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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 02/01/2023

Um livro que recolhe todos os artefactos preciosos feitos à mão que serviram como capas únicas para os seus lançamentos pela El Saturn.

A Arte de Saturno de Sun Ra

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 02/01/2023

“Entrar no apartamento do primeiro andar foi um choque cultural para alguém que tinha crescido no sul de Londres”, escreveu Valerie Wilmer na edição de Setembro de 1997 da Wire Magazine. O artigo, intitulado “In the House of Ra”, ofereceu uma visão clara da mente de um criador singular apenas ao descrever os seus aposentos e espaços de trabalho. “Teclados e bateria dominavam a sala da frente; instrumentos de cordas invulgares pendurados suspensos nas paredes ou encostados em ângulos, tornando a mobilidade difícil e preenchendo todos os espaços disponíveis. Seda de pára-quedas cobria o corredor; havia bolas de cristal, pirâmides e misteriosos objectos longos cheios de luz. Os abajures eram feitos em casa, de papel, e em todo o lado queimava incenso. Acima de tudo, uma enorme cobertura de plástico, iluminada por dentro, esticada através do tecto, mantendo o reboco que ia caindo à distância e derramando um brilho carmesim sobre o próprio Sun Ra, que me cumprimentou envolto com material de lã azul real, vestido de preto. Um turbante pregueado empoleirado na sua cabeça, com uma estrela de dez pontas brilhando metalicamente a partir do seu centro”. A arte de Ra, pelos vistos, apenas imitava a vida de Ra.

Naturalmente, a vida e obra musical de Sun Ra inspiraram múltiplos estudos – Space Is The Place: The Lives and Times of Sun Ra, a extraordinária biografia escrita por John F. Szwed, e Sun Ra: A Joyful Noise, um filme de Robert Mugge que a The New Yorker descreveu como “um dos mais satisfatórios retratos musicais”, sendo dois dos melhores exemplos. Agora, Sun Ra: Art on Saturn, um livro escrito por Irwin Chusid e Chris Reisman, propõe outro ângulo para a arte singular do homem que nasceu Herman Poole Blount em Birmingham, Alabama, em 1914, mas que, já em Chicago, em 1952, mudou legalmente o seu nome para Le Sony’r Ra.

“A primeira vez que ouvi falar de Sun Ra foi provavelmente em 1976”, diz-nos Irwin Chusid durante uma chamada de Zoom que o mostra no seu apartamento completamente rodeado de discos e livros. “Ouvi o álbum Space is The Place, o da Blue Thumb Records, e pensei que ele era maluco”. Chusid apresenta-se dizendo, “eu não sou um manager, não sou um administrador, não sou um contabilista, não sou um licenciador, não sou um editor, não sou um historiador, não sou um cronista, não sou um curador, não sou um arquivista – eu sou, na verdade, todas essas coisas”. As reedições dos anos 90 na Evidence, inicialmente, e depois o contacto com a colecção de cassetes de Michael Henderson, que foi seu convidado em algumas das emissões do seu programa na WFMU, permitiram a Chusid aproximar-se do trabalho de Ra. “Até gostei do facto de muito do material soar como tendo sido gravado com orçamentos muito baixos”.

Mais tarde, Irwin Chusid envolveu-se profundamente com o património de Sun Ra, trabalhando em nome dos herdeiros do artista para reclamar os direitos de publishing da sua música, e isso levou-o ao projecto do livro que finalmente viu a luz do dia na recta final de 2022. “Este não é um livro sobre Sun Ra ou a sua música. É sobre as capas. Especificamente, sobre a arte de embalar a música de Sun Ra. Mais concretamente, sobre a forma como Sun Ra embalou a sua própria música”, esclarece o autor no texto de introdução a esta antologia exuberante e sem precedentes de 240 páginas com a arte gráfica criada por Ra e pelos seus associados mais próximos.

Sun Ra atribuiu grande importância às palavras, números, roupas, notas, aos espaços entre as notas, ao barulho e até ao silêncio. Através da sua obra – que para além da música incluía pintura, trabalho gráfico, poesia ou pensamento expresso em ensaios -, Sun Ra procurou libertar-se do tempo dos homens, da história, e nesse sentido, como se poderia dizer de Andy Warhol, outra figura importante e igualmente complexa do século XX, talvez a obra mais importante do homem que proclamou que o espaço era o lugar tenha sido a construção do seu próprio mito. Ao obliterar o facto de que tinha nascido a 22 de Maio de 1914 em Birmingham, Alabama, Sun Ra também eliminou a ideia de que ele poderia ter morrido na Terra a 30 de Maio de 1993. Ra apenas transitou para outra dimensão, mas ele permanece mais presente do que nunca, como o recente fluxo de reedições — e agora este novo livro — deixam bem claro.

A El Saturn Records foi uma operação caótica, intuitiva e simultaneamente um reflexo da própria vida de Sun Ra. Décadas antes da explosão das micro-etiquetas, Sony e o amigo e manager Alton Abraham – ambos parte de uma sociedade secreta e esotérica dedicada ao avanço das pessoas racializadas – imaginaram, graças à tecnologia disponível na altura, uma etiqueta discográfica que pudesse responder aos solavancos da imaginação do líder da Arkestra: a El Saturn lançou álbuns e singles, com muito material resultante de gravações caseiras de ensaios. O catálogo era gerido livremente, o que significava que algumas gravações podiam aparecer em diferentes lançamentos, que os números do catálogo podiam ser repetidos, que o design de algumas capas podia reaparecer em diferentes edições e mesmo que a informação contida nos discos – datas de sessões, nomes de músicos, títulos de faixas – fosse tudo menos precisa. Para Sun Ra, o importante era documentar as ideias e tudo o resto era um detalhe menor. Os discos foram então distribuídos em quantidades muito limitadas, com vendas directas de rua, entregas em consignação em algumas lojas, vendas em concertos ou simplesmente como presentes para amigos, o que hoje faz com que as edições originais de El Saturn sejam cobiçados artefactos apenas ao alcance de uma elite de coleccionadores.

Um desses coleccionadores, e colaborador do livro Sun Ra: Art on Saturn, dá pelo nome de Eothen “Egon” Alapatt, o cérebro por detrás do selo Now Again e da loja Rappcats em Los Angeles, um conhecido “spot” para caçadores de vinil raro que ali acorrem de todo o mundo. “Sou fã dos lançamentos da El Saturn de Sun Ra desde os anos 90, quando a arte das capas, especialmente a arte das capas feitas à mão, me chamou a atenção quando as encontrava em lojas de discos. Eu conhecia o nome por causa dos lançamentos de Ra na Impulse, que tinham grandes designs e que na época eram, devo admitir, um pouco ‘fora’ demais para mim – mas as capas feitas à mão eram tão misteriosas e tão fixes, que o facto de serem feitas pelo próprio artista e pela sua banda era quase difícil de acreditar”, refere Egon.

Sempre uma fonte fiável para o tipo de sabedoria que só podemos obter nos livros e nas mais longas peças das melhores e mais especializadas revistas, Eothen Alapatt recorda como um pequeno culto de entusiastas da arte de Ra cresceu internacionalmente. “Foi só em meados dos anos 2000 que comecei a acumular uma colecção dessas capas – pequena, mas ainda assim, uma colecção – e a reconhecer que havia muitos amigos meus a fazer a mesma coisa. Gilles Peterson, penso eu, tinha a maior colecção. Mas o Johan Kugelberg tinha uma colecção igualmente considerável, incluindo uma capa que ele obteve das mãos do próprio Sun Ra e na qual Ra desenhou elementos adicionais para o Johan, pessoalmente. ‘Quão incrível era algo assim?’”, pergunta ele quando se refere ao escritor e curador que, com a galeria Boo Hooray, tem documentado a história da música em Nova Iorque através de materiais efémeros – cartazes, panfletos, pequenos objectos. “E então, uma noite, eu estava num restaurante de sushi da ‘velha escola’, na parte errada do Beverly Boulevard, onde o chef de sushi era um grande entusiasta e ele tinha uma longa lista de belos vinhos velhos Bordeaux e de alguns Borgonha. Foi aí que conheci um importador de vinhos que por acaso era um entusiasta de Ra, e ele falou-me das visitas que fazia, pessoalmente, à casa de Ra e da Arkestra para lhes comprar pessoalmente discos feitos à mão. Ouvir estas histórias de forma tão casual significava que havia algo maior à espreita, mas quem seria louco o suficiente para tentar reunir tudo isto num só tomo?”

Eothen Alapatt publicou livros em conjunto com Johan Kugelberg – nomeadamente o excelente Enjoy The Experience que mergulha profundamente no estranho e fascinante mundo dos discos de dição privada – e sabe como ninguém o quão difícil é montar um projecto desta magnitude. “Sei como é significativo e incrível ver agora o amplo corpo de trabalho com arte incrível que este músico e os seus acólitos legaram ao mundo, talvez sabendo que haveria de novo um encontro cósmico de todos eles, num só espaço. É simplesmente emocionante de se ver”.

Outro importante contribuidor para este compêndio, o famoso autor de livros de jazz John Corbett explica no seu ensaio como Sun Ra “pode ser entendido como um proto-modernista”. O músico usou uma grande quantidade de gravações para conceber uma discografia única que ignorou a linearidade e coesão estética em favor de uma visão altamente pessoal da sua própria produção artística. E isso significava que os discos podiam fundir material mais convencional de swing com manifestações avançadas de música afrocêntrica ou experiências de improviso de uma grande variedade. E para acompanhar estas curiosas selecções das suas criações, Corbett afirma, “Ra montou as suas capas de LP como pastiches de clichés de jazz à moda antiga, mesmo pirosos, misturados com ideias artísticas bastante sofisticadas do século XX e motivos afro-futuristas nascentes”.

E agora, pela primeira vez, temos um livro que recolhe todos aqueles exercícios delirantemente criativos que foram feitos, como aponta Irwin Chusid, “com marcadores de feltro, tinta, cola, tesoura, autocolantes, fotos, e uma variedade de bric-a-bracs”. Já saiu e merece o seu lugar em qualquer estante mais exigente.


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