta camada introspetiva, e onde se começam a revelar os buracos na armadura de St. Chroma. Esta é também, talvez, a música que será mais estranha aos fãs do artista, na qual Tyler, The Creator se mune de samples vocais da música “Nizakupanga Ngozi”, dos Ngozi Family, banda da Zâmbia, de guitarras com a distorção no máximo, e de uma bateria sincopada que destaca o final de cada barra (embora “CHERRY BOMB”, do álbum com o mesmo nome, até tenha elementos semelhantes). Porém, nas bridges surge o teclado fiel de Tyler, The Creator, que nos relembra que estamos a ouvi-lo. Tematicamente, vemos o artista/personagem a lidar com os fantasmas da fama, que o colocam num estado de paranóia, evidenciado no videoclipe que nos vai dando sinais de que a ação desta está completamente dentro da cabeça de St. Chroma. Depois de “NOID”, o músico passa, como que em revista, por vários temas pelos quais a sua mente se divide neste ponto da sua vida.



Temos primeiro “Darling, I” e “Hey Jane”, que é uma história de causa-consequência. Somos apresentados à faceta romântica e adversa ao compromisso do artista/personagem (“So how can I get everything from one person? / I’m at the altar, but I’m still searchin’”), o que leva a uma gravidez indesejada em “Hey Jane”, em que “Jane” (o título é uma referência a uma clínica de abortos em Nova Iorque) assegura ao personagem que cuidará do filho sozinha, o que também será importante mais à frente no álbum. A nível musical, também nos relembra outro jogo de contrastes presente no álbum anterior do artista, entre “WUSYANAME”, onde somos apresentados ao interesse amoroso principal da história do projeto, e “WILSHIRE”, a resolução do conflito. Nestas duas faixas, a presença da mãe de Tyler, The Creator continua a servir o seu papel, através de conselhos que ela lhe dá, e que são contrariados pelo tema da respetiva canção. 

Segue-se “I Killed You”, que reflete sobre a experiência do afro-americano, e como é que o artista se pode manter fiel às suas origens numa sociedade que as vê com preconceito. Aqui voltamos a ter a influência do património musical africano de uma forma mais direta, nunca tendo sido essa tão explícita num álbum de Tyler, The Creator, o que contribui perfeitamente para aquilo a que o artista se propõe aqui: uma exploração do seu passado, do seu presente, e do seu futuro, nos quais as suas origens têm um papel importante. Por fim, nesta sequência, temos “Judge Judy”, uma história sobre outro interesse amoroso do personagem, que se suicida, servindo como um memento mori, e lembrando-o da importância de nos mantermos fiéis a nós próprios (“I wasn’t living right until they told me what was left”). A produção na quarta faixa desta sequência também cumpre o seu papel, fazendo lembrar esteticamente músicas como “Boredom”, de Flower Boy, o que parece contradizer o tema pesado da música. Tyler, The Creator pretende assim representar a ignorância de St. Chroma em relação ao que se passava na vida de “Judy” (de novo, o título é uma referência, neste caso à famosa série televisiva americana com o mesmo nome).

A segunda metade do álbum é o último ato deste, no qual St. Chroma e Tyler, The Creator aparentam estar mais “resolvidos” no que toca ao grande conflito temático, ou pelo menos já a par do caminho que terão de fazer para o resolver. É também a partir daqui que vemos a grande maioria das features do álbum, começando logo por “Sticky”, com versos curtos de GloRilla, Sexyy Red e Lil Wayne, por esta ordem. Apesar de aqui o ego trip ser central, e da faixa ser como que um manifesto a favor da sua individualidade e a celebração do seu sucesso, é paralela a “Take Your Mask Off”, que é uma crítica à hipocrisia de várias personagens-tipo, e no último verso, uma autocrítica, na terceira pessoa. Este é o primeiro de três duos de canções que representam diferentes dicotomias.

Se em “Sticky” e “Take Your Mask Off” Tyler, The Creator contrasta a confiança que demonstra naquilo que faz e que é, com o síndrome de impostor com que luta dentro de si, a palavra-chave nas duas faixas seguintes é o tempo. “Tomorrow” é uma faixa essencialmente sobre o peso que o tempo tem em si e que ele vê ter na sua mãe, e mais que isso, uma reflexão sobre o lugar em que Tyler, The Creator se encontra, e das várias versões dele que vimos ao longo dos anos. Nesta música, o artista reconhece que não há forma de voltar a ser quem era, e mostra uma aversão ao compasso sem misericórdia desse tempo que o transforma. Por outro lado, em “Thought I Was Dead” vemos o “old Tyler”, mostrando-se seguro do seu caminho e tomando-o como seu, sem remorsos, voltando a olhar para a inevitabilidade do tempo, mas com entusiasmo em relação às possibilidades que o esperam no futuro.

Finalmente, a terceira dicotomia foca-se na família, embora de forma menos evidente na segunda faixa. “Like Him” foca-se na infância de Tyler, The Creator e no seu pai ausente, onde o artista se debruça sobre os comentários que Bonita Smith faz sobre as suas parecenças com o seu pai, e evoca duas sensações algo contraditórias, mas não menos lógicas por isso: o desejo de se distanciar desta figura que é um fantasma para ele (“Mama, I’m chasin’ a ghost / I don’t know who he is”), e a falta que o pai lhe fez no seu crescimento e, de alguma forma, aind faz, apesar de reconhecer o esforço da mãe, que tentou cumprir os dois papéis no seu crescimento, e a amar por isso. É aqui que “Hey Jane” volta a dar de si, através de uma mensagem da sua mãe, em que ela admite que o pai do artista queria fazer parte da vida dele, mas que ela não o deixou. “Balloon” é aqui, mais uma vez, um hino que Tyler, The Creator dedica à sua individualidade. Neste contexto, acaba por nos dizer que, apesar dos comentários da mãe e do paralelismo entre a história dela e a que nos é apresentada em “Hey Jane”, Tyler, The Creator é Tyler, The Creator, e que foi ele próprio quem o fez chegar onde chegou e não a ausência do pai ou a presença da mãe. 

Neste contexto, a forma como o álbum termina é curiosa. “I Hope You Find Your Way Home” dá-nos, ao mesmo tempo, um sentimento de segurança sobre a possibilidade de todos nós encontrarmos um “lar” ou, por outras palavras, descobrirmos o nosso rumo na vida, mas é, ainda assim, uma música em que o artista emana incerteza sobre se cumpriu aquilo que apregoa. Acaba por ser uma forma perfeitamente realista de fechar o projeto: tudo o que ouvimos no álbum são questões complexas, questões que Tyler, The Creator continua a tentar responder na sua vida, tendo vindo a partilhar muitas destas inquietações nos seus últimos discos, não havendo, para nenhuma delas, uma resposta óbvia. Esta última faixa deixa, assim, um final em aberto, que é também uma forma de dizer que isto é apenas o início deste período criativo em que o artista se encontra, e do processo de se tentar compreender a si próprio.

O termo CHROMAKOPIA junta dois radicais gregos para formar uma nova palavra. “Chroma”, que está relacionado com cor, e “kopia”, que em grego antigo era um verbo que significava trabalhar arduamente. Não sei se neste álbum de Tyler, The Creator por si só se possa ver uma sinestesia, mas olhando para toda a sua carreira, o trabalho de cor é aparente: não só já estamos habituados a universos visuais construídos com mestria à volta de cada um dos seus álbuns, mas a uma palete de cores que muda drasticamente de álbum para álbum, e que é representativa das mensagens de cada um deles. Se no início da sua carreira as escolhas visuais de Tyler, The Creator nos levavam a lugares mais sombrios, e se a partir de Flower Boy a sua vida ganhou mais cor, em CHROMAKOPIA há um regresso a um verde-escuro que não é propriamente vibrante. O efeito sépia que domina os snippets do rollout deste álbum é outro contributo para a construção desse universo temático.

É também por isso que é natural a receção não tão positiva por parte dos seus fãs. Tyler, The Creator tem vindo a mostrar estar um passo à frente do seu próprio público, basta lembrar os tweets que o artista escreveu depois do lançamento de Cherry Bomb, em que disse que os seus fãs só iriam perceber a visão dele bastante mais tarde, ou quando afirmou que “NEW MAGIC WAND” se iria tornar uma das suas maiores músicas, apesar de não ter sido um hit instantâneo, acertando nas suas previsões das duas vezes (já em Cherry Bomb tínhamos uma faixa que é praticamente uma versão experimental de “NEW MAGIC WAND” e que é até hoje das músicas menos apreciadas da carreira inteira dele, “PILOT”). Este álbum é, antes de tudo, uma guinada para uma direção inesperada: não era expectável que o artista nos apresentasse outro IGOR ou outro Flower Boy, depois de um rollout que tão claramente indicava uma mudança. Não é a primeira vez que Tyler, The Creator nos surpreende desta forma, e provavelmente não será a última. Pode-se discutir se o álbum é bom ou mau, ou se correspondeu ou não ao nível de qualidade a que estamos habituados, mas não é aí que vejo o interesse da discussão sobre este projeto. Em vez disso, este álbum deixa-me, ultimamente, com uma pergunta: o que é que vem a seguir? Como é que estas ideias virão a evoluir num próximo projeto?

CHROMAKOPIA, como já mencionei anteriormente, não é Cherry Bomb, mas é um parente do mesmo, por mais distante que seja. Em vez de pura experimentação musical, em CHROMAKOPIA há um músico, um artista, e acima de tudo, uma pessoa a expor-se por completo à nossa frente, o que é ainda mais notório quando olhamos para a aversão de Tyler em relação a esta abertura no passado. Tyler, The Creator demonstra, agora verdadeiramente, maturidade artística e pessoal. Não estamos a falar de um álbum perfeito, antes pelo contrário, é um álbum efetivamente confuso e que dispara para muitos lados. Mas é aí que está o seu valor: CHROMAKOPIA fala-nos da natureza da vida, confusa e inconsistente. Tyler, The Creator fez uma ode a si próprio e, por extensão, a todos nós. É por isso que vale a pena ouvi-la.


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