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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 09/12/2016

Casa das Máquinas V: Roland TR-808 – a história de uma máquina com vida própria

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 09/12/2016

O lançamento do documentário 808, realizado por Alexander Dunn, com a produção da You Know Films em associação com a Atlantic Films, hoje mesmo, dia 9 de Dezembro, motivou o regresso a esta rubrica que tem como principal intuito viajar pelo passado, presente e futuro dos aparelhos que moldaram e vão moldando a música electrónica. Por aqui já passaram máquinas como a Linn LM-1, LinnDrum, Oberheim DMX (que deu nome ao conhecido rapper nova-iorquino) e Roland CR-78. É chegada a altura de nos debruçarmos sobre a Roland TR-808, uma das principais ferramentas – se não a principal – da música sobre a qual este site versa. Esta é a história de uma máquina que chora, ri, contagia pistas de dança, serve de ombro amigo e ainda parte em auxílio dos músicos quando estes se encontram com elevados níveis de embriaguez.

 


https://www.youtube.com/watch?v=LMPzuRWoNgE


Tornada pública no início dos anos 80 pela marca japonesa Roland, a TR-808 não granjeou de imediato o sucesso pretendido, fracasso esse que levou a que sua produção fosse descontinuada três anos depois (foram fabricados apenas 12 mil exemplares). Como todas as máquinas de ritmos lançadas até à altura, a 808 tinha como principal função servir de acompanhamento rítmico de órgãos e outros instrumentos, quase como se fosse um metrónomo. Os sons debitados estavam longe de se aproximar de uma bateria real, algo que a Linn LM-1 conseguia oferecer, dado o facto de ter sampladas peças reais do instrumento de percussão. Porém, a discrepância no preço ($5000 para a LM-1; $1200 para a TR-808) ditou a preferência junto das carteiras menos abastadas, o que justifica o papel crucial que desempenhou em estilos como o hip hop, cujos principais protagonistas eram oriundos de zonas desfavorecidas. Mas não terá sido apenas essa a grande arma do sucesso póstumo (digamos assim) desta imponente máquina.

Em entrevista para a The Wire, Monolake, um duo alemão de techno, classifica a TR-808 como uma obra de arte de engenharia electrónica. “É inacreditável. Basta olhar para o que se passa lá dentro, analisar o diagrama de circuitos e ver como a Roland fabricou das melhores tecnologias”, sublinham, acrescentando “olhas para o diagrama de circuitos como se estivesses a ver uma verdadeira orquestra e pensas como é que foi possível chegarem a tal coisa. É uma obra-prima”.

 


casa-das-maquinas


Diagramas de bloco à parte, é na sua sonoridade que produtores como Carl Craig se apoiam. “A 808 é a mais intemporal de todas as máquinas”, disse em entrevista ao site Dummy, “é um aparelho que podemos sempre manipular, a nível de filtros, delays, seja o que for. Soa a 808 mas podes ir sempre mais além. A 909, por exemplo, vai sempre soar a 909… Bambaataa utilizou a 808 no início dos anos 90, a malta do house nos 80 e nos 90. Não existe outra máquina com tamanho legado”. E continua: “uma Linndrum vai sempre aproximar-se de bandas como Love and Rockets, ou a músicas como o “Thriller” de Michael Jackson; o som da Linn 9000 e da Oberheim DMX podem ser encontrados ao longo das músicas de Prince; a Roland CR-78 vai sempre associar-se ao “In the Air Tonight” de Phil Collins. Por contrapartida, a 808 permite-te usar e fazer qualquer som. É uma máquina fantástica”.

A Roland tr-808 foi utilizada pela primeira vez pelo colectivo japonês Yellow Magic Orchestra, no ano de 1980, mas só viria a encontrar o pico da sua popularidade em 1982, com o lançamento de temas como “Sexual Healing” de Marvin Gaye, “Cold Blooded” de Rick James, e “Planet Rock” de Africa Bambaataa. Foi, aliás, através da última destas três canções que Egyptian Lover, produtor, DJ e um dos maiores embaixadores do objecto que hoje retratamos, se cruzou pela primeira vez com a sonoridade 808. “Ouvi-a pela primeira vez na Club Radio e prontamente me disseram o que era”, contou à Noisey, “no dia seguinte fui a uma loja de música. O empregado ajudou-me a programar a batida de «Planet Rock» e eu a partir daí comecei a trocar a sequência e a criar o meu próprio beat. Levei-a para a festa que se seguiu dos Uncle Jamm’s Army (colectivo do qual fazia parte) e consegui colocar 10 mil pessoas a dançar ao som de uma máquina de ritmos, quando ainda ninguém sabia o que era tal coisa”. Questionado sobre a capacidade que tal máquina tinha para contaminar multidões, Greg Broussard, seu nome de baptismo, arriscou o palpite: “penso que tenha a ver com a sua própria sonoridade. Não há nada como um bom som analógico a sair pelas colunas. Podes copiá-lo para CD ou qualquer outro tipo de formato digital. Podes samplá-lo. O som cru da 808 a sair pelos altifalantes será sempre o melhor”.

 


https://www.youtube.com/watch?v=9lDCYjb8RHk


De todas as peças que podemos encontrar nesta caixa de ritmos (da tarola seca que serviu milhares de vezes de marcação métrica para rappers e b-boys, às palmas inconfundíveis que podemos ainda hoje encontrar embebidas nos mais variados géneros de música, passando pela cowbell espacial usada e abusada pelo líder da Zulu Nation e pelos pratos de choques acelerados presentes em “Egypt, Egypt” de Egyptian Lover), há uma que muitos músicos e produtores destacam como sendo uma das mais emblemáticas: o bombo. Ainda hoje é possível ouvir esta peça de bateria em músicas como “Drunk in Love” de Beyoncé e referências ao seu pulsar, como em “Break the Ice” de Britney Spears (“you go my heart beating like an 808”). Isto para não falar do génio de Chicago que, em 2008, decidiu lançar um álbum todo ele construído a partir desta máquina (lá chegaremos).

 



Foquemo-nos no bombo. A publicação New Yorker, num artigo de seu nome “808 Heard Round the World”, refere que apesar das restantes peças desta máquina terem “atingido o seu prazo de validade de forma quase instantânea”, o bombo ganhou uma “vida própria”, de tal forma que viria a adoptar o nome da própria máquina. Quando, na introdução to tema “Deja Vu”, Beyoncé vai pedindo as peças de bateria uma a uma e pede um “808” ao invés de um simples “bass drum” está a referir-se especificamente àquela sonoridade capaz de fazer tremer as paredes de nossa casa. Graham Massey, o antigo membro do colectivo britânico 808 State, vai ao encontro desta ideia, numa conversa com a BBC Radio 4, “tinha um som de bombo devastador, que, no seu volume máximo, era capaz de abanar por completo um espaço”.

 



Num artigo para o The Guardian, o produtor de dubstep Tony Williams consegue ir ainda mais longe e sublinha a liberdade criativa que esta máquina possibilita. “Se conseguires sobrepor o bombo, a tarola e as palmas por cima umas das outras, consegues atingir um espectro de frequências tão rico que acaba por soar bem num clube nocturno, em casa e até nas colunas do teu computador portátil”. Imagine-se esta mistura explosiva. Mas Williams não se fica por aqui. “Eu não devia estar a dizer isto”, confessa ainda ao diário britânico, “mas esta máquina é de tal forma intuitiva que até é fácil programá-la ao vivo quando se está bêbado. E eu gosto de beber os meus copos… A família de sons é uma das melhores jamais inventada. Qualquer coisa que faças vai provavelmente meter as pessoas a dançar”. O remate a este assunto só poderia pertencer a Afrika Bambaataa: “the 808 had the groove that made your body move”.

A tr-808 está presente nos alicerces de um dos melhores (ao mesmo tempo, um dos menos mediáticos) álbuns de Kanye West, 808s & Heartbreak. E se rappers como Drake e Kid Cudi são o que são hoje em dia, podem dar graças à visão deste artista, que desbloqueou toda uma nova forma de abordagem ao hip hop. Antes de 2008, pouca gente para além de T-Pain e Lil Wayne se atrevia a cantar sentimentos “auto-tunados” sobre instrumentais hip hop. Kanye West fê-lo, sem medo, virando costas mais uma vez à consensualidade. E ainda recorreu a uma TR-808 para produzir os beats. Resultado: um álbum profundo, com sentimentos à flor da pele, derivados à morte de sua mãe e ao fato da sua mulher (na altura, Alexis Phifer) o ter deixado. Em 808s & Heartbreak, a clássica máquina da Roland não serve apenas de base às palavras de West, é também uma cúmplice no sofrimento. Chora, dança, ri e serve de ombro para o artista partilhar a sua mágoa. O bombo em “Love Lockdown” parece falar, a tarola em “Hearthless” parece querer atingir o ser “sem coração” que partiu de forma abrupta. Todo o álbum está envolto num compromisso entre homem e objecto. Quem disse que as máquinas não têm sentimentos?

 


 


Algumas músicas produzidas a partir de uma TR-808:

 


[SOS Band] Just Be Good to Me”

https://www.youtube.com/watch?v=RCcg7ctrC4w


[Cybotron] “Clear”

https://www.youtube.com/watch?v=fGqiBFqWCTU


[A Guy Called Gerald] “Voodoo Ray”

https://www.youtube.com/watch?v=emDEFtJIjy0


[Lil Wayne] “Let the Beat Build”


[HTRK] “Ha”


[Afrika Bambaataa] “Planet Rock”

https://www.youtube.com/watch?v=hh1AypBaIEk


[Marvin Gaye] “Sexual Healing”


[Adonis] “No Way Back”


[Beastie Boys] “Hold It Now, Hit It”


[Egyptian Love] “Egypt Egypt”


[Charlie] “Spacer Woman”

https://www.youtube.com/watch?v=eglu23iGsU0


[Freez] “I.O.U.”

https://www.youtube.com/watch?v=WZ-1DYwaxrE


Revejam todos os capítulos da Casa das Máquinas aqui.

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