“Que se fodam as rimas/ Se fizer mais uma, que ninguém me leve a sério/ Que eu sou incongruente e…/ Não sigo nenhum critério”. Conselho: ao contrário do que afirma Carolina Viana em “esventrada pt2”, acreditem em tudo aquilo que ela diz ou canta, rima e declama, sussurra. Porque há, em boa verdade, um critério fundo naquilo que se escuta em parte, estreia da dupla redoma na portuense Biruta. Além de Carolina ouve-se também Joana Rodrigues. E se a primeira assume o microfone depois de ter formalmente estudado violoncelo durante anos, a segunda não teve dúvidas em trocar a guitarra clássica, instrumento a que devotou igualmente anos de académica formalidade, pelas ferramentas digitais com que acredita ser capaz de melhor expressar o que lhe vai lá dentro, aos encontrões entre os neurónios e aquela outra filigrana luminosa a que às vezes chamamos alma.
parte é uma estreia tão auspiciosa quanto inesperada já que nesta era da Internet em que toda a gente expõe, passo a passo, os produtos da sua criatividade, nenhum sinal prévio nos foi oferecido que permitisse antever o que agora se materializa. Uma tranquila, refinada e altamente personalizada visão de uma música que ainda tem pulso hip hop, que aceita ecos semi-fragmentados de alguma moderna electrónica lo-fi e de um jazz longínquo e que poética e verbalmente parece buscar os seus azimutes entre algum rap mais confessional, uma clássica escola de spoken word e a timidez sussurrante de alguma folktrónica. Tudo junto rende algo que não é assim tão comum nestas partes, devidamente protegido por uma redoma que é tão natural no seu delicado brilho quanto conceptual na forma como foi gizada.
Canta ainda Carolina, em “condição”: “tive a sorte de ser branca ou o azar de ser mulher/ a fortuna de ser pobre e de não me deixar corromper”. É mais do que óbvio que ela acredita no que diz. Mais até: ela depende de ser capaz de dizer o que diz, de soltar palavras que são tão honestas quanto urgentes, sinais de um tempo em que conquistar lugar de fala é aproximar-se um pouco mais da dignidade.
Juntas, Carolina e Joana – nomes tão normais e vulgares que aqui quase adquirem dimensão de simbólicos arquétipos – criam arte que é um eco deste tempo, mas com refinamento suficiente para ser capaz de reclamar uma lasca de futuro. Dizem-nos elas, com sinceridade desarmante: “Aquilo que queremos dizer é que há muitas lutas enquanto mulheres. Acima de tudo, não queremos sentir que estamos a lutar pela mulher, mas sim pela individualidade de cada um. Não queremos ser vistas como ‘as mulheres que estão a lançar um EP’, mas antes como ‘pessoas que têm algo a dizer e que, por acaso, são mulheres e também reconhecem essas lutas’”. É justo. E não é coisa pouca. Elas dizem que é parte. Nós podemos aí escutar um todo. Porque em pouco mais de 14 minutos que chegam para estender meia dúzia de válidas canções elas alcançam bem mais do que muitos que andam há anos a atirar palavras ocas ao vento. Por vezes, mais vale guardar as ideias na redoma, de facto.