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Fotografia: Mestria
Publicado a: 14/09/2023

Diabos m’Elevem vai ser apresentado ao vivo no Porto em Outubro.

Riça: “Este é o meu disco biográfico, com a minha sonoridade. Foi um processo de cura”

Fotografia: Mestria
Publicado a: 14/09/2023

Chegou aquele que pode muito bem ser um dos álbuns do ano. Diabos m’Elevem é o primeiro trabalho de longa-duração de Riça, rapper, produtor e ilustrador de Paredes, distrito do Porto. Para este trabalho, o artista propôs-se a fundir o rap com música tradicional portuguesa não só nos sons e nos ritmos, mas também com o imaginário popular e folclórico das lendas, fábulas ou superstições, muitas das quais associamos sobretudo ao norte do país.

Riça escreveu e compôs o disco, tendo contado com a ajuda valiosa de alguns instrumentistas e feito uma colaboração decisiva com o co-produtor Zé Menos. Rokelhe, Kass e Maçã são os outros nomes que participam no projecto. Editado pela Biruta Records, Diabos m’Elevem vai ser apresentado ao vivo a 19 de Outubro no Maus Hábitos, no Porto. 

O Rimas e Batidas entrevistou Riça para desvendar o processo criativo por trás deste álbum vanguardista e ambicioso, que indubitavelmente coloca o artista num patamar distinto daquilo que havia feito até aqui e que o diferencia no vasto panorama do hip hop nacional. É um disco construído entre o campo e a cidade, o rural e o urbano, a tradição local e a modernidade global, o misticismo e a realidade, o folclore e as memórias biográficas que serviram de “cura”.



Quando e como é que começas a preparar este álbum? A ligação próxima à cultura e ao imaginário popular português é uma ideia base para o disco, ou aparece, por alguma razão, durante o processo criativo?

No rap há muito uma necessidade de afirmares uma certa identidade, o sítio de onde vens, quem tu és. É algo muito biográfico. E eu desde que comecei a lançar música, a assumir-me mais publicamente, senti sempre uma necessidade de encontrar esse sítio. Embora eu goste muito de fazer rap e instrumentais com aquelas regras mais clássicas, sejam boom bap ou trap, eu sentia-me, mais do que um rapper ou um beatmaker, um criativo. E muitas das coisas que eu ia fazendo na ilustração ao longo dos anos quis começar a transpor para a música. Não necessariamente os temas que eu abordava, mas mais a abordagem à música. Ou seja, é muito fácil num meio como o rap formatares-te rapidamente, seja a nível de temas, a maneiras de falar, ao slang, aos esquemas rimáticos, aos flows… E na ilustração sentia-me muito mais livre, porque fazia há muitos mais anos, já tinha passado essa fase de seguir as regras e já tinha conhecimento suficiente para me libertar disso. Quis fazer isso com a música também. Não deixei de sentir que faço rap: eu continuo a fazer rap, mas quis experimentar não uma sonoridade diferente só porque sim, mas a minha sonoridade. Ou seja, se eu tiver que contar a alguém de onde é que venho e quem é que sou, qual é a minha história? Diria que este acaba por ser o meu disco biográfico, em que abordo vários episódios da minha vida.

E onde te envolves num universo específico.

Decidi metê-lo no contexto em que cresci, um contexto não totalmente rural não é uma aldeia isolada em Trás-os-Montes mas é muito uma realidade que existe sobretudo nas periferias das grandes cidades. Quando começas a ir para as terrinhas ao lado, reparas nisso: deixam de existir shoppings ou estações, de repente há muito mato, só há um café e um tasco. Vivi muito tempo nessa área cinzenta entre a cidade e o campo. E quis representar isso. Não foi uma decisão imediata na altura, acho que foi muito gradual. Por exemplo, no EP que lancei tenho a música “É Lá na Bouça”, que eu diria que foi a primeira abordagem a isso: falar abertamente disto, que venho de um sítio do campo e que as pessoas falam desta maneira e têm comportamentos assim ou assado, e a partir daí se calhar comecei a pensar mais seriamente: OK, o que é que posso fazer de diferente aqui? Não só a parte da escrita nem os instrumentais, mas a capa, a maneira de vestir, os videoclipes… 

Todo o projecto artístico.

Exacto. Relativamente à sonoridade tradicional, folclórica não sei bem o que lhe chamar , isto partiu até de uma sugestão que me deram há muitos anos. Foi um amigo meu, o Luís Monteiro, estávamos no Acampamento Liberdade do Bloco [de Esquerda], a trocar umas ideias sobre o que eu gostava de fazer na música e ele falou-me do João Aguardela e do projecto Megafone. “Tens que ouvir isto, é mesmo interessante porque ele vai buscar samples de pastores e de velhotas a cantar e mistura com música electrónica de uma maneira que soa mesmo bem e não é forçado.” Fui ouvir e a partir daí comecei a puxar o fio e fui por aí fora. Acabei por descobrir o Giacometti, o Armando Leça, todas aquelas recolhas etnográficas que existiram no século XX. E depois foi sempre um paralelo entre eu tentar criar e pesquisar mais um bocado, eu tentar aplicar a pesquisa ao que criava, e as músicas começarem a ter coerência entre elas… Por exemplo, eu fiz por não ter muitos sintetizadores ou drums clássicos do rap, tentei trazer para a frente instrumentos associados ao tradicional, seja uma viola braguesa, uma guitarra acústica, que tem uma cor muito própria; seja os bombos, alguns tipos de ritmos, desde o Minho às Beiras, os grupos de Zés Pereiras que sempre ouvi em chavalo na minha terra, os rufares, as caixas, aquela coisa muito barulhenta, as gaitas de foles… E foi assim que se foi construindo o álbum ao longo de muitos anos. Por isso é que também se passaram quase sete anos desde o EP que lancei, porque quis reformular-me um bocado. Artisticamente, quem é que sou? Não quero fazer mais um disco só para dizer que tenho coisas cá fora e que rimo para caraças. Quero pensar nisto a longo prazo, com uma identidade artística. Pensar em nomes como o Allen Halloween, o Sam The Kid ou mesmo, no limite, o Zeca Afonso, o José Mário Branco… É por isso que vais ser relembrado. Foi um bocado esta a génese do disco.

E é curioso pensar que o teu EP já saiu há sete anos, parece que 2016 foi ontem.

É verdade, também passámos pela fase da pandemia que foi muito estranha. Eu entretanto fui lançando algumas coisas pela Paga-lhe o Quarto, a “Napoleão Precário” e a “Dragão IV”, que foi a experiência mais assumida do que é que eu queria para o disco. Aí já uso samples de voz de recolhas do Giacometti, já uso os bombos, mesmo a imagética da letra remete para aí, o videoclipe… Foi a primeira abordagem a este universo.

E estavas a descrever a relação que foste construindo com várias músicas e sons sobretudo do Norte e das Beiras, mas a forma como trabalhavas uma vez que vinhas de um registo mais convencional de rap também terá sido um encontro que representou uma novidade para ti. Até poderias conhecer muito bem a tal música popular portuguesa de várias formas, mas trabalhar directamente com ela é diferente, suponho.

Sim, e inicialmente foi muito difícil… Imagina, pegares numa música do Zeca Afonso, samplares e fazeres um instrumental é fácil. Não estou a dizer que o que fiz foi genial e super fora, mas peguei em gravações de ranchos folclóricos, com as senhoras a cantar todas desafinadas, que é algo que não associas de todo ao rap… E sempre que tentava fazer um instrumental com aquilo, soava-me cómico, parecia uma paródia. Portanto, nessa fase inicial foi muito difícil tentar perceber o equilíbrio. Porque o que eu não queria era fazer instrumentais de hip hop onde fosse simplesmente samplar música tradicional…

Querias ir mais fundo.

Exactamente. Nem quis fazer música tradicional como outros grupos fazem, com a mesma estrutura de canções. Quis que fosse um ponto de encontro entre ambos os mundos. Não quis deixar de fazer rap, e todas as músicas são assumidamente rap, mas também não quis que fosse só rap puro e duro do início ao fim. Tentar trabalhar momentos da música em que canto mais um bocado… E o Zé Menos foi, sem dúvida, a grande ajuda neste disco. Ele acompanhou todo o processo de criação, sobretudo na parte da produção vocal, e trabalhámos coros, tentámos dar algumas dinâmicas à música, e acho que foi toda a aprendizagem ao longo destes dois ou três anos que nos enriqueceu mais. Eu não tenho qualquer formação musical. Portanto, o processo passava muito por ouvir uma data de referências de músicas, de bandas desde os anos 60 até coisas mais actuais, e tentar memorizar emocionalmente o que é que aquilo me transmitia: quais é que seriam os acordes, as cores, os ritmos e por aí fora. E tentar mimetizar isso. Mesmo a nível de canto, também foi uma novidade para o Zé tentarmos cantar como os velhotes. Eu também não tentei ir estudar à minúcia, ver quantas sílabas tem um cante alentejano, mas foi tentar captar mais a emoção. Foi nessa tentativa que chegámos a algum resultado. Às vezes foge um bocadinho, às vezes aproxima-se mais do que é a música folclórica, e acho que isso é que é interessante.

E claramente partiram para o projecto com uma mente aberta e preparada para experimentar, mas ao mesmo tempo à procura do tal equilíbrio para não ser demasiado folclórico nem continuarem tão ligados à cena mais tradicional do rap.

Sim, não queríamos fazer uma coisa óbvia, mas também não queríamos uma coisa super intelectual, muito experimental, a ponto de aquilo não poder chegar às pessoas… Ainda antes da “Dragão IV”, comecei a recolher algumas músicas para samplar e passei-as a um amigo meu beatmaker. Queria que fosse ele a produzir o disco para me libertar um bocado dessa parte. Ele ainda andou uns tempos à volta daquilo, mas ele afastava-se daquele tipo de música. Porque, de facto, é muito difícil para quem nasceu depois dos anos 90, sobretudo para quem não é de zonas mais rurais e mesmo para quem é conseguires ter algum tipo de empatia com essas músicas. Não te diz nada. Queres ouvir coisas mais actuais, modernas. E foi aí que decidi ser eu a produzir. Porque ninguém iria ter a mesma visão do que eu para pegar naquilo. Não que eu já soubesse o que queria fazer, mas cabia-me a mim essa missão, tentar partir pedra a todo o custo para perceber o que poderia sacar dali que fosse interessante. Os outros não iriam ter a mesma entrega, porque o trabalho é meu.



E como é que a parte mais do imaginário das fábulas, das lendas, desse folclore também te influenciou? Sempre esteve muito presente no teu dia a dia?

Sim, até uma certa idade. Eu por volta dos 15 ou 16 anos fui estudar para o Porto e afastei-me um bocado disso. Houve uma fase em que me quis afastar. Não gostava, porque era uma coisa dos velhotes e não interessava para nada, era baixa cultura, pessoal pimba… E mais recentemente fui-me aproximando disso. Comecei a relembrar-me de coisas do passado, histórias que o meu pai e os amigos do meu pai contavam, ou até os meus avós. E comecei a ver naquilo uma coisa interessante, única, que ainda ninguém tinha pegado no rap… Se calhar até tinham essa vontade, mas não queriam, porque de facto é uma coisa complicada.

É um desafio grande.

Sim, actualmente já é mais fácil porque também já existe uma maior abertura para isso, com esta nova geração, relativamente à música popular portuguesa, ao pimba… Há uma perspectiva diferente e ainda bem. 

Mas há sete anos, quando lançaste o EP, ainda não existia propriamente esta abertura.

De todo. E ainda apanhei com muitas coisas, de pessoal do rap que fazia coisas mais cantadas e já era pimba ou azeiteiro… E isso retrai-te, não é? Quando vês os outros a falarem de outros artistas assim, retrais-te um bocado se não tiveres a confiança suficiente. Mas voltando à questão das lendas e das superstições, isto veio muito de me tentar lembrar de coisas do passado. Fui ler alguns livros, não por não conhecer mas para… Por exemplo, há um termo que é “alma penada”, que sempre ouvi, mas se não me tivesse cruzado recentemente com aquilo, provavelmente não me iria lembrar. Ou seja, às vezes é preciso ires à procura em livros, em filmes, em documentários que te façam lembrar. “Pois é: este pormenor! Como é que não me lembrei disto? Sempre esteve à minha frente e estava tão habituado que nem me lembrei”. Veio muito daí. Também não tentei ir buscar lendas, sei lá, do Algarve para o disco, foram mais coisas do meu dia-a-dia. Há uma música que é “A Menina dos Oito Olhos”, baseada na superstição de que as aranhas trazem dinheiro, de que não se deve limpar as teias de casa porque isso vai-nos trazer dinheiro. E tentei aliar isso com uma coisa que queria falar, alguns problemas que houve na minha família ao longo de muitos anos relacionados com dinheiro e como isso foi estragando a família. Juntei os dois e é como se a minha família estivesse a viver aquela superstição e a aranha deixa de ser um bichinho inocente e que só nos dá coisas boas, para ter intenções malignas por trás. É um bicho que se alimenta da tua alma, vai dar-te o dinheiro mas levar alguma coisa em troca. Foi muito por aí que tentei abordar a coisa.

Daí o disco também ser muito biográfico.

Exacto, eu não queria fazer músicas que não tinham nada a ver comigo só por fazer… Acho mesmo giro a lenda das moiras, vou falar delas porque é uma coisa do universo popular? Não, se isso não tiver qualquer ligação com uma experiência que tive no passado, não me interessa. Pelo menos para este disco. Acho que isso, além de me facilitar o trabalho, torna-se muito mais divertido. Isto lembra-me um pouco os filmes do Jodorowsky, d’A Montanha Sagrada, ou a literatura do realismo mágico da América Latina, e mesmo o Saramago tem isso… Situações banais do dia-a-dia, em que de repente há algo de mágico ali, mas não é uma coisa por aí além… Não é um mago que vem e destruiu tudo. É um elemento que faz parte da vida e as pessoas lidam com aquilo. Da mesma forma que o Diabo, pelo menos neste disco, não é o príncipe do Inferno nem o senhor do submundo que vem e estraga tudo e é o apocalipse. É mais um Zé Nando que coabita connosco aqui, anda no tasco e volta e meia vai pregando partidas às pessoas. Acho que isso é muito mais o Diabo no imaginário popular português. Roça muito o pagão, o mundano.

E essa cultura pagã e folclórica também associamos muito ao norte de Portugal.

Não conheço muito bem como é que isto é no sul. O que conheço é o que vejo de documentários, coisas d’A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria, programas de televisão, mas isto foi o que sempre experienciei mais. Este lado mais místico e mágico, que é muito característico daqui por causa das montanhas, do nevoeiro, por ser cinzento. Da bruxaria, que é outra coisa de que também falo porque desde miúdo que estou habituado a ouvir dizer que a vizinha dali da rua é bruxa, lê as cartas e deita o mau olhado às pessoas, ou que o meu avô foi ao bruxo e ele disse-lhe que ia viver até aos 120 anos. Ou seja, o bruxo é outra figura do quotidiano. Não é necessariamente um gajo de barbas grandes e de vestes, é uma pessoa normal, só que faz bruxaria.

Voltando à parte mais musical da coisa, como é que foi o processo de trabalhar com instrumentistas? Também deve ter sido uma experiência diferente pela presença que eles têm no disco.

Sim, sem dúvida. Era algo que eu já queria fazer e que de futuro quero fazer ainda mais, porque isso aproxima-me da vertente teórica ou musical, a perceber e a criar diálogo, a colaborar com outros. E foi muito interessante porque inicialmente eu tinha as bases dos instrumentais, samplava qualquer coisa, punha uns drums, mandava ao Chuaga que tocou guitarras eléctricas… “Olha, preciso aqui de uma melodia para isto, mas que seja aproximada ao universo popular português. Vou-te mandar uma data de referências para tu ouvires, seja a Banda do Casaco, o GAC, para te tentares aproximar destes acordes, destas cores.” Foi difícil porque eu já estava um bocadinho embrenhado no processo e para ele aquilo foi novidade. “Nunca toquei isto na vida nem oiço”. E foi muito por tentativa e erro, de ir mandando. Outras coisas só surgiram agora mais para o final, numa espécie de pós-produção, depois de a música já estar terminada. Sentimos que faltava tapar algumas coisas. Falei, por exemplo, com o Luís Capela que é um guitarrista de Amares e toca viola braguesa e isso era uma das coisas que eu queria trazer para o disco. Um instrumentista mais ligado a este universo. Já tínhamos a música feita, se a guitarra não entrasse ela não ficava propriamente frágil, mas a viola braguesa veio trazer uma cor diferente à música. O Pedra deu uma mãozinha com os drums, sobretudo na música “Rato do Campo & Rato da Cidade”. Nós estávamos com algumas dificuldades em usar bons samples de drums para ali, tentámos várias coisas, mas não estava a funcionar, então decidi falar com o Pedra porque sabia que não só é um grande baterista como é um grande beatmaker. E depois contei, por exemplo, com o Ricardo Martins nalgumas músicas para o baixo. Fosse porque os baixos que eu tinha não eram da melhor qualidade ou faltava algum feeling na maneira como a coisa estava tocada, e foi muito por aí, foi uma experiência muito interessante. Tenho pena que não tenha dado para estarmos todos juntos em estúdio a trabalhar e a trocar ideias. É o que é nos dias de hoje, envias por WeTransfer, depois a pessoa envia-te outra vez, vão discutindo, fazem uma chamada e tal e depois ouve-se a mix final. Mas espero, de futuro, ter essas experiências.

Obviamente já conhecias o Zé Menos e tinhas trabalhado com ele, mas quiseste logo que ele fosse uma parte tão importante do disco?

O Zé Menos é meu amigo há muitos anos. Desde que, basicamente, começámos a lançar coisas. Já íamos trocando uns bitaites na altura e a relação foi crescendo com os anos. Eu fiz-lhe a capa do primeiro disco, depois ele mandava-me coisas dele para ouvir, acompanhei muito de perto o processo d’o chão do parque. Vi o crescimento dele do primeiro para o segundo disco e aquilo inspirou-me imenso. Veres alguém que conheces a crescer assim tanto… Eu quis ir um pouco atrás do que ele conseguiu, de certa forma. Ele foi o gajo que me mostrou: não tenhas medo de arriscar, não tens de fazer outro disco igual. E de facto o chão do parque está um disco muito mais arrojado, experimental, mais cantado, distorcido, enfim, está uma obra de arte. E acho que lhe fiz o convite mais ou menos na altura em que fiz a “Dragão IV”. Inicialmente até era para ele fazer os instrumentais a meias comigo, mas ele não estava muito interessado nisso, tinha outras coisas para tratar, e foi aí que percebi: esta missão a nível instrumental é só minha. O que ficou decidido foi gravar o disco todo com ele, misturar e masterizar. O curioso disto é que a participação dele no disco, sobretudo vocal, foi uma coisa muito orgânica. Fomos gravando as músicas, percebendo que um determinado refrão está frágil ou não se aproxima tanto do universo que estamos a explorar, e ele salta para o microfone e começa a fazer três, quatro, 10 ou 15 tracks de vozes para os coros e aquilo começa a resultar aos poucos. Começámos a desconstruir: se pegarmos no refrão e encurtarmos os versos, isto soa mais a cantiga tradicional. Quando demos por nós ele já estava a entrar em praticamente todas as músicas, com os coros, às vezes a dar alguns toques no instrumental. Muitas vezes, e isso foi sem dúvida aquilo em que mais gostei de trabalhar com ele, tínhamos uma música mas ele era o gajo que me dizia: esta música está a fugir da estética das outras…

No fundo ele foi um verdadeiro produtor do disco, no sentido tradicional da palavra, que não costuma ser usado no hip hop. Enquanto tu foste o compositor. 

Sim, ele fez uma direcção musical. Foi muito a meias e houve alturas em que eu já estava cansado do disco e só queria gravar e fechar aquilo. E ele dizia: “Puto, isto ainda não está lá, tens de mudar os drums disto, tens que ir buscar outro sample que soe mais a bombo, ou era fixe termos aqui uma guitarra, ou cantarmos isto desta maneira…” E muitas vezes eu ia para casa e refazia o instrumental praticamente todo. Isso para mim é bué importante numa colaboração. Não gosto daquela coisa de mostrar uma música a alguém e a pessoa dizer: “Ya, ’tá fixe.” Diz-me mais, não te acanhes, diz-me o que achas e o que sentes. E o Zé, sem dúvida, foi por aí fora. E ainda bem que mudámos essas músicas porque se aproximaram muito mais das outras. Dou um exemplo: a música da “Mulher do Diacho” soava muito mais a uma música de rock com laivos de qualquer coisa tradicional ali pelo meio, porque os drums até eram muito trap, lembrava-me muito aquela música do J. Cole, a “G.O.M.D.”. E ele achou: “Isto ainda não está lá, está a fugir um bocado.” E eu “OK”, fui para casa, fui ouvir algumas coisas, até me lembro de ouvir uma música dos Retimbrar, “Coisas da Minha Terra”, e percebi: basta eu mudar aqui o ritmo do baixo e pôr uns drums diferentes. E quando cheguei à beira dele com aquilo reformulado ele adorou e disse: “É muito mais isto.” O processo foi muito assim e ainda bem. 

E escreveste as letras quando já tinhas os instrumentais mais ou menos feitos?

Eu diria que finalizei a escrita, sim. Ou seja, andei a esculpir a escrita para se adaptar ao instrumental, para musicar a escrita. 



Então já tinhas coisas anteriores?

Já, apontamentos, sobretudo de temas ou ideias de que queria falar. Por exemplo, essa música d’”A Menina dos Oito Olhos” é uma delas. E houve muita coisa que escrevi em formato diário, em prosa, a falar dos problemas que houve na minha família relacionados com heranças… Também curtia de falar dos tempos de miúdo, quando tanto brincava com um Game Boy como com uma fisga e isso insere-se neste universo. Porque isto é muito um trabalho de memória e demora algum tempo… Tu não te vais sentar em frente do instrumental e lembrares-te de tudo da tua infância num dia ou dois. Até me lembro do Sam The Kid dizer isso no Dicas no Vinil: “Às vezes há músicas que requerem mais tempo, o teu subconsciente tem de estar sempre alerta para todas essas dicas”. Estás num restaurante a almoçar, já não pegas no disco para aí há duas semanas e vem-te um cheiro qualquer… Sei lá, a naftalina, da casa de banho [risos]. E isso faz-me lembrar o tasco onde eu ia com o meu pai e jogávamos matraquilhos e andávamos de baloiço. E eu apontava aquilo. Inicialmente até andava com um caderno, mas deixei de andar porque tinha tanta coisa para apontar que era mais fácil com o telemóvel.

E imagino que até tenhas dado por ti, na tua vida pessoal, a estar muito mais atento a essas coisas e porventura até a aproximares-te activamente de algumas delas.

Sim, sim. Foi algo que aprendi com um professor meu há muitos anos: a partir do momento em que te metes num projecto criativo, a tua cabeça tem que estar sempre ligada àquilo. Em tudo o que estás a fazer no dia-a-dia, tens de estar disposto a absorver tudo o que possa fazer sentido para aquele projecto. E comecei a aperceber-me de que o caminho era por aqui, que já sabia do que ia falar e como ia falar, comecei a lembrar-me de mais coisas. E às vezes estava a almoçar com a família e perguntava-lhes: “Tu lembras-te de irmos ao monte e de apanharmos umas flores, as maias, e de as pormos na porta?” E o meu pai começava a falar disso: “Era para o diabo não entrar.” O meu pai é um grande contador de histórias, é um daqueles velhotes que estão à mesa e que se fartam de falar e contar histórias e fazer toda a gente rir. E a certa altura eu até punha o meu gravador de telemóvel, sem ele saber, para não haver filtros. E o meu pai contava, por exemplo, que havia um prédio em construção ao lado do terreno dele e estava um garnizo todo preto preso por uma pata a um dos pilares do prédio. E alguém disse: “Oh Zé, está ali um garnizo teu, vai lá”. “Eu não tenho garnizos pretos”. O meu pai foi lá, viu o garnizo e só pensou “vou é levá-lo”, porque o meu pai criava galinhas. E levou-o. Veio-se a descobrir depois que aquilo era uma bruxaria que uma mulher tinha feito ao empreiteiro para lhe lixar a vida, para lhe deitar o mau olhado. O meu pai ficou com o garnizo preto e acabou por fazer uma criação doida de galinhas e garnizos… Ficou com imensos animais dali. Por acaso não peguei nessa história para o disco, mas até essa é interessante. Há qualquer coisa de diabólico ou maléfico naquele garnizo, e, na inocência do meu pai que queria era vender garnizos, pegou nele, levou-o para casa, aceitou que o mal entrasse dentro da casa dele e lucrou com isso. Ou seja, teve sorte na vida com uma coisa que normalmente te dá azar. E é neste tipo de ideias em que normalmente tento pegar. É muito desse tipo de histórias que me alimento. O meu pai, sem dúvida, foi uma grande ajuda e inspiração ainda que de forma inconsciente e involuntária.

E suponho que este disco também tenha sido especial para a tua família e para as pessoas que mais associas a este universo por causa disso.

Mais ou menos… Eu não sou muito de partilhar o meu trabalho com a minha família. Vou partilhando, sobretudo com os meus pais, a minha namorada e o meu irmão, mas, sim, acabou por haver mais pontos de conversa em comum. Em relação ao resto da família, há muita malta com quem não falo há anos, ou cortei relações, e isso também é uma das coisas de que vou falando no disco. Ou seja, serviu um pouco como catarse para isso, para resolver e arrumar assuntos. Coisas de que nunca falei ou que nunca partilhei com muita gente… Tenho de escrever sobre isto para me libertar deste diabo, desta merda que me anda a assombrar há anos e que me chateia. 

Daí, como estavas a dizer há pouco, ser tão importante o processo de memória e de reflexão para depois, sim, com tempo, escreveres as letras.

Houve uma fase um pouco dolorosa de eu ter de voltar ao passado, não tornando isto uma coisa muito dramática. E fazer o esforço para te lembrares de coisas que não foram tão boas e muitas vezes a tua memória só se lembra de flashes, sobretudo das coisas más, só ficaste com a impressão e não te lembras da parte factual, às vezes era doloroso ter que voltar aí e escrever sobre isso. “Eu nem devia estar a dar tempo a este gajo”, ou o que quer que seja. Mas ainda bem que o fiz porque é o que o disco acaba por dizer: estes diabos não me levam, estes diabos elevam-me. Foi o facto de eu ter tido de alguma forma uma coragem em falar disso que de repente o assunto deixou de ter tanta importância. E isso sem dúvida que me ajudou muito. Mais do que uma cena artística qualquer, o disco foi muito um processo de cura, de me reconciliar com algumas pessoas, de tomar a decisão de que outras não acrescentam realmente nada à minha vida, de curar feridas do passado, cenas que em miúdo se calhar me foram muito pesadas e que hoje em dia já olho para elas com alguma distância e leveza… E por muito que o português tenha esta coisa de dramatizar tudo, do fado e da tragédia, também temos, por outro lado, a coisa de abraçar as coisas más da vida. “Olha, faz parte, é o que é”. E vais lidando com isso. É muito esta a ideia de conviveres com o diabo no teu dia-a-dia. O Diabo é só um gajo que vai ao mesmo tasco que tu beber bagaço, vocês acenam um ao outro, não se falam nem são os melhores amigos, mas no passado já partilharam alguma coisa.

É mais sobre aprender a lidar com as coisas más do que negá-las ou dramatizá-las.

Exactamente.

Historicamente, e é natural que assim seja, o rap português baseou-se sempre muito no norte-americano e com normas bastante fixas. Só se abriu mais nos últimos anos e a própria música urbana no geral aproximou-se da música popular portuguesa. Claro que já havia artistas a samplar fado há 25 anos, mas era sempre numa lógica muito hip hop, não era propriamente uma inovação ao ponto de fazerem aquilo que estás a fazer neste disco. Sentes que estamos na fase certa, em que já houve uma maturação suficiente para haver uma maior fusão, de se criar novos híbridos, para gerar um rap realmente mais português?

É interessante teres mencionado a ligação do hip hop ao fado, porque, em termos de identidade nacional, existe muito mais do que o fado no país. Há muitas mais cores pelo país. E as bandas de Trás-os-Montes não terão nada a ver com as da Beira ou com as do Algarve ou de Lisboa. A música tradicional portuguesa não é só o fado. E sem dúvida que tenho sentido nos últimos anos uma maior aproximação. Não digo do rap, mas da música urbana, chamemos-lhe assim, a estas sonoridades. Seja o João Não ou o David Bruno com coisas mais ligadas a um universo pimba/romântico, seja o Pedro Mafama, a Ana Lua Caiano, que misturam muito música electrónica auto-tune ou sintetizadores com cantos e instrumentos tradicionais. E isto é ótimo. No meio disto tudo, como é óbvio, aparece muito material… Não quer dizer que não seja interessante, mas se calhar não se prolonga no futuro, não é sustentado, vai só atrás daquela tendência. “Vamos fazer aqui uma música em que usamos cavaquinhos e uma viola braguesa e pomos as senhoras a dançar com umas vestes de Viana do Castelo.” Mas há malta, no meio disso, que tenta explorar um pouco mais a fundo. E eu vejo muito isto que está a acontecer agora como algo que aconteceu no passado… Com os Trovante, a Banda do Casaco, os Diabo na Cruz, os Pé na Terra… Os Sampladélicos, talvez. Enfim, já há uns anos houve uma espécie de repescar dessa música tradicional. Tivemos o grupo do José Mário Branco, do Zeca Afonso, do Fausto, que pegaram em discos de registos etnográficos do Giacometti ou do Lopes-Graça e tentaram fazer alguma coisa com aquilo… Passado uns anos há outras bandas que não só se inspiram nessas recolhas como se inspiram na própria geração do Zeca, e acho que é isso que está a acontecer agora também. É bonito de se ver. São mais cores que vêm para cima da mesa. São estilos diferentes, abordagens que não seguem as regras do costume. E em vez de castrarmos e de estarmos sempre a criticar… Sobretudo quando a música que a outra pessoa está a fazer não tem propriamente impacto sobre a nossa ou sobre a nossa vida.

Não é exactamente como um mercado de concorrência em que as pessoas deixam de ir a um supermercado para irem a outro.

Exactamente. Tu podes ouvir várias coisas e isso não invalida quem tu és nem a tua identidade. Acho que essa coisa das tribos é muito dos anos 90, em que havia o grupo dos metaleiros e o dos rappers e o pessoal não se misturava. E ainda bem que se mistura porque é da mistura que nascem coisas e ideias novas. Isso sempre aconteceu comigo, por eu ter estudado na Soares dos Reis e ter convivido com malta do punk, do metal, de outros movimentos, e foi aí que aprendi mais, foi aí que fui beber mais… “É interessante a maneira como vocês usam este ritmo ou o facto de só usarem três ou quatro acordes.” Porque é pessoal que não tem formação musical e vem de um contexto social desfavorecido e o que fez foi pegar numa guitarra e só queria era despejar ódio em cima da guitarra e da sociedade… É engraçado, isto lembra-me muito o início do hip hop. E depois vais ver que o hip hop e o punk se cruzaram muito nos primeiros anos e isso é fixe, é uma aprendizagem saíres um bocado da tua zona de conforto. 

Claro, até porque o mundo é sempre feito dessas misturas e cruzamentos. Está sempre a acontecer. E há bocado estavas a falar de ser um projecto mais sólido no sentido de teres uma identidade artística, de não ser só uma coisa musical mas que também se reflectisse nos vídeos, etc. E vais ter um concerto no Maus Hábitos com cenografia especial. O que é que preparaste?

Até foi o Rui Correia da Biruta que deu essa sugestão: era fixe termos alguma coisa em palco além de uma projecção. Algo que traga esta ideia do disco para cima do palco. E ele tem uma amiga, que agora já é uma amiga em comum, a Diana Queirós, que é cenógrafa. Tivemos uma reunião, falei-lhe das ideias que eu tinha e curiosamente o mestrado dela está a ser sobre este universo. A família dela tem uma certa ligação a este tipo de vivências. Foi um grande clique, é uma daquelas coincidências em que parece que as coisas estavam planeadas. Então, vamos ter alguns vultos e máscaras que foram criadas por ela, muito inspiradas por este universo. Nenhuma delas é uma representação chapada, sei lá, dos caretos de Lazarim ou de alguma coisa de Barcelos. É mais uma interpretação dessas coisas. Usamos um lenço de Viana, usamos a lógica por trás das máscaras, que muitas vezes é pegares numa lata de petróleo e fazer aquilo e pintar e vai resultar nalgum tipo de careta que te assusta… Ou coisas do dia-a-dia, seja uma maçaroca de milho, uma cesta de vime. Está um trabalho espectacular.


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