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Publicado a: 24/08/2018

Artes à Rua 2018 – O Bairro: Évora, gostas de hip hop ou não?

Publicado a: 24/08/2018

[TEXTO] Vera Brito [FOTOS] Direitos Reservados

Domingo, perto das 4 da tarde, a caminho de Évora, a temperatura do carro aproxima-se dos 40 graus. Ainda no conforto do ar condicionado questionamos-nos se será esta a melhor altura do ano para rumar ao abrasador Alto Alentejo. Sabemos bem que este Alentexas não é para velhos mas as dúvidas dissipam-se quando nos instalamos na relva do Jardim Público, de cerveja fresca na mão, para o primeiro concerto do motivo da nossa visita: assistir in loco à estreia d’ O Bairro, festival de hip hop inserido na segunda edição do Artes à Rua, evento de arte pública promovido pela Câmara Municipal, que agita o verão da cidade. O calor sufoca mas Évora é afinal o sítio onde queremos estar.

Esperam-nos quatro dias dedicados à cultura hip hop, numa programação com destaque aos artistas eborenses, para ajudar a desmistificar essa ideia de que o hip hop português só terá tido raízes nos grandes centros urbanos de Lisboa e do Porto. Com menor expressão e dimensão claro, a verdade é que por aqui também já se arriscavam rimas sobre beats, algures nos anos 90, muito possivelmente pela mesma altura em que hip hop abria rastilhos pelo resto do país. O foco de origem, segundo nos dizem, terá sido no célebre Bairro da Cruz da Picada, um local bastante problemático há alguns anos, hoje de cara lavada, que visitámos no último dia e que acabaria por nos proporcionar uma das experiências mais genuínas do festival, mas já lá chegamos.

 



[Poesia precisa-se]

O festival inicia com a apresentação do álbum estreia de Bob O Vermelho, que já conta com quase tantos anos de rap como Évora de hip hop, por isso não deixa de ser curioso que só agora o rapper nos apresente o seu primeiro disco. Ao que parece a sua avó Matilde terá dado o incentivo que faltava e a pergunta que Bob lhe coloca, na primeira faixa que ouvimos, é a mesma que se impõe a Évora no final destes quatro dias: “então e gostas de rap ou não?”. Com o nervosismo normal de qualquer estreia, amplificado pelo calor da tarde e pela pressão de actuar para uma plateia feita quase só de amigos (jogar em casa nem sempre é uma vantagem), obrigou DJ Sims a alguns rewinds nos pratos. No dia seguinte, com os Matilha 401, muito mais seguro de si, iríamos vê-lo reclamar definitivamente a praceta ao Giraldo, onde o palco principal se encontra instalado. A avó Matilde terá ficado certamente muito orgulhosa.

Ainda na noite de domingo e para algo um pouco diferente da restante programação, mas dentro do universo hip hop, o já “meio português” David Murray, desde que se instalou em Sines, varreu a Praceta do Giraldo num arrepio colectivo com o seu saxofone. O free jazz do americano pode ser por vezes difícil de assimilar, sobretudo numa plateia heterogénea e irrequieta, mas não deixa indiferente nem o ouvido mais duro. Acompanhado pelos seus Infinity Quartet são vários os momentos em que vemos os músicos entregues ao transe do improviso. Sentimos-nos até algo invejosos do nirvana que Nasheet Waits, na bateria, parece estar a atingir. Se adicionarmos a isto a catarse da poesia de Saul Williams, tão impiedosa quanto utópica, a experiência torna-se quase religiosa. Falar de Saul Williams em poucas linhas, seria como tentar encaixar um oceano num aquário. Dizemos-vos apenas isto: o mundo precisa de mais poesia, e não falamos daquela ideia romantizada da poesia, mas sim da outra, aquela visceral, que incomoda e que corta até ao osso. A poesia capaz de colocar ordem nas coisas não tem de ser bela ou floreada, e se disso duvidam é porque também nunca viram um concerto de NERVE, também já lá chegamos.

 



[Hip hop é família]

Ao segundo dia estamos de volta ao Jardim Público para mais um momento de relva e chill out, cortesia dos Scratchers Anónimos, representados por DJ Ketzal e Camboja Selecta. Após uma segunda-feira de trabalho, o mundo reordena-se entre scratches e J. Cole. O set escolhido pela dupla, abrilhantado pela técnica nos pratos que nem nos atrevemos a avaliar, fazem o final de tarde perfeito, quer para uma boa conversa entre amigos (já por ali se encontra reunida a família Matilha 401), quer para fechar os olhos, dar um salto à estratosfera e ficar por lá a orbitar.

Dia da prata da casa, os Matilha 401, colectivo já bem conhecido dentro e fora de Évora, dão o concerto mais energético do festival. Ajuda ter muita gente em palco e ao lado de DJ Sims, que dispara os beats, Perez, Brazza, Bob O Vermelho e D.Beat não dão descanso a ninguém, enquanto atiram jardas atrás de jardas: “ninguém faz na zona o que a gente fez”, “vim para dominar o mundo, eu matei o anti-cristo”, entre outras tiradas mais directas, capazes de deixar por ali algumas “virgens ofendidas”. Valas e Pródigo juntam-se para incendiar ainda mais o ambiente e Gisela faz arregalar alguns olhares com o seu twerking pecaminoso. Festa instalada, este é mais um daqueles concertos de hip hop em que se sente o calor humano do amigo que cuida do seu amigo, Brazza não se cansa de repetir que “hip hop é família” e no final só não subiu ao palco para partilhar desta grande família quem não quis.

Concerto terminado rapidamente percebemos que é Valas, também ele da família Matilha 401, por quem todos esperam. Assim que o rapper eborense sobe ao palco, com DJ Sims a assumir novamente o comando dos pratos, a massa adolescente chega-se à frente entusiasmada. Sem a agressividade ou a crueza que lhe vimos há pouco com os Matilha 401, Johnny Valas tem também álbum novo para apresentar: Check-In conta muitas batidas lentas e um rap polido que seguramente irão em breve encher várias salas pelo país e rodar nas telenovelas nacionais.

 



[“DJ Sims, pilar do hip hop de Évora”]

A afirmação acima veio de Valas, no seu concerto, e não há como discordar. Após três dias de festival é fácil perceber que o denominador comum é DJ Sims. Bob O Vermelho, Matilha 401, Valas, todos se apoiam no DJ e produtor eborense, que consegue, justificadamente, reunir o maior número de gente para mais uma tarde de relax no Jardim Público. Russ, Kendrick Lamar, Drake, ScHoolboy Q, Holly Hood, Anderson .Paak, nada escapa ao radar de DJ Sims, que faz com que não queiramos estar em nenhum outro sítio que não ali, nem mesmo neste Agosto em que se multiplicam festas de sunset em praias e rooftops pelo país fora.

Dia também de nova oportunidade para ver (ou rever) o documentário Não Consegues Criar o Mundo Duas Vezes de Catarina David e Francisco Noronha, na tela instalada em frente à Câmara Municipal na Praça do Sertório. A história de hip hop documentada passa-se mais a norte, no grande Porto, mas seguramente com muitos paralelismos à da do rap eborense, também ela impossível de criar duas vezes. Quanto muito é possível recordá-la, como aconteceu no espectáculo Paredes em Carne Viva (n)o bairro, que no último dia levou o festival para fora das muralhas do centro histórico de Évora, de volta ao Bairro da Cruz da Picada, onde muito provavelmente terá sido lançada a primeira rima do hip hop eborense.

 



[O bairro onde tudo começou]

Deslocamos-nos até lá de carro, aproveitando o amável convite da boleia de Luís Garcia, programador do Artes à Rua, que pelo caminho nos vai explicando um pouco da história do bairro. Uma mescla social de gentes vindas do meio rural, das ex-colónias e da comunidade cigana, deu origem a um ambiente de extrema pobreza propício à criminalidade, que marcou profundamente o Bairro da Cruz da Picada durante muitos anos. No dia anterior, enquanto se faziam os últimos ajustes do Paredes em Carne Viva, ouvimos Badja, um dos mais antigos rappers eborenses (senão mesmo o primeiro), recordar uma infância onde facilmente se era assaltado, de crianças que brincavam descalças na rua, simplesmente porque não havia dinheiro sequer para comprar sapatos. Badja insiste para que José Coimbra e Tiago Guimarães, responsáveis pela projecção de vídeo, escolham imagens mais duras, que realmente transmitam o que ali se viveu. Hoje em dia, ainda existem alguns problemas de pobreza mas o bairro é seguro, garante-nos Luís Garcia.

Chegamos mesmo a tempo para assistir à projecção de vídeos na parede de um dos prédios, sobre a qual Badja e Tchino, rapper da nova geração, vão improvisar. Badja começa por nos oferecer as suas melhores skills de beatbox, que arrancam vários assobios entusiastas, despertando a curiosidade de alguns moradores que aos poucos vão saindo de casa. No caminho de regresso ao centro de Évora, onde já se ouve Notwan, comparsa de NERVE, numa elegia ao bagaço, temos a certeza que levamos do Bairro da Cruz da Picada a memória mais genuína destes quatro dias de festival, só foi pena que mais gente não tivesse lá estado presente.

 



[O demónio à solta em Évora]

E solta-se o demónio na Praça do Sertório no último concerto do festival. NERVE, senhor mistério, poeta maldito, que tem também forte ligação à cena hip hop eborense, com o Sistema Intravenoso, era a escolha lógica para fechar o ciclo. Não é exagero dizer que, neste momento, NERVE é já um artista de culto, basta observar os seus fãs que parecem apóstolos de um profeta amaldiçoado, esmiuçando as suas palavras em busca de punição. Em boa verdade, neste momento, não existe mais ninguém a escrever como ele no meio de todo o “plâncton”. Poderemos nunca vê-lo esgotar uma Altice Arena, uma ideia até algo disparatada pois o Senhor das Moscas não será nunca o senhor das massas, e a verdade é que temos até um prazer perverso de nos sentirmos parte de algo que poucos entendem, a bela certeza masoquista em saber que “a música não tem de ser feliz”, nem nós. ‘Trabalho & Conhaque’ ou ‘A Vida Não Presta & Ninguém Merece a Tua Confiança’ e Água de Bongo não ficaram de fora, mas é o recente EP Auto-Sabotagem que nos parece ser agora a sua obra maior, com Notwan a puxar gritos dilacerantes ao seu saxofone. Nem uma alma intacta no final do concerto.

No regresso a casa e já com saudades de Évora que tão bem nos recebeu, faz-se o balanço destes quatro dias de encontros de gerações, espaços e culturas. A primeira edição d’O Bairro foi um sucesso e Luís Garcia acredita que será para repetir no próximo ano, quem sabe até como festival autónomo ao Artes à Rua. A resposta à pergunta que colocávamos ao início é clara: Évora gosta de hip hop.

 


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