Pontos-de-Vista

Rui Miguel Abreu

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Fecha-se a década e coloca-se também um ponto final na carreira de um dos mais marcantes artistas portugueses de sempre.

Allen Halloween: a voz que marcou a década

Há uma simetria quase perfeita na discografia que Allen Halloween entregou à década que agora finda: o seu segundo álbum, A Árvore Kriminal, saiu em 2011 (cinco anos depois da estreia com Projecto Mary Witch), Híbrido viu a luz do dia em 2015 e Unplugueto fecha a porta deste decénio, tendo sido editado há um par de semanas apenas. Três álbuns produzidos de forma inteiramente independente, que pareciam lançados ao sabor do acaso, mas que se afiguram, neste momento, muito mais como um calculado resultado de uma providência específica, peças-chave dispostas num tabuleiro onde o artista jogou, contra si mesmo, uma espécie de partida de xadrez moral, tendo, ontem mesmo, declarado xeque-mate e dado o jogo por terminado. Vencedor? Allen Pires, homem de fé, de família, de fundas convicções espirituais. Derrotado? Não há realmente um derrotado, se quem vê a sua última peça tombar nos deixa, e falando apenas de obra desta década, canções como “Drunfos”, “A Noite de Lisa”, “Debaixo da Ponte”, “Bandido Velho”, “Zé Maluco”, “Marmita Boy”, “O Rei da Ala”, “Livre-Arbítrio”, “Na Porta do Bar” ou “Assassino”.

A década que viu a promulgação entre nós da lei que regulamentou o casamento entre pessoas do mesmo sexo, que viu Aníbal Cavaco Silva assumir segundo mandato na Presidência da República, que assistiu à gestão férrea da austeridade pelo Primeiro Ministro Pedro Passos Coelho, que foi testemunha do fracasso da selecção de futebol no Mundial do Brasil e apoiante do seu dramático triunfo no Euro que decorreu em França, que encaixou o improvável sucesso de uma Geringonça que ninguém acreditava que pudesse funcionar, que elegeu um Presidente dado a selfies como Marcelo Rebelo de Sousa, que viu banqueiros tombarem, políticos a enfrentarem a justiça, que uniu um povo inteiro em torno de tragédias de água e de fogo, que viu a ascensão de populismos, que sintonizou na televisão a dureza da vida no bairro da Jamaica, que levou novas forças políticas à Assembleia e que aplaudiu a chegada do hip hop, com pompa e devida circunstância, ao topo da pirâmide pop nacional, é também a década de Allen Halloween, talvez a mais importante voz que este país escutou neste calendário que agora se prepara para mudar de dígitos.

E porquê? Esta década também assistiu a triunfos – e cingindo-nos apenas ao universo das rimas e das batidas que sentimos como mais próximo – de artistas como Sam The Kid e Valete, Keso e Nerve, ProfJam e Wet Bed Gang, Regula e Holly Hood e Piruka, Dillaz e Boss AC e NGA, Capicua e Dino D’Santiago e Branko e Conan Osiris e DJ Ride e Stereossauro e tantos outros que, em diferentes escalas e de diferentes maneiras, ofereceram aos ouvidos desta geração o combustível poético, rítmico e estético para afirmarem a sua diferença. Cada um desses artistas registou impactos diversos, uns somando milhões de visualizações nas plataformas de streaming que agora nos alimentam os ouvidos, outros elevando a fasquia da criatividade, outros expondo em rimas ideias e sentimentos que nunca antes tinham merecido atenção, outros levando-nos a dançar, outros ainda forçando o cruzamento de mundos que antes eram estanques e não comunicantes. Todos somaram importantes vitórias, sem dúvida.

Mas Allen é farinha de outro saco, voz capaz de se fazer ouvir no meio de cartazes focados em bandas de metal, respeitado por punks e rockers alternativos, chamado a celebrar Zeca Afonso ao lado de artistas como B Fachada ou Benjamim e JP Simões, com lugar em eventos que celebram o lado mais urbano e progressivo deste Portugal como o Iminente, capaz de encaixar entre hipsters e luminárias indie, como aconteceu no NOS Primavera Sound, e de dar música a ouvidos espalhados entre Odivelas e Cascais. Não tenho a certeza que haja outro artista assim, com um alcance que não se mede necessariamente em views e plays, que não se traduz em zeros no cachet ou em visibilidade nas redes sociais, mas que é algo fundo, transversal, capaz de ir da ZDB à discoteca de província. E capaz, também, como talvez só Valete antes dele, de ressoar tanto nos bairros periféricos de Lisboa, quanto nas favelas do Rio de Janeiro ou nas ruas de Luanda ou Maputo.



E essa amplitude, esse generoso alcance deve-se, apenas, a uma coisa: às suas palavras e à particular forma que tem de lhes dar fôlego. A música de Allen Halloween nunca foi carregada por um contexto, nunca se encaixou num panorama mais vasto, nunca foi expoente de uma corrente específica, produto refinado de uma qualquer tendência musical, não é trap nem boom bap, não é rock, não é folk, não é sequer especificamente negra ou branca. Parece, ao invés, viver de um secreto universalismo que não se rege por códigos genéricos, parece sobreviver acima de classificativos e escolas e nuances, precisamente porque foi feita – sempre – com o seu autor a olhar para dentro, nunca a tentar perceber o que é que se passava à sua volta ou sequer a reagir contra o que quer que fosse. E é precisamente por ser tão singular que a música de Allen Halloween parece agradar a tanta gente tão diferente, de norte a sul do país e bem mais além, nesse universo lusófono de múltiplos sotaques e regras, de diferentes nuances linguístcas mas que parece, afinal, capaz de compreender ideias como as que animam as canções de Allen.

Apesar de sempre se ter apresentado ao vivo rodeado de companheiros do bairro, de aliados/cúmplices/discípulos que também ajudaram a deixar claro que Allen representa multidões, que se assume como voz de comunidades, a verdade é que a sua música é produzida em reclusão quase total, admitindo pontuais colaborações, mas surgindo sobretudo dos seus dedos e da sua garganta, com instrumentais singulares que ele mesmo cria, incorporando um pulsar mais eléctrico e rock que busca matéria samplável nos Rammstein ou em Nick Cave, preferindo o carácter lo-fi da autossuficiência a um mais “profissional” rigor digital que o obrigasse a sair dos estúdios que melhor conhece para outros em que tivesse que interagir com quem não tem qualquer empatia. Da mesma forma, resistiu todos estes anos ao assédio de grandes editoras, nunca se harmonizou com managers ou agentes que lhe orientassem a carreira, preferindo fazer (quase) tudo resolutamente sozinho, talvez por acreditar que só assim poderia garantir a independência e a verdade das suas ideias e da sua visão artística. A obra e o percurso que Allen Halloween construiu foi, portanto, fruto de solitária entrega, de desapoiado trabalho, fruto de instinto e desconfiança. Allen chegou exactamente onde queria e nem um passo mais longe.

E agora despede-se, depois de nos deixar Unplugueto, o seu disco “acústico”, e uma antologia das suas palavras em Livre Arbítrio, um livro com chancela Lua Eléctrica apresentado no início deste mês na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa. São três discos, muitos concertos e um livro para uma década. E palavras, muitas palavras, num “estranho dialecto” que muitos pareciam, afinal de contas, entender na perfeição sendo capazes de repetir todas aquelas barras de cor, fazendo das suas vozes um prolongamento, um eco, da do próprio Halloween: “Eu não posso ir contigo até ao fim da viagem/ Não há tempo pa sermos amigos, não há tempo pa dizer adeus/ É a noite da Lisa/ Abre os olhos carapinha/ O diabo muda de cara em cada esquina”, relatava ele, numa crónica amarga e sem filtros de quem viu o gang a rolar e nos confessou a sua vontade de voltar para lá correndo o risco de ter que engolir os rebuçados envenenados que a justiça reserva para os bandidos velhos, como ele. Só que Allen encontrou agora a sua paz. Escreveu ele, ontem, nos murais com que comunica com o seu mundo: “Eu vou para um lugar muito melhor, melhor do que todos aqueles que os meus olhos virão (sic) até hoje. Um lugar onde eu realmente me sinto em paz. Sem muitos mais mimimís; Yah rapazes e raparigas, abraço grande do Original KAPPA, esta é a minha paragem. Fui. ESTÁ CONSUMADO”.

Fecha-se a década e coloca-se também um ponto final na carreira de um dos mais marcantes artistas portugueses de sempre, alguém que relatou o que mais ninguém contava, que emprestou a sua voz a quem não a tinha, que carregou consigo imagens de um mundo que para muitos era invisível até ele nos ter revelado o que por lá acontece. Só por isso já lhe devemos muito. Só por isso garantiu um lugar no futuro. Mesmo que não volte a cantar.


https://youtu.be/Qd1SvREcyrM

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