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Fotografia: Mestria
Publicado a: 29/09/2023

Na última sexta-feira de cada mês, Miguel Santos escreve sobre artistas emergentes que têm tudo para tomar conta do mundo da música.

Abram alas para… Riça

Fotografia: Mestria
Publicado a: 29/09/2023

Há muitas maneiras de ultrapassarmos os nossos conflitos internos. Há quem pinte, toque bateria, ou soqueie um saco de boxe decorado com a fotografia do seu némesis. No caso de José Leal, a aposta é na escrita como forma de purgar os fantasmas que assolam a sua mente. Não é tarefa fácil enfrentarmos os nossos demónios até os aprisionarmos com palavras sonantes no papel. Mas o rapper, produtor e ilustrador mais conhecido como Riça consegue fazê-lo, e leva a cabo essa actividade hercúlea com um estilo inconfundível.

O primeiro trabalho deste artista natural de Paredes, o EP Bicho Com Mau Gosto, foi lançado em 2016. Editado pela Microfome, o projecto é um conjunto de temas de alguém com fome de rimas e idealismo jovial. É um primeiro trabalho mas vinca imediatamente uma entrega característica: as barras de Riça são proferidas num plano mais teatral. A própria abordagem à escrita é mais geral, não se preocupa tanto em emular mas mais em honrar pelos seus próprios meios. Isso é algo muito evidente na jocosa e biográfica “É Lá na Bouça”, o hino de boas-vindas do rapper à sua terra. No espectro oposto, temos “DRAGÃO IV”, um voraz e fantasmagórico retrato de um horror que a noite traz. No videoclipe vemo-lo invicto, jogando com luzes e invocando a personagem que descreve em pormenor. É sem dúvida um tema mais maduro do que aquilo que o antecedeu, mas conseguimos facilmente reconhecer o estilo distinto de Riça em ambas as canções.

“DRAGÃO IV” foi apresentado em 2019 com selo da Paga-lhe o Quarto Records, de Keso. Por lá, Leal ainda lançou em 2020 “Napoleão Precário“, um longo tema em que o artista discursa sobre um Porto moderno numa espécie de ponto de situação da gentrificação da cidade em que seguimos um estafeta da Uber Eats à conquista de uma gorjeta choruda. É uma realidade difícil de engolir, acto auxiliado pelo humor pincelado por entre os versos. Mas ainda que esteja sempre atento ao mundo contemporâneo, Riça não esquece os trunfos e relíquias da música tradicional portuguesa no que toca à sua arte.



Em 2023, José Leal assina pela Biruta Records e em Maio lança o single “Canção das Maias”. Neste soturno tema, há elementos sonoros que nos remontam a um ambiente sonoro tradicional, ouvimo-lo no timbre da percussão e no sample pigarreado. O refrão é semelhante a um suplício, um desabafo sem forças para ser gritado. Neste potente primeiro avanço do seu álbum de estreia, Riça discursa sobre questões de saúde mental, um tema cada vez mais urgente na sociedade moderna, e fá-lo através de valências musicais do passado.

Chegamos a Setembro de 2023, o mês em que Diabos m’Elevem aterrou nos ouvidos do mundo, e a ambiciosa estreia de Riça no formato longa-duração veio cimentar a sua qualidade no panorama do hip hop português. Ao longo de 11 temas compostos e produzidos pelo próprio e auxiliado pelo co-produtor Zé Menos, Leal vagueia pelo imaginário popular português com critério e ponderação. A produção é intrincada, transparece a procura de sintonia entre o hip hop e o folclore, e certamente despertará o interesse tanto de melómanos como de historiadores.

As letras são pessoais, Riça bebe de provérbios, superstições e lendas conhecidas por uma população inteira para destilar a psique de um só indivíduo. Ouvimos a angústia da caminhada em “Alma Penada”, a cegueira da ganância em “A Menina dos Oito Olhos”, a saudade que a morte deixa em “Antes que t’Afantasmes”. Mas nem só de tragédia se faz um homem, e Riça não esquece o amor, representado pelo blues hilariante de “Mulher do Diacho”, e não esquece a nostalgia da infância passada, gloriosos tempos imortalizados em “Coisas no Vento”. As experiências descritas nesse último tema são pessoais mas o tom e entrega saudosistas convidam a uma reflexão sobre as nossas próprias memórias. E por mais longínqua que sintamos a nossa infância, “Coisas no Vento” encurta essa distância invisível.

Diabos m’Elevem é um projecto confessional, biográfico, prova certa de que cada tempestade oferece uma oportunidade de canalizar a energia dos relâmpagos. Em 2016, Riça declarava em “Às Voltas”: “Escrever é ver o mal / Foder-lhe a boca / Seguir em frente”. Sete anos depois, o seu álbum de estreia prova que essa máxima continua a orientar a sua música. E por cada conflito interno de José Leal, há uma catártica e engenhosa música de Riça.


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