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Fotografia: Manuel Lino
Publicado a: 11/11/2022

Novo disco, novas ideias, os mesmos problemas.

Batida: “Parece-me inevitável e impossível não trazer o colonialismo para a conversa”

Fotografia: Manuel Lino
Publicado a: 11/11/2022

As palavras são importantes e foi com elas que começámos esta entrevista a Pedro Coquenão, músico, produtor e artista de mil ofícios, que conhecemos sob o nome de Batida. O mote foi Neon Colonialismo, o novo álbum que acaba de editar, e cujo título nos desafiou para a questão de partida. Porque é que, passado quase meio século do 25 de Abril e do fim da guerra colonial, parece ser urgente continuar a falar de colonialismo? A partir daqui já tínhamos mordido o isco que o próprio admite ter lançado, seguindo-se uma reflexão que cruza a música e a história, a política e o espaço público, a memória e o futuro. Não se iludam, pois, com a aparente comicidade do néon do título e na capa, porque os sons, as palavras e as imagens deste trabalho são para levar muito a sério. 

Neon Colonialismo é um convite inquieto, emotivo e visceral ao encontro e à dança, um objeto estético com a marca de Pedro Coquenão, cuja identidade artística se tem construído como um lugar de trânsitos e raízes, preenchido por inúmeras viagens, por muita reflexão e experimentação e, sobretudo, por um aprofundado sentido de escuta e de compromisso ético e político. Um exercício de arqueologia sonora que tanto homenageia a tradição, como a convoca para uma contemporaneidade que não esquece as raízes, a história e a memória. E que, não as obliterando, as projeta no porvir. 

Passados oito anos do seu último disco a solo, e depois de dois álbuns colaborativos com Konono Nº1 e Ikonoklasta, Batida assume a direção desde desafiante e intuitivo objeto, fazendo-se acompanhar de cúmplices ilustres como Mayra Andrade, DJ Satélite, Nástio Mosquito, Octa Push, DJ Dolores, Lia de Itamaracá, João Morgado, Pedro da Linha, Branko ou Botto Trindade. Além claro, do seu companheiro de sempre Ikonoklasta, e ainda de Bonga, cuja importância histórica e atualidade aqui lembrou. Bela companhia, portanto, para a viagem que se segue, onde tentámos que não ficasse nada por dizer, mantendo a promessa de deixar em aberto todos diálogos em que construiremos o futuro. 



Portugal está a aproximar-se dos 50 anos do 25 de Abril e do fim da guerra colonial. Pensando no teu novo disco, queria ir direto ao assunto: porque é que é tão necessário e urgente continuar a falar de colonialismo quase cinco décadas depois da vitória dos movimentos de libertação dos países africanos? 

A mim parece-me que das duas uma: ou o assunto prescreve a certa altura, e se prescrever é porque a lavagem cerebral e histórica foram muito bem feitas; ou se isso não acontecer, se a lavagem não continuar a ser extremamente eficaz, parece-me que é um assunto que continuará a estar muito na ordem do dia. Pode parecer muito tempo dada a nossa mortalidade, o nosso tempo de vida, mas se olharmos para a história do planeta, da humanidade ou de Portugal, é um assunto demasiado recente. E no caso de países como Angola, é quase fulcral e essencial. É a base da conversa. Tu partes do teu ano zero, mesmo em termos musicais há muitos discos que assinalam esse ano zero. Ainda no ano passado o Paulo Flores lançou um disco chamado Independência. Enquanto portugueses temos de ter isso em consideração, porque Angola faz parte da nossa história, mas enquanto angolano não consigo mesmo dissociar-me dessa perspetiva. 

Fizeste a pergunta e fez-me pensar que, de facto, não é muito tempo na história da humanidade, mas é muito para a história de uma pessoa, de uma família. É muito marcante, são muitas gerações, são avós, pais, filhos e netos metidos ao barulho. Essa conversa familiar ainda não está de todo resolvida. O trauma ainda está muito presente e não é só memória genética, é uma memória de vivência. Parece-me que é inevitável e impossível não trazer isso para a conversa. Como também é impossível não trazer o 25 de Abril e as suas promessas. Há promessas e ideias que pareceram utópicas e concretizaram-se, mas a promessa de independência ainda está por concretizar, a igualdade social também está por cumprir. Então parece que devemos mesmo falar nisso, porque quem nasceu com isso, como é o meu caso, às tantas é a tua derradeira hipótese de, enquanto ainda enquanto estás sóbrio, presente e fisicamente disponível, teres a oportunidade de fazer as coisas serem úteis, consequentes e poderes contribuir para um futuro melhor. O passado é aquele que se sabe, demorou muito a aceitar-se. Não é que já se aceite, mas já se vai falando, embora ainda haja muita relativização. Se pensarmos bem, antes do 25 de Abril houve toda uma narrativa que recuperou a exaltação do período a que se chamou de “Descobrimentos”…

Antes e depois, porque essa exaltação continua aí na sociedade, nos livros, nas escolas… 

Sim, há um exaltar, não é? O Padrão [dos Descobrimentos], pondo de lado o respeito pelos monumentos como objetos de estudo e de memória, não deixa de ser um ponto de exclamação nesse sentido. Ainda não é claro que seja um ponto de exclamação à intolerância com o que aquilo simboliza. Sempre que passo por lá, olho para aquilo e faz-me alguma espécie. Parece-me uma instalação artística permanente, que me faz interrogar coisas, mas que nunca me dá propriamente paz. É complicado ainda ter de lidar com símbolos e manifestações que são muito próximas desse tal passado. E o mundo parece também anunciar isso como sendo algo muito presente. Parece que, pelo menos nesta condição atlântica, em diálogo entre os dois lados do oceano, e entre hemisfério sul e o norte, ainda está muito presente essa condição toda das independências no casos dos países africanos e das ditaduras no caso de Portugal, do Brasil, de Itália. Há uma série de ciclos que se estão a repetir. Confesso que não era previsível para mim que se chegasse a este ponto de caricatura. Eu acho que era difícil que alguém fizesse ficção sobre isto chegasse a este ponto simpsoniano das coisas. Parece-me impossível, e até quase irresponsável, não continuar a falar disso. Era quase como se pudéssemos avançar num jantar de família depois de ter havido um espancamento entre familiares, dizendo apenas: “Bem, ok, tudo bem, isto foi desagradável, mas vamos lá comer que é dia de Natal e vamos ter de avançar”. Não consigo avançar ignorando tudo isso. Podes manter a calma, podes não ter rancor, podes tirar esses sentimentos mais grosseiros da frente, mas ficas ainda mais objetivo, mais focado, e pensas: “Tudo bem, bora lá ser adultos, bora lá ser maduros, e por isso mesmo bora lá ser intransigentes e ser exigentes”. 

O disco tem um título curioso: Neon Colonialismo. Porquê juntar estas duas palavras que imagino que nunca haviam sido juntas? 

A primeira resposta é essa: o facto de as duas palavras nunca terem estado juntas. Isso estimula-me, provoca qualquer coisa muito primária e isso para mim é bom. Eu gosto muito de estar calado, de ver dança, de ouvir música, de ouvir ritmos; ou então, quando se traz palavras, gosto que tenham algum tipo de efeito, algum tipo de consequência, é assim tipo um feitiço. É como quando vias os feitiços das bruxas em que se vai buscar não sei o quê de um morcego e se junta com não sei o quê de andorinha e tu pensas: “Epá, o que é que isto dará?” [risos]. É um bocado isso, esse tipo de folclore, de juntar duas palavras que de repente te fazem pensar. 

Certo, mas é um significante a que tu queres que as pessoas atribuam significado, ou tu querias à partida conferir e oferecer um sentido a esta nova expressão? 

Eu divirto-me muito quando sou parvo, mas o mundo ultimamente tem-nos tirado um bocado essa capacidade. Às vezes na minha cabeça ocorrem-me coisas muito fora, mas cada vez mais vou filtrando. Há 10, 15 ou 20 anos era mais adepto do nonsense e gosto muito, mas nesta altura parece que a minha cabeça não consegue ser tão relaxada. Quando junto as palavras há logo um filtro, se bem que não sei o que aparece primeiro, se a necessidade de provocar logo uma ideia sobre o que vou dizer, ou se é o contrário. Com o “Bazuka” aconteceu isso: primeiro ocorreu-me a ideia de brincar com o ritmo, e depois percebi que não ia conseguir celebrar aquele ritmo sem lhe conferir um contexto histórico. Então fui buscar palavras e imagens de épocas diferentes, que pudessem pôr aquela palavra “bazuca”, em vez de no contexto de merengue de “Açucar”, mesmo no contexto da guerra. Se calhar isso já lá estava, porque com o passar do tempo, apercebi-me que tinha uma relação com essa música semelhante à que tive com outras músicas no passado, como o “Blue Monday” dos New Order, e depois com o “19” do Paul Hardcastle. Então vi sempre ali o potencial de a música eletrónica ser tão aberta que te pode permitir isso. Se calhar aqui é a mesma coisa. Quando brinquei com as duas palavras não foi depois de um pensamento de horas e horas, é um pensamento de uma vida. 

Desde início que há uma intenção de voltar a querer falar destas questões, mas com uma falsa abordagem leve, quase tipo isco, entendes? Como peça artística, é uma peça é bonita. Em termos artísticos, o néon serve para tudo nos dias que correm, valida quase tudo. É um elemento que, por si só, não diz nada, mas é muito bonito e muito visual. Tem aquilo vivo, é tudo muito concreto, até a letra da primária… Lembro-me de na segunda classe, uma professora muito salazarenta me ter obrigado a cantar o hino. Tinha só sete anos, mas recusei-me a cantar e disse à minha mãe que não gostava do ambiente e daquela situação. A minha mãe foi à escola, perguntou se eu tinha correspondido ao exercício e sabia a letra, e a professora disse que sim. Então ela disse: “pronto, se ele sabe a letra, não tem que ser obrigado a cantar o hino”. A professora encaixou e eu fiquei super orgulhoso da minha mãe. Nunca mais cantei o hino na escola em Portugal. Então o nome da peça e do disco tem essa tentativa de dar um aparente ar estético, sexy e leve, e, no entanto, tem a intenção de brincar com a luz da cidade, brincar com o caráter errático da peça, sendo ao mesmo tempo pessoal, com essa letra que ninguém tem de saber de onde é que vem, mas que é uma letra da primária. Então é isso, o nome disco, ao contrário do padrão dos descobrimentos, em vez de ser bastante objetivo…

É sugestivo e interrogativo.

Pois. Não é que esteja a brincar, ou a tornar leve o assunto. É mais trazer um assunto que é suposto não se falar, não valorizando em demasia o lado estético e vazio da coisa. É como, sei lá, fazeres uma peça que diga “morte”. Uma coisa que aconteceu incrível no Porto , quando se transformou o outdoor “Porto.” em “Morto.”. Mudas uma letra e põe-te logo a pensar. Gosto muito disso.  

Ao contrário do Presidente da Câmara do Porto que não gostou nada. 

Problema o dele. Eu percebo a intenção daquilo e pode parecer radical, mas também é muito radical o que aconteceu na baixa do Porto, como também é radical e violento o que aconteceu a muitos dos nossos velhinhos. Então às vezes a arte tem essa capacidade de só com um gesto poder dizer muita coisa sem dizer muito, sem ter de ter toda uma retórica. Neon Colonialismo é para me evitar de ter que dar uma resposta tão grande, mas tendo que a dar dou porque gosto que fique claro qual o propósito daquela peça de luz e do disco. É para se tornar numa conversa, num diálogo com um ar fixe. Claro que sobre néon o assunto pode-se esgotar. Eu tudo o que tinha para falar sobre néon falei com o senhor com quem fiz a peça, o senhor António [risos]. Falámos de néon o tempo todo e depois um bocadinho sobre colonialismo e a guerra colonial, obviamente, porque todas as pessoas com mais do que x anos viveram ou tiveram contato com essa guerra. E esse trauma é muito recente. É uma guerra que durou muito tempo e que deixou muitas marcas em pessoas e que também não é muito falada. A minha amostragem é a de que 99,9% de pessoas estão desarrumadas da cabeça à conta ou da guerra em que estiveram, ou da guerra da qual foram vítimas, ou o da proximidade da guerra, tanto do lado português, como do lado africano. Então sim, são coisas muito recentes e com várias camadas. 

Ainda sobre o título, o álbum em Portugal chama-se Neon Colonialismo, mas a edição internacional tem como título Broken Neon. Porquê esta diferença? Não era importante também que lá fora, noutros países, se soubesse alguma coisa sobre colonialismo português? Não achas que o título original podia suscitar essa discussão ou também permitir um confronto com outros colonialismos e outros impérios? 

É um bocado um gozo. “Neon Colonialismo” era um título fixe porque funcionava bem na maior parte das línguas europeias. Toda a gente percebe, por mais que eu tente esconder. O nome está lá e isso deixa-me descansado. Eu queria que esse significado não deixasse de existir e dar-lhe um segundo título é estar a acrescentar informação para quem está fora e para nós também. Para mim há uma ironia assumida de estar a dizer que para fora “esta conversa não interessa”, mas como é óbvio, como tu disseste, essa conversa interessa, então isso funciona para os dois lados. É quase como estares a falar com um inglês e dizeres assim: “Epá, eu tenho este problema lá em Portugal, aconteceu isto, foi um bocado chato durante não sei quanto tempo, foi perpetuada esta violência, e acho que nós lá devemos falar sobre isto”. É uma forma meio indireta de pores os outros a pensarem que se calhar também têm o mesmo problema, mas sem estares a enfrentá-los de frente. 

Como é óbvio é um problema que se coloca na Europa toda. É engraçado que ainda hoje vi uma ativista ambiental, desta nova geração, a colar totalmente os problemas ambientais que acontecem no hemisfério sul à questão do colonialismo. É interessante ver que pessoas bem mais novas, da geração da Greta, quando estudam o problema, se aperceberem que esse problema não é uma coisa de universitário, de pessoa de esquerda, que agora se lembrou de buscar o colonialismo para a conversa. É tu olhares para o continente africano, estou a olhar para ele, tenho-o aqui ao lado num globo, e faz muita confusão. No caso de Angola, estou a olhar agora para lá, e vejo os buracos que se abrem, os recursos que são retirados, a poluição, as lavagens todas que se fazem nos barcos que andam para aqui, os países que são utilizados para esse tipo de lavagem, e como isso é consequência também do colonialismo, do desequilíbrio, do desenraizamento, da perda de identidade, da dependência que é o oposto daquilo pelo qual os países lutaram. É terrível, não é? É tudo uma lógica super capitalista: “Vou-te emprestar dinheiro e vais ficar para sempre dependente de mim”. Tudo isso é assustador, todas coisas estão muito ligadas. 

O nome em inglês, “Broken Neon”, é mais para provocar os dois lados e para dizer também que nós aqui não podemos diluir as responsabilidades. Às vezes ouve-se isso: “Isto é um problema que não é só de Portugal, é dos países todos”. Claro, é verdade. Mas já que nós somos o número 1 em montes de coisas, e gostamos tanto disso, nesta situação nós fomos os maiores traficantes de pessoas durante um certo tempo, fomos os mais eficazes, os mais bem-sucedidos. Então se calhar podemos ter um bocadinho mais de responsabilidade. Há uns anos sentia, e ainda sinto, que há muitas pessoas que lidam muito mal com a palavra “reparação”. Em português “reparar numa coisa” e “reparar essa coisa” são coisas diferentes. Quando se repara numa coisa, abre-se também uma oportunidade de a reparar. Eu gosto disso. Gosto de palavras que só por si possam oferecer esse tipo de feitiço, de magia, de motivação, de força. 



Pensando em alguns temas do álbum, como o “Sr. Mandão” ou o “Tem Dor (África de Itamaracá)”, este disco é um convite à dança, mas que assume um discurso muito direto sobre problemas estruturantes do nosso tempo. Porque é que consideras importante e como é que se consegue dançar no meio do caos e da dor? Qual a importância da dança, da felicidade e da alegria num tempo de pessimismo e de incerteza?  

É a sobrevivência, não é? E nessa sobrevivência eu acredito que há uma inevitabilidade de evolução. Ainda há pouco ouvi na televisão uma citação de Darwin a dizer que as pessoas se adaptam aos tempos. Mas o que é que é este adaptar? É aceitar que agora com a poluição temos que andar de máscara? É aceitar que há muita gente no planeta e como é que isso pode ser gerido? É aceitar que na cidade vou ter de ser uma pessoa vazia e desprovida das raízes que me tornam humano, nomeadamente dançando, sorrindo, comendo juntos? Adaptarmo-nos aos tempos modernos para “sobreviver” significa o quê? É aceitar a inevitabilidade da finança ou é adaptar a finança às necessidades humanas, animais e naturais do planeta? Eu gosto mais da segunda hipótese, mas ficas na dúvida sobre para onde é que as pessoas se inclinam. Para mim as letras e a dança são a forma de olhar para a música, olhar para o nosso encontro, e adaptar-me a isso. Ao encontrar-me com pessoas que fazem letras assim, associo-me a elas porque elas me deixam mais descansado de que, nessa roda de encontro, eu não tenho só pessoas que estão preocupadas em fazer um ritual de ayahuasca no Canadá, ou em Sagres. Interessa-me que essas pessoas não estejam a querer salvar a vida naquele dia, para depois de limparem o filtro do aspirador estarem outra vez cheias de porcaria durante seis meses.  Interessa-me que essas pessoas não sintam que têm momentos em que ficam muito limpas e descansadas, e outros em que estou à beira de se querer matar. Encontrar um equilíbrio nisso tem sido difícil. Às tantas a música serve-te para isso. 

Usando essa lógica mais ancestral, as pessoas encontram-se para repetir letras antigas, mas para acrescentar, às vezes, no momento, uma palavra nova, um gesto novo, uma contribuição que tem uma forma diferente, ou que toca com um ritmo de uma maneira um pouco diferente. É como eu vejo a tradição. A música tem tradicionalmente essa possibilidade de tu acrescentares qualquer coisa. E nisso incluo as letras. Em vez de estar a fazer só a letra que toda a gente está à espera, que vai funcionar, que soa bem, às vezes é inevitável comprometer-me com um discurso, ou até com uma frase feita. Não quero que seja nem panfletária nem moralista, mas que diga qualquer coisa, que comunique com outros humanos e entre nós quando estamos a dançar, que possa ser possível alguém agarrar-se à melodia, outro ao ritmo, outro à dança, outro só às palavras, e no final, se calhar, todos se aproximarem mais um bocadinho uns dos outros. É essa a ideia para mim de uma pista de dança, de um encontro, de uma roda. 

Em Portugal temos visto muitas sonoridades negras a chegar progressivamente ao mainstream. Mas não foi sempre assim. Se pensarmos no General D, e na forma como foi recebida a sua reivindicação da africanidade, ou em casos como o Bonga, que só depois de décadas de sucesso fora de Portugal é que foi realmente reconhecido cá, vemos que alguma coisa mudou. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, também percebemos que a chegada de vozes e corpos negros aos centros é muito relativa, porque a cidade continua a ser profundamente segregada, e mesmo nos centros continuas a ter noites intituladas de “música afro” e de “músicas do mundo” em que praticamente só há pessoas brancas lá dentro. Mesmo muitos espaços históricos da música negra em Lisboa foram fechando progressivamente. É um debate que não acho que seja óbvio. O que que sentes que tem mudado em Lisboa e no país a este respeito? Como olhas para estes paradoxos?

Na vida que tive parece-me que não mudou essa ideia de a música ser vivida de uma certa maneira. Era a minha tia a cozinhar e a ouvir aquele tipo de música que também ouvia num clube africano onde ia. Havia uma cena de família, de encontro, de necessidade, quase de verificação identitária: “Eu estou aqui, tu sabes de onde é que eu venho e porque é que eu gosto disto”. Eu vou ao B.Leza e sinto muito isso. Há uma série de códigos dentro do clube que vêm daí. Não sinto isso noutros sítios, onde provavelmente há miúdos que vêm do subúrbio para ocupar uma sala, durante um momento parece que aquela sala é daquelas pessoas, mas não é algo que tenha substrato. Ainda é uma cultura construída de cima para baixo. Há obviamente uma construção de baixo para cima também, e aí estou a nivelar as pessoas numa condição vertical que eu detesto e não queria nada! Mas a verdade é que há uma conotação com o subúrbio, com pessoas imigrantes e pessoas que vieram das colónias e cresceram à volta da cidade, e que ainda não têm lugar garantido no centro da cidade. Fazem parte do folclore, até do folclore turístico, mas não têm lugar. 

Na televisão, por exemplo, uma pessoa como o Dino é hoje em dia alguém que faz parte da solução porque traz conversas, temas e tópicos que são todos os tópicos que nós precisamos que ele traga, mas não deixa de ser preocupante que seja uma exceção. Num contexto de Gulbenkian acontecem coisas, num contexto Iminente acontecem outras, mas no geral não. No Rock In Rio há ou houve uma “Rua África”, com um palco próprio e distinto do palco mundo. Isto parece-me assim uma instalação artística muito óbvia. Não sei qual é a intenção, mas como olho para ela, é muito claro o que quer dizer. Quer dizer que o continente africano existe fora do mundo. Como também há os “palcos bairros” nesses festivais, não é? Em que os bairros estão noutro sítio que não o do mundo. Um artista como o Dino acaba por ser uma exceção que valida um bocado a regra de que o mainstream português ainda é predominantemente lusitano e não luso-qualquer coisa. Vai sendo, vai parecendo, mas muito às custas da validação de fora. O General D autoexplica-se a hostilidade que foi vivida, e mesmo outros casos, como os Kussondulola, o Rapública. Há uma série de movimentos para o mainstream por serem músicas históricas em Portugal. Fazem parte do nosso folclore, foram feitas cá, são daqui deste sítio, no entanto, foram sempre de certa forma secundarizadas em relação a outras que ficaram para sempre enquanto esta parece que desapareceram. 

Na maior parte dos casos para mim sempre foi um bocado confuso porque é que as coisas têm que vir sob uma outra forma, porque é que têm que aparecer agradável ao olho, o mais parecido com o que eu me identifique para que a pessoa seja aceite. Há espaços que se abrem agora, mas é o Dino a pôr o pé na porta, é o Kalaf a pôr o pé na porta, são uma série de artistas a pôr o pé na porta para outros artistas poderem entrar, e tem de ser jogado um jogo em que tu tens de corresponder um bocadinho aos moldes que existem para o teu papel. Felizmente, o Dino está a ocupar um modo de algum desafio, de algum desconforto, e ainda bem. Mas no passado nunca houve esse espaço. Nestes últimos anos, se olhar para a Enchufada, se olhar para a Príncipe, vejo que tem que haver uma validação internacional e uma conceptualização do discurso, tem que haver mesmo um lado industrializado, porque a identidade por si só não chega. Tem que ser bem embrulhado, tem que ser bem empacotado, porque o nosso mercado é pequenininho e não há sustentação financeira para fazer com que coisas mais independentes possam perdurar. É um país muito pequeno, somos mais pequenos que uma cidade do Brasil, então é difícil sustentar certas coisas que sejam mais underground. O mainstream sim, mas o mainstream já existia há 20 anos. O funaná e a kizomba já estavam nos tops de vendas, só que era através da Vidisco, não era através da Sony ou da Universal. O próprio Bonga, não é? Agora é visto, mas eu desconfio ainda se ele é visto exatamente como é visto o Carlos do Carmo ou como é vista uma Amália, como alguém que que tenha esse tipo de valor. O Bonga está vivo e ainda bem, há-de estar connosco durante muitos mais anos. 

Até tem um grande disco deste ano. 

Sim. Claro que os primeiros discos deles são insuperáveis, mas este último disco tem pelo menos um tema que eu já ouvi pessoas a cantarem no autocarro porque a letra é atual, bate-nos muito e reflete muito o que é a realidade, tanto cá como em Angola. Ele continua a ser pertinente, a ser ativo. Ele é visto com carinho, sim, mas muitas vezes com alguma condescendência também. Eu não gosto disso. Não gosto nada disso. Ele tem piada? Tem. Mas ele tem muito mais do que isso. Nos discos dele não é a piada que ressalta, é a profundidade, a identidade, o diálogo com coisas muito profundas e algumas delas, logo desde o início, que até incluem o diálogo com outros países e não o nacionalismo bacoco angolano, que até era bastante justificado em 72, 74, ou 75. Ele sempre conseguiu albergar ali o Brasil, Cabo Verde, Portugal e a Europa. Ainda estamos muito atrasados, e voltando a esses 50 anos, mesmo em relação àquilo que é a interpretação do trabalho Bonga, ainda estamos muito lentos a aceitar o que ele representa. 

No ano passado publicámos no Rimas e Batidas uma conversa contigo e com o Mamadou Ba a propósito de uma petição que circulava para ele sair do país. Neste momento o juiz Carlos Alexandre e o Ministério Público decidiram levá-lo a julgamento acusando-o de difamação ao neonazi Mário Machado que esteve envolvimento nos crimes que levaram à morte do Alcindo Monteiro. É um bocado triste ainda estarmos nisto, não é? Como é que achas que a arte, a música, e os encontros que ela cria, podem também ser um catalisador de otimismo e de esperança nestes tempos onde estas coisas acontecem? 

Pois. Se olhares para a televisão domingo à noite, vês o The Voice com o Dino e ficas descansado. Se ouvires a Sara Tavares, que também foi outro fenómeno de simpatia e de uma artista aceite há não sei quantos anos atrás, também ficas descansado. Mas depois começas a ver a distância que há entre esses artistas, o tempo que demora um artista desses ser aceite, e o tipo de reação epidérmica que o Mamadou provoca. Mesmo que seja num tom suave, com aquela voz dele num português bem falado, com um timbre bonito, ele provoca sempre um mau estar e tem ódio atrás dele sempre. Eu percebo que possa haver ali um diálogo da luta antirracista com pessoas que são racistas e, portanto, possa haver essa reação. Mas já acho estranho como é que a posição do Estado português descai muitas vezes para aí. Não me parece acidental, nem uma grande teoria da conspiração. Acho que não há teoria. Há mesmo só pessoas que se dão ao trabalho… Eu sei disso que eu fiz uma estreia de uma curta minha no Padrão tive um abaixo-assinado de um vice-fundador do Chega para que aquilo não acontecesse lá. Ou seja, há uma eficácia brutal em relação a certos assuntos que não há em relação a outros.

Neste caso em concreto parece-me que há aqui uma lógica que é ideológica e que é racista e que não é aceitável sequer. Independentemente do que possa haver aqui no processo, que eu não conheço em detalhe, mas basta-me ler as primeiras linhas para perceber que há aqui um desnivelamento muito grande entre a motivação de um lado e a motivação do outro. E depois também nos perdemos aqui neste tipo de discussões, em que em vez de termos que estar a defender o Mamadou o tempo todo, devíamos estar era a discutir como evitar que pessoas como o outro senhor persistam e nascem novas. É uma derrota para todos e acho que nós temos de assumir isso. Há uma perda de valores que foram lançados e que não foram assimilados nem aceites. Temos que voltar ao ponto de partida e perceber o que é que não colou. O discurso da ignorância e do ódio estão a ocupar espaço a mais. Em vez de fingir que ele não existe, vamos avançar, porque isto não são só ignorantes. 

Acho que devemos mesmo parar e tentar perceber o que é que se está a passar. Ao contrário do que o Marcelo faz e diz. Essa coisa do “não vamos falar agora que é desagradável”, “isso se calhar não é um assunto para trazer para a mesa”, está mesmo a passar. O gesto em relação ao Mamadou é só mais um de vários que já têm história. Eu lamento e hei-de associar-me a isso, de me solidarizar com isso. Mas sim, entristece-me, porque já passaram algumas gerações e continua a haver ódios a pessoas. Sim, há uma adesão mais mainstream se o discurso for para falar sobre a guerra nuclear, e está tudo bem, ninguém quer a guerra nuclear, mas depois não tornamos como pessoal uma ofensa à nossa própria dignidade enquanto cidadãos e comunidade. Aliás, se olharmos para o Parlamento vemos que o partido mais próximo dessa linha de pensamento teve o seu maior sucesso agora. 

De facto, vivemos nos últimos anos alguns dos maiores momentos do movimento antirracista em Portugal, temos cada vez mais artistas a refletir sobre estes assuntos e a intervir no espaço público, e ao mesmo tempo temos a extrema-direita com uma força parlamentar como nunca teve. Como é que se explica este paradoxo?  

O professor Marcelo dirá que uma coisa alimenta a outra. É assim que ele explica as coisas, fica resolvido e já pode ir nadar. Na cabeça dele isso faz sentido. E está tudo bem, só há o problema de ele ser o Presidente da República. É um Presidente da República que fala todos os dias. Então essa pessoa dizer que uma coisa alimenta a outra a mim preocupa-me muito. Parece-me que houve também do lado do antirracismo uma importação quase direta daquilo que são os contextos e realidades do lado afro-americano, que tem a sua razão de ser, mas que têm nuances diferentes das nossas aqui. E isso pode fazer com que algumas pessoas que não olhem para os estudos ou que não pensem sobre isso, não consigam perceber a relação entre o George Floyd e os casos que nós temos cá. Essa maior manifestação surgiu com palavras em inglês e com uma narrativa de fora. Eu tinha preferido, e confesso que fiz por isso, que esta nossa narrativa tivesse sido trazida para a conversa, partindo do que nós vivemos aqui. Pode ser menos funky, pode ser menos interessante de falar, digamos que o conjunto todo estético não é tão rico. É cinzento, é preto e branco, não é sexy, não é cinematográfico, não foi documentado, então parece que não é tão juicy, mesmo para o Correio da Manhã. Não tem tanto imaginário porque nem sequer foi cultivado, não foi falado, e então é mais fácil agarrar nessas lutas e na simbologia toda norte-americana e trazê-la para cá. Tudo bem, é sempre bom, mas sinto alguma falta de raiz de luta aqui e de ligação ao dia a dia, à conversa do comboio da linha de Sintra, do autocarro, das pessoas que estão na rua. Falta ouvir essas pessoas, estar com elas, falar ao mesmo nível e aceitar que esses problemas são importantes, não são só uma conversa da treta. Eu ando muito transportes públicos, não tenho carta, e já tive como interpor muitas vezes, perante formas de interação que são claramente diferenciadas a toda a hora. Claro que se cruza o pobre miserável com a raça, mas há muitos momentos em que é só a questão racial. Há má educação, há má-formação, mas depois também há a questão racial e não é residual. Eu sinto-me também pessoalmente frustrado por ainda ter de falar disso e acho que vamos ter que falar disso durante um bom tempo. 

Voltando à música, agora fizeste-me pensar nisso, há muita gente a interferir. A música pode ajudar a trazer mais informação, claro. Personalidades como a do Dino podem ajudar, mas ainda são um bocado exceções. São coisas boas e excecionais em tudo o que a palavra quer dizer. Excecionais no sentido de confirmarem a regra e de serem mesmo excecionais no sentido de também serem qualitativamente valiosas. Houve uma grande evolução nestes últimos dois ou três anos sobre na representatividade, mas vê-se que ainda é um exercício. A questão da representatividade vai ter impacto nas próximas gerações, quando essa ideia passar pelo menos a quebrar esse obstáculo do eu olhar para a televisão, e olhar para os filmes e para as séries, e sentir que posso chegar lá e os outros perceberem que o outro que é diferente, também pode estar no mesmo contexto. Esse tipo de coisas que são a subliminares, que vão ficando, que foram contaminando até hoje a nossa forma de ver as coisas, podem melhorar com o passar do tempo. Mas se Portugal em algumas coisas têm evoluído bastante, e mesmo nas leis é feito um esforço, há sempre um momento ou outro em que tu topas que há uma espécie de linhas vermelhas. Parece-me que ainda é muito cedo, apesar de ser muito tarde, para falarmos em reparação. Continua a ser uma coisa meio: “Epá, extremista!”; “Epá, desnecessário”; “O que queres dizer: Desculpa? Epá…” Ainda há red lines, ainda há uma negociação que estamos a fazer. Ainda não há propriamente uma zona neutra fixe de coração aberto em que estamos mesmo a querer fazer, não sei…

Uma zona de verdadeiro diálogo.

Sim, não há. Ainda há um bocadinho divisões e linhas. Parece que ainda estamos a negociar, é o que eu sinto. E no caso da música isso também acontece. Portanto, há movidas diferentes, movidas muito positivas e há movidas estranhamente negativas, mas que se calhar sempre lá estiveram, e como nunca ninguém lhes quis dar importância, elas agora sem vergonha assumem-se mais radicais do que alguma vez o fizeram publicamente. Sinto que estão aí e que não vão desaparecer tão depressa porque da mesma forma que existe este efeito positivo da representatividade e do espaço conquistado, também há um efeito de reação negativa. Então estamos aqui com duas oportunidades, para melhorar muito ou para piorar, ainda vamos ver para que lado é que a coisa descai. Vamos ver para que lado é que a coisa vai. 

Há-de ir para o lado certo! Também precisamos de alguma esperança, não? 

Sim, há esperança, claro. Nós estamos cá todos. E mais do que a esperança, há uma inevitabilidade em fazer as coisas de uma certa maneira. Quando os gestos vêm de uma zona profunda e humana, de valores teus que formulaste entre a família, os estudos e aquilo que tu és, quando vem daí, não é a má propaganda ou a má informação que te vão fazer a fazer desistir disso. Esses valores que são humanos vão sempre existir. Os outros que são mais animais também vão sempre existir. Para mim, mais que a esperança, é só saber que há um certo tipo de valores e de formas de estar que vão sempre existir porque fazem parte da nossa condição, de querermos o bem do outro, de sabermos que estamos bem em conjunto. Mas sim, a evolução passará por haver uma troca de informação construtiva e não destrutiva, que é o que me parece que que tem acontecido. Agora parece-me que há uma forma diferente de obscurantismo. Tu antes não vias, não sabias ler. Agora vês tudo, sabes ler tudo, mas parece que é trazido um vulto para as coisas, para as tornar mais foscas, é esquisito, parece que se aplica um filtro para tornar a coisa menos clara. É muito bizarro. Apesar de dizeres que 1 + 1 são 2, ainda há gente que diz : “Depende”. E um gajo fica tipo: “Oi? Epá, se não acreditares na matemática ou na física, pode ser complicado”. Há pessoal que está a pôr em causa esse tipo de factos e é muito difícil argumentar. Nem sei muito bem como, mas estamos a tentar. 


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