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Fotografia: Hélder White
Publicado a: 27/04/2021

Na máquina do tempo.

2016, um ano memorável para o rap em Portugal?

Fotografia: Hélder White
Publicado a: 27/04/2021

Cinco anos não é muito tempo, mas é tempo suficiente para conseguirmos olhar para trás com o mínimo de distanciamento. Em 2016, Portugal estava a recuperar a galope de uma crise económica e social devastadora. Foram anos mais felizes, de queda do desemprego, de investimento, do boom do turismo e de um aumento e aceleração da oferta cultural nas grandes cidades. Ainda é cedo para percebermos o quão determinante foi aquele período que findou no início de 2020 — e nunca saberemos o que aconteceria a seguir, se não fosse esta coisa chamada COVID-19. Mas, bem, já se fala bastante dos loucos anos 20 que aí vêm.

Neste período em que Portugal se sagrou campeão europeu de futebol, em que António Guterres foi eleito secretário-geral da ONU e em que Lisboa recebeu a Web Summit — não nos debrucemos em particular sobre nenhum destes acontecimentos — foi também um ano importante para o hip hop português.

O Rimas e Batidas celebrou seis anos por estes dias e surgiu naturalmente a ideia de olharmos para o redondo quinto aniversário de 2016 como ano fulcral nesta caminhada — não do nosso projecto em específico, necessariamente, mas do material que todos os dias observamos, relatamos, divulgamos ou criticamos. 

Antes de mais, foi o ano em que Kendrick Lamar foi cabeça de cartaz no Super Bock Super Rock, que se assumia como um festival mais urbano, após alguns anos no Meco. Aquilo que na altura já parecia óbvio é hoje uma completa certeza: é difícil pensarmos num concerto mais revolucionário no nosso país.

Até 2016, quase nenhum festival português desta dimensão tinha apostado num rapper como cabeça de cartaz. Lamar tinha lançado a obra prima To Pimp a Butterfly no ano anterior, e o movimento do hip hop português estava a crescer a passos largos em público e artistas. Todos os astros se alinharam para que o dia no Super Bock Super Rock rapidamente esgotasse — e Kendrick Lamar (com De La Soul e Orelha Negra a abrir) foi recebido com uma euforia tremenda de um público desejoso de sonoridades e mensagens frescas num grande palco, ainda a ressacar da felicidade da vitória no Euro 2016. No mesmo dia actuaram no Parque das Nações Capicua, DJ Ride, Mike El Nite e Slow J.

Terá sido o dia em que muitos promotores e agentes da indústria abriram melhor os olhos para um fenómeno chamado hip hop — que durante muitos anos não teve a representação adequada em Portugal, tendo em conta a importância do género lá fora. Em paralelo, esse caminho de abertura concretizava-se para o rap made in Portugal. Nos festivais, nas festas académicas, nas playlists das rádios, na comunicação social, na publicidade: o hip hop tuga ascendeu ao mainstream nestes anos.



Independentemente disso, foi um ano de colheita excecional para o género. Holly Hood estreou-se a solo com O Dread Que Matou Golias, um disco em que o rapper da Superbad provou todo o talento lírico e melódico que tinha, de bagagem acumulada dos anos anteriores e, por ventura, mostrou a uma geração mais nova que era possível fazer-se trap com conteúdo e uma escrita rica (e ao mesmo tempo catchy).

Um álbum igualmente impactante e relevante foi Ksx2016, de Keso. Herdeiro dos pioneiros do rap portuense, o rapper e produtor elevou a sua arte a patamares que poucos sabiam existir, construindo ainda melhor uma identidade artística densa e rica, sábia e melancólica. Foi uma pedra no charco que continua a gerar ondas — e uma espécie de recomeço na sua carreira enquanto músico.

No mesmo ano saiu Cimo de Vila Velvet Cantina, o terceiro longa-duração do Conjunto Corona, que realmente fez a dupla de dB e Logos — além de Kron e do Homem do Robe, em palco — chegar mais longe, conquistando um público indie que até aqui pouco se tinha aproximado do hip hop português. Duplo mérito para dB: foi também em 2016 que lançou o seu disco a solo 4400 OG, um trabalho conceptual (e quase documental) sobre Gaia, que foi um ponto de partida determinante antes de o músico se assumir como David Bruno e desenvolver a sua identidade artística.

Há mais. Apesar de, obviamente, a estética sonora do panorama geral do rap em Portugal se ter alterado bastante na última década, sempre se continuaram a fazer álbuns de recorte mais clássico — mas com a diferença de que passaram a ser muito melhor produzidos, mais refinados, refrescantes ainda que tradicionais. Um dos melhores exemplos saiu precisamente em 2016, quando os talentosos Beware Jack e Blasph se juntaram para OProcesso, com instrumentais de Kilú, num disco incrivelmente saboroso.

No espectro mais disruptivo do hip hop feito em Portugal, Mike El Nite — três anos depois de ter surpreendido com Rusga para Concerto em G Menor e sobretudo com o single “Mambo Nº 1” — lançou o álbum O Justiceiro, uma espécie de carta de apresentação formal, que o viria a confirmar como um dos nomes mais interessantes a aparecer nestes anos, a recuperar elementos característicos da chamada portugalidade, entrosando hip hop com sonoridades mais electrónicas.

O seu companheiro ProfJam inaugurou a Think Music (que chegou ao fim nos últimos meses) com Mixtakes. Foi um trabalho de transição, feito sobretudo em Londres, entre uma estética clássica e uma mais dreamy — antes de Prof se tornar um rei assumido do trap (e um dos portugueses mais ouvidos no Spotify). Ainda assim, Mixtakes foi marcante e alargou a legião de fãs que já o consumia regularmente nos auscultadores.

Querem mais? Dillaz cimentou a sua posição como um dos maiores nomes do hip hop nacional com Reflexo, Fuse voltou a abrir a sua imensa Caixa de Pandora, Maze lançou finalmente o primeiro álbum em nome próprio, NBC chegou ao cume da montanha com Toda a Gente Pode Ser Tudo, os Alcool Club profissionalizaram-se com Rap Proibido, Phoenix RDC deu mais um passo com Renegado, L-ALI e Pesca juntaram-se para Baço, os Pro’Seeds apresentaram-se com Soft Power Sagrado, Sensei D. lançou o mais sólido registo da sua carreira com Vivificat, Tom abriu a porta do seu Guarda-Factos e Landim abordou os dramas do trap em crioulo em TRAP’S’DRAMA VOL.2. Harold, Niles Mavis (projecto de Nel’Assassin) e J-K foram outros dos que contribuíram para um ano prolífico que representa da melhor forma o quão importante foi a segunda metade dos anos 2010 para o hip hop português. 2016 não foi há muito tempo, mas foi há tempo suficiente para as coisas terem mudado para sempre.


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