Há uma década, a Biruta Records apresentava o primeiro capítulo da sua história. Inicialmente idealizada enquanto colectivo artístico que unia diversos projectos, acabou por se afirmar como uma editora independente liderada por um homem só, Rui Correia, ele que já colaborou com Rimas e Batidas.
Foi em Janeiro de 2014 que editaram o disco de estreia: Passeio, dos Ollgoody’s, dupla de Logos (irmão de Rui Correia) e Minus & MRDolly, que já mostrava a apetência da label por registos exploratórios e fora do padrão, uma vez que, com a sua identidade regional, escapava a alguns dos cânones do universo do hip hop nacional.
Essa tendência na Biruta só se acentuou com os lançamentos de discos de zé menos (antes, Kap), redoma, Mona Linda, 4400 OG ou Riça, embora a editora também tenha editado projectos de outros géneros musicais, desde a soul moderna e urbana de Ghettoven à folk de Tio Rex, passando pela pop experimental de ben yosei.
A Biruta celebra agora uma década de história com um evento na loja de discos e espaço cultural Socorro, no Porto, que acontece já este domingo, 4 de Fevereiro, entre as 17 e as 21 horas, com actuações de ben yosei, redoma, Riça e zé menos.
O Rimas e Batidas entrevistou Rui Correia sobre os 10 anos da Biruta Records, para reflectir sobre a evolução do projecto mas também perspectivar o futuro que aí vem.
São 10 anos da Biruta, obviamente é um aniversário redondo que é um marco. Acredito que não esperavas, quando começaste o projecto, que ele tivesse esta longevidade. Ou tiveste logo a intenção que fosse algo a longo prazo?
Ao início não… Tudo isto começou no final de 2013, ainda com uma ideia de colectivo de artistas. Eu, na altura, estava activamente a tocar, fazia parte de uma banda do universo do rock alternativo, O Abominável. Tocava bateria, tinha 21 anos. E à minha volta tinha muitos amigos e muita malta conhecida dentro desse universo. Para mim e para mais alguns amigos, na altura fez sentido juntar esforços para dar um pouco mais de força a algo que achávamos que merecia mais atenção. Havia vários projectos em torno de nós, desde o universo rock à soul — estou a pensar em Ghettoven —, e depois temos o primeiro lançamento com Ollgoody’s, e é aí que eu marco realmente a nascença da Biruta enquanto editora. Na altura era eu, o David Félix (que também tem vários projectos musicais e neste momento até é assessor de imprensa), o Fausto Ferreira e o Fausto Casais… Esse núcleo de pessoas é que iniciou a Biruta, mas mais numa ideia de colectivo, de entreajuda entre projectos. Até que, a partir de 2014, há o primeiro lançamento com Ollgoody’s. E rapidamente se desvaneceu um bocado a paixão pelo projecto, daquilo que representava a Biruta. No espaço de um ano, eu fui a única pessoa a realmente a assumir o comando da coisa e a levar por aí em frente o projecto.
Mas achas que, se o disco de Ollgoody’s não tivesse aparecido naquela altura, a Biruta não teria sido editora? Pelo menos naquela fase? Ou sempre esteve também direccionada para aí?
Teria sido, sim. Porque, logo ali num curto período de tempo, começámos a trabalhar — ainda com os quatro elementos na Biruta — com vários artistas, a acordar que iríamos fazer os seus lançamentos. Na altura estávamos a trabalhar com artistas que não eram necessariamente do Porto, mas que também tinham uma ligação connosco. Por exemplo, estávamos a trabalhar com um artista que é o Tio Rex, de Setúbal. Isto para dizer que, se não tivesse sido Ollgoody’s, que foi uma coincidência ter surgido na altura em que tivemos a ideia para avançar com a Biruta, iria acontecer naturalmente com outro projecto. E voltando à tua questão sobre a longevidade, na altura não imaginava isso. Foi uma coisa muito genuína, no sentido de: vamos dar aqui alento e força a uma série de projectos que merecem e que têm qualidade, mas nunca pensámos que viesse a ser um projecto que se mantivesse por tanto tempo. Mas claro que, ao longo dos anos, veio-se a tornar mais claro para mim que era algo que eu queria manter por muito tempo.
E sentes que a identidade da Biruta esteve sempre lá desde o início? No sentido em que começaram por apostar logo em projectos de sonoridades diferentes — não havia um género musical definido — mas ao mesmo tempo era tudo música alternativa ou experimental. Nunca era algo muito pop ou óbvio, mesmo as coisas que foram editando dentro do rap foram sempre registos mais exploratórios. Sentes que essas premissas estavam na base do projecto, mesmo do colectivo que começou por ser a Biruta?
Não, na altura não havia de todo essa procura de uma identidade. Acho que isso veio mais tarde, com os anos. No início, começámos a dar apoio a uma série de artistas, todos eles muito díspares. É verdade que, de uma forma geral, eram projectos mais alternativos. Mas eu diria que só mais à frente é que verdadeiramente comecei — e já como homem do leme — a traçar mais aquilo que me parecia fazer sentido em termos estéticos. Isso é uma das coisas em que mais penso, mas quero que seja moldável, pelo menos em termos de género musical. Mas a verdade é que houve ali um período em que se sentiu que tínhamos uma série de projectos que seguiam uma linhagem de rap experimental e alternativo. A partir do álbum do Kap, o 4400 OG, trabalhar em parceria com o Keso e por aí em diante. Depois foi zé menos, as redoma, Mona Linda e Riça. Nestes últimos anos, sentiu-se uma linhagem ou uma maior proximidade entre os vários projectos. Mas no início não havia essa preocupação. Ultimamente é que é tudo mais pensado, no momento em que se decide se se quer ou não editar um projecto.
Obviamente, são necessárias muitas skills para se ser o homem do leme, para usar a expressão que referiste. É algo que se vai aprendendo com a experiência, certamente. Mas já tinhas noção das funções, do tipo de trabalho, que iria exigir de ti ao estares ao comando de uma editora, mesmo não sendo uma label que tenha dezenas de lançamentos por ano? Porque cada lançamento exige tempo, foco, atenção.
Acho que é mesmo a questão central para alguém que esteja a fazer este trabalho. Foi sem dúvida uma aprendizagem ao longo do tempo, mas o que posso dizer é que, até há bem pouco tempo, fui sempre fazendo praticamente tudo aquilo que poderia ser feito em termos de acompanhamento a um artista. Diria que até a fazer mais do que aquilo que poderia ser expectável enquanto editor. Desde o processo de editar, seja digital ou físico, e as relações que são necessárias criar, com um distribuidor ou uma fábrica… O único tópico em que nunca tive propriamente mão, aí sempre partiu mais dos artistas que deram sugestões, foi a parte do design e fotografia… Mas, de resto, sempre assumi o booking, o management… Todas as coisas que se discutem antes de se lançar algo, é muito um trabalho de management. E mesmo no momento de criação, há inúmeros casos de dar input àquilo que poderá vir a ser o trabalho do artista. Recordo-me bem do que aconteceu com o zé menos: o primeiro disco que ele lançou foi enquanto Kap, e aquilo que depois veio a tornar-se zé menos foi, obviamente, uma construção e foi fruto também de várias conversas que tivemos. Não só comigo, claro, mas obviamente que tive influência nessa transição e a ajudá-lo a criar uma nova imagem para aquilo que também era uma roupagem completamente diferente daquela que ele tinha apresentado antes.
Foi quase uma metamorfose.
Exactamente. E também faço a parte de assessoria, faço sempre a comunicação dos projectos.
No fundo, tens uma editora quase de 360° para os teus artistas.
Sim, podemos orgulhar-nos de oferecermos tudo isso, se o artista quiser. E quando agora falo no plural, trago as coisas para o presente. Com a aprendizagem que tive ao longo dos anos, obviamente fui percebendo que aquilo que eu fazia era com tremenda paixão — e que ainda faço, mas no início tens um entusiasmo gigante pelas coisas, até porque era mais novo, estava cheio de gana e energia, tudo parecia mais fácil de fazer — e agora já não tenho essa energia. Prefiro canalizá-la para coisas em que me sinto confiante e começar a delegar outras coisas a outras pessoas. E isso acabou por acontecer recentemente. Neste momento tenho duas pessoas a trabalhar comigo. Que é algo que acho que vai ser extremamente positivo para a continuidade da editora — e para uma certa mudança na maneira de fazer as coisas. Estou a trabalhar com a Diana Queirós — que entrou no momento em que estamos a trabalhar numa nova edição física, a do ben yosei —, que é uma grande amiga minha e senti que era uma pessoa muito capaz e completamente apaixonada por poder trabalhar nisto. Tem estado a trabalhar nesta edição, com bastante input em termos criativos, e também tem ajudado imenso em detalhes em coisas que vão sair pela primeira vez, que é merchandising da editora, por causa dos 10 anos. E a outra pessoa é o Eduardo Pacheco, que está a trabalhar no booking dos artistas que estão associados à Biruta. Conheci-o por ser a pessoa que está neste momento a fazer booking para a Esquadrilha Pastilha, e também tem estado activamente a trabalhar com o Homem do Robe. As novidades são essas.
E são novidades significativas, que me levam à próxima questão. Acabaste de fazer um ponto de situação, mas como é que perspectivas o futuro? Gostavas que a editora crescesse de alguma forma, que tivesse mais edições, mais artistas?
Gostava. Eu diria que sou sempre bastante racional nas decisões que tomo, então prefiro que as coisas sejam feitas de uma forma progressiva, mais lenta, porque estamos a falar de uma estrutura independente, que tem vivido, basicamente, da minha paixão e dos meus fundos. É um projecto independente, e orgulho-me disso, mas não atingiu uma sustentabilidade, obviamente tenho um outro trabalho a full-time. E felizmente consigo manter ambas as coisas. Mas eu diria que, para o futuro, poderemos ter mais capacidade com esta estrutura para trabalhar com mais artistas e para termos mais lançamentos num futuro próximo. Esse é um dos objectivos, sem dúvida. Ainda não é um objectivo tornar o projecto sustentável, tendo em conta a forma como trabalhamos, mas quem sabe possa ser algo que se venha a tornar realidade. Acho que temos de crescer mais e editar mais e trabalhar com mais artistas para atingir um cenário desses.
Apesar de, como falávamos há pouco sobre identidade, existirem imensos projectos e artistas de que até podes gostar mas que se calhar achas que não se enquadram na linha da Biruta. Ou, porventura, talvez até faça sentido abrir um pouco o espectro agora que o objectivo passa por crescer.
Sim, acho que é importante deixar claro… Quem olhe para o catálogo actual da Biruta há-de perceber que há uma ligação ao rap. Contudo, diria que esse também é um outro objectivo: poder abrir mais o leque de opções e, no fundo, ir ao encontro daquilo que são gostos pessoais. Como consumidor, eu gosto de muitas outras coisas. E mesmo esta ligação de ben yosei…
Que é um artista diferente.
É um bocado um abrir de portas. Mal ouvi, em 15 segundos percebi: faz sentido ele estar na Biruta. Adorei logo, por vezes não é preciso muito tempo para se criar uma conexão. E é quase uma coisa por intuição, perceberes que faz sentido. E neste disco do ben yosei senti uma ligação: uma forma de portugalidade que em parte também vem em sequência de outra forma de portugalidade que o Riça apresentou no disco dele; e fez-me sentido dar essa continuidade com o disco do ben yosei. Em termos estéticos, sonoros, estamos a falar de um artista que claramente é exploratório, que trabalha muito as texturas, acaba por ser uma cena muito mais atmosférica, noise, meio lo-fi, ao mesmo tempo uma pop experimental, e espero que isso também dê um sinal de algo que também é um objectivo nosso, que é expandirmos e editarmos artistas de diferentes géneros. Os lançamentos que teremos, independentemente do género musical, terão sempre aqui algum tipo de fio condutor. E às vezes não é uma coisa fácil de explicar, nem eu sou capaz.
E estás muitas vezes embrenhado nesse processo de ouvir constantemente música nova, de artistas emergentes? Vais estando muito atento?
Diria que acaba por ser um processo muito natural, e também já de muitos anos. Sem dúvida que a minha maior paixão é continuar a descobrir novos projectos. Sejam nacionais ou internacionais, estou sempre numa procura constante. Mas já acontece de uma forma natural. E os projectos que me chegam acabam por surgir, por vezes, por referência. Ou seja, há uma procura activa, mas também há sugestões. E no caso do ben yosei… Deixa-me só referir a influência que o zé menos teve naquilo que a Biruta se tornou e naquilo que editou nos últimos anos, porque ele teve um tremendo impacto em estúdio e em termos criativos, na ajuda que deu a outros artistas e em referenciações. Ou seja, o zé foi absolutamente fulcral para aquilo que a Biruta foi nos últimos anos. Desde o lançamento dele a redoma, porque trabalhou com elas em estúdio, no trabalho do Riça, e o ben yosei também chegou por referência do zé menos. Mas de uma forma indirecta. Ele simplesmente partilhou sobre o disco dele, nem é uma coisa que ele faça assim tantas vezes, e quando ele partilhou obviamente deixou-me muito curioso porque sei que ele é uma pessoa que também tem um extremo bom gosto musical. E não me enganou [risos]. Isto para dizer que também gosto muito de como as coisas chegam de uma forma natural. E acho que isso tem dado frutos.
Qual é a importância que dás nos dias de hoje às edições físicas? Vocês sempre apostaram muito nelas, e até em formatos diferentes.
Acima de tudo, o grande valor da edição física e da razão pela qual eu gosto de termos esse cuidado, e muitas das vezes com algum elemento especial, é porque falamos de algo que marca tremendamente a memória das pessoas. Quando realmente gostam de um projecto, continuam a ter uma grande ligação ao objecto. Essa é a grande razão para termos esse carinho e cuidado. Acho que não há o mesmo impacto se a música apenas circular digitalmente, acho que o objecto marca algo de muito mais importante na tua memória, que associas a um determinado momento da tua vida, o que seja. Continua a ter muito valor. Além disso, as edições físicas e merch continuam também a ser o veículo para um apoio mais directo e de maior retorno por parte dos fãs aos artistas. A verdade é que ouvir as músicas através das plataformas digitais é um meio acessível, mas o contributo ou rendimento que vem daí para os artistas é ainda residual.
Fala-me do evento dos 10 anos. Tiveste logo a ideia de celebrar desta forma?
Sim, sem dúvida. A partir do momento em que pensei que faria sentido fazer essa celebração dos 10 anos — o número redondo é obviamente uma desculpa para o fazer —, no fundo queria muito marcar um ponto com um evento onde se pudesse mostrar a todos os artistas activos e com quem estamos actualmente a trabalhar na editora. Em vez de repescar o passado, queríamos reforçar aquilo que estamos a fazer no momento. Embora o cartaz, mesmo a palete de cores escolhida, remeta para a primeira edição, dos Ollgoody’s. Há essa referência. Mas queria que isto acontecesse para marcar num ponto temporal aquilo que a editora está a fazer: aos 10 anos, nós estamos a fazer isto. O que virá para a frente, logo se verá.
E o que é que aí vem da Biruta?
Tirando a edição física do ben yosei, que estará disponível pela primeira vez no dia do evento, vem aí o EP do zé menos produzido pelo Pedro, O Mau. Não temos ainda uma data definida, mas é certo que vai acontecer. Eventualmente teremos também novo projecto das redoma, mas esse não consigo mesmo adiantar muito, não é um assunto fechado. E vamos começar também a trabalhar com o Stray. Ele vai ter muito em breve um primeiro single de um disco que irá lançar, que não tem ainda data fechada. Isso deverá acontecer muito em breve, neste primeiro trimestre.
Riça: “Este é o meu disco biográfico, com a minha sonoridade. Foi um processo de cura”