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Publicado a: 30/11/2018

Amnesia Scanner é o som de hoje visto do lado de lá

Publicado a: 30/11/2018

[TEXTO] André Forte [FOTO] Satoshi Fujiwara

A ilha da Madeira prepara-se para mais uma edição de um festival que, humildemente (pela sua dimensão verdadeiramente exclusiva), segurou a atenção de uma audiência internacional e da crítica mais aguda. Falamos do MadeiraDig, evento que decorre no Funchal desde 2004 e tem sido casa para artistas sonoros do calibre de Fennesz, Alva Noto, Oneohtrix Point Never, William Basisnki e dos portugueses Sei Miguel e Rafael Toral, entre tantos outros.

De ano para ano, os alinhamentos vêm cheios de desafios e 2018 não será diferente, contando com nomes como a nipónica Phew, com os canadianos Eric Chenaux e Jessica Moss, ou os locais, integrantes do Colectivo Casa Amarela, Rui P. Andrade e Aires. As atenções, contudo, focam-se em Amnesia Scanner, que encabeçam o dia de hoje, o primeiro da presente edição do festival.

A dupla finlandesa, sediada em Berlim, é um pouco mais do que uma simples parelha de produtores. Para que não surjam dúvidas, não se está a colocar em causa o trabalho de Ville Haimala e Martti Kalliala: a música de Amnesia Scanner, um exercício de auto-reflexão no acto de produção e no acto de escuta, é algo verdadeiramente singular, familiar, mas ao mesmo tempo algo completamente alheio a este mundo. Another Life, disco recentemente editado com o selo da PAN (uma label a seguir de perto), é a peça final de um puzzle iniciado há sensivelmente quatro anos e que nos dá o contexto para um universo paralelo ao nosso em que estas músicas fazem sentido pleno.

E, sendo ponto de partida para algo muito entusiasmante, é um desfecho cheio de classe para esta primeira vida do duo, com canções — sim, canções — de melodias arrojadas, produção impactante e saturada, cheias de ganchos, ora interpretados pela artista noise Pan Daijing, ora por Oracle, principal figura do disco — stacks de software que produzem uma voz disforme e robótica, que tinha vindo a surgir em algumas faixas de registos anteriores. Oracle não é só o figura central dos Amnesia Scanner de agora, principal personagem das suas actuações — com direito a ser mencionado nos concertos de apresentação como convidado (“feat.”) —, é também a metáfora para o método dos finlandeses.

Haimala e Kalliala pouco revelaram nas entrevistas que deram, e até essas acontecerem apenas se suspeitava das identidades dos autores do projecto. Sabia-se que o som que se seguia às iniciais AS, constante em todas as músicas conhecidas de Amnesia Scanner, não era definitivamente convencional. Saturado até ser grotesco, explosivo e pouco dado aos fracos de músculo cardíaco, soa a algo feito por um computador gravemente infectado com todos os tipos de vírus. Não é por acaso: “De forma muito prática, há muitos níveis diferentes de automação digital. Em vez de usarmos sintetizadores, usamos instrumentos que tentem imitar o mundo real, mas depois retocá-los até um estado irreconhecível”, adiantaram em entrevista à Dazed & Confused.

 



Já à The Fader, que assinou a primeira entrevista com os produtores, abriram o jogo em mais detalhe, mas sem revelar mais do que se percebe pela criação de Oracle: que há muito software envolvido, e que esse software pode chegar ao ponto de transformar a música de alguém numa versão dos Amnesia Scanner. Falar em “futurismo” é preguiçoso, e os próprios apontam isso — “se fazes algo novo ou ilegível, é sempre cunhado como ‘futurista’, porque é difícil de compreender” —, e nunca foi esse o sentido do projecto. Pelo contrário, AS é um olhar crítico sobre a vida no mundo ocidental, e Another Life uma caricatura da música de hoje.

“Não há história ou segredo algum para ser escavado aqui. É mais experimental — acumular coisas que nos interessam e produzir o nosso próprio mundo sónico.”, explicam à revista. Constante no trabalho, na forma como parece acontecer e como de facto soa, é a reacção ao mundo real, quase como uma convulsão, e às narrativas absurdas que nos rodeiam, cheias de euforia e paranóia. É nestes espectros, mas na sua versão em esteróides, que Amnesia Scanner funciona: “É a nossa interpretação do presente e para isso parecer algo feito agora, tem de ser exagerado, quase como numa animação, e assustador, assim como estúpido e engraçado, às vezes”. Daí o êxtase de “AS Brief”, com Colin Self, ou a voz quase irritante, mas impregnante de “AS Chingy”, que chegou no primeiro EP da dupla, e num vídeo publicado no YouTube em forma de trip digna de ficção científica, originalmente criada a partir de um videojogo. Amnesia Scanner é o meme generator da indústria pop, algo quase insinuado pelos próprios e que se reflecte nas estruturas imediatamente familiares de algumas malhas do LP e, de forma menos clara, do EP, em que os subs a lembrar o trap servem de fundo para interacções de vozes desumanizadas.

É também a reconhecer as suas limitações que o projecto se distingue, principalmente na área visual. Ao envolver o PWR Studio, que tem assinado grande parte do material visual criado para o seu universo, e o fotógrafo Satoshi Fujiwara na concepção da capa do disco, os Amnesia Scanner conseguiram extravasar a coerência do seu trabalho para meios não unicamente sonoros, capazes de viver num website que parece uma página de 4chan e onde cada botão cria uma imagem aparentemente roubada à infame “internet hate machine”, e em vídeos feitos com bugs e loops filtrados como numa conta de Instagram.

E qual outro lado de um espelho partido, Another Life entrega faixas a puxar ao punk, como “AS Chaos” a mais parecer uma malha roubada a uma banda de hardcore dos 80s nova-iorquinos, ritmos a lembrar a América Latina, como “AS Too Wrong”, reminiscências da cultura raver dos 90s londrinos, como “AS Faceless”, e até umas ondas mais trap, por via de “AS A.W.O.L”. Também não falham tiradas que vivem no meio termo entre o nosso universo sónico e o de AS, com elementos descaracterizados até à aleatoriedade clínica que aqui impera. O disco parece ir em todos os sentidos, mas mantém a coerência que só alguém que definiu os limites da sua actuação se pode dar ao luxo de ter. O produto do LP é, na verdade, uma série de construções vagamente familiares, largamente reproduzidas, mas filtradas pelos olhos dos Amnesia Scanner, produzindo um conjunto de temas verdadeiramente dançáveis, esquizofrénicos, capazes de testar os melhores sistemas de som e que, quer pelo amor, quer pelo ódio, levam ao oposto da indiferença.

Os Amnesia Scanner não nos vêem com bons olhos, mas soam bem. Só por isso, valia a pena ir à Madeira.

 


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