Eu e os YAKUZA temos uma longa relação parassocial. Tudo começou numa sala de conferências no Centro de Congressos do Estoril, que em março de 2022 abria portas para mais uma (que seria a última) edição do festival ID_NOLIMITS. Quem já me conhece (e também leu aquilo que escrevi sobre o concerto da banda há uns meses em Paredes de Coura) já ouviu esta história várias vezes. Mas há uma boa razão para isso: no sítio mais improvável de todos, tinha descoberto um grupo com o qual ficaria obcecado até hoje. Ainda eram tempos de AILERON, disco de estreia do grupo lançado em 2020, que tem tanto de groove, dance music e UK jazz, como tem de português e lisboeta, e além disso, de nostálgico. No primeiro caso, basta relembrar o nome da quarta faixa, “PICHELEIRA”. No segundo, através de uma linha identitária que remete para soundtracks de videojogos que qualquer amante de carros já jogou, em especial Gran Turismo. Não é por acaso que o carro que protagoniza o videoclipe de “TUNING” é um Toyota AE86 Sprinter Trueno, ícone do jogo.
É escusado dizer que estava entusiasmadíssimo para o seu segundo projeto, 2, que ironicamente tem muito pouco de sequela. “Penha”, que viríamos a ter o prazer de ouvir no final de maio, não se assemelhava minimamente ao que se estava à espera: era muito melhor. Saíamos, oficialmente, do reino do UK jazz e das influências nipónicas da banda, e entrávamos num universo construído a dedo por Afonso Serro, AFTA3000, Pedro Ferreira e Pedro Nobre. Apresentado este novo domínio, como que guiados pelo morador de um bairro que o conhece como a sua palma da mão, fomos para “Batota”, que o alimenta. Relembraram-se depois “Truque di Mente” e “Partido Alto”, já presentes no seu álbum ao vivo no Festival Iminente em 2022, e que efetivamente acabariam neste novo projeto, lançado no final de outubro. Ouvi-o logo na data do seu lançamento, e rapidamente apregoei a quem me quisesse ouvir que o considerava o álbum português do ano. Como poderia eu não o dizer, quando além das quatro que já conhecíamos mais formalmente, ainda se escondiam neste álbum músicas como “Manilha” ou “Aida”. Estas encontram-se mais claramente na esfera de influência do jazz, mas mantendo o espírito caótico rockstar já familiar aos que acompanham os YAKUZA, e elevadas por parcerias com os saxofonistas Miguel Valente e João Mortágua, além do trompetista Diogo Duque.
No passado sábado, dia 30, na Galeria Zé dos Bois, em vez de Pedro Nobre, foi Luís Possollo que tomou conta da percussão. E por mais que não se possa subestimar a capacidade do primeiro na bateria, também não de pode dizer que alguma vez tenha partilhado um espaço com um baterista tão impressionante como o segundo. Robótico na consistência, mas absolutamente orgânico na entrega e incrivelmente criativo nas escolhas, ao se ver Possollo em cima de um palco não se espera menos que perfeição — da maneira que só ele sabe entregar. Desde os seus drum fills a redefinir o contexto de “Batota”, ao momento em que, a meio de “Manilha”, e sem qualquer aviso, toca um break completamente genérico em 4/4, mas de tal forma que cria uma camada de sincopação inacreditável, é tão rockstar como o resto dos elementos da banda. A certo ponto, até começamos a duvidar se ele alguma vez acusa o cansaço, ao vê-lo fazer solos em double-time em cima de “Penha”, de cigarro na boca. Citando AFTA3000 na entrevista de YAKUZA ao Rimas e Batidas em antecipação a este concerto, ele toca “com força”. No fundo, tudo o que ele pretende é a brincadeira e o inesperado, trocando o passo aos que o assistem na plateia. Mas não deixa de ser unha com carne em palco com o resto dos elementos da banda: lembramo-nos logo do back and forth impromptu com AFTA3000 em “Partido Alto”.
Porém, só nos fiando nas efusivas indicações de Afonso Serro, podíamos erradamente considerar que o concerto não estava a ser smooth sailing (e talvez, nas cabeças deles, não tenha sido). Mas esse é o típico comportamento do teclista e frontman em espírito do grupo. Ele é um verdadeiro maestro em palco, que reclama com os outros músicos se tiver de ser (provavelmente aquilo que mais nos relembra que estamos num concerto de jazz, se nos basearmos nos mitos em volta do género). Da mesma forma, é um DJ, escolhendo o momento certo no qual deve quebrar o loop e dar algo mais à plateia. Como é óbvio, isto seria impossível se o próprio não estivesse também completamente sintonizado com o seu instrumento e os seus colegas. Afinal, se falarmos de momentos melódicos de pura irreverência ao longo do concerto, perto da totalidade deles nascem das mãos de Serro e da sua capacidade intrínseca de coser acordes dissonantes e fazê-los soar como escolhas óbvias e sem qualquer tipo de risco envolvido.
Sentimos uma certa desilusão durante a interpretação de “Penha”, cujo valor, em disco, está na forma como não nos dá tempo para digerir sequer o que está a acontecer, a saltar de ideia em ideia. Em concerto, a par da filosofia clubbing muito ciente nas performances da banda, perde um pouco desse gravitas. Em contrapartida, o arranjo de “Truque di Mente” deste concerto merecia substituir o que está presente no trabalho ao vivo no Iminente. Na versão inscrita em 2 há um claro clímax: a aceleração introduzida com a melodia house-inspired que quebra com a dinâmica anterior, que faz lembrar o soundtrack dos níveis aquáticos do Super Mario. Na sala abafada da ZDB a história alterou-se: não houve um único momento dos 10 minutos pelos quais essa música se estendeu em que não se sentisse o êxtase geral do público. Outro ponto igualmente alto foi o fim do concerto, com “Partido Alto”, em que se saltou à corda com a linha ténue entre testar os limites do ritmo e da sincopação e o descarrilamento. Mas já não é novidade nenhuma que os YAKUZA são verdadeiros peritos do drift, tão facilmente nos conduzindo por estrada tão sinuosa e sem espaço para erro à la Circuito do Mónaco, como ligando o cruise control e atingindo os 300 quilómetros à hora com a sua música.
Potencialmente o momento mais poético e que melhor sumariza o que sentimos em relação ao concerto acontece quando Pedro Ferreira é visto já a arrumar cabos em “Partido Alto”, e a meter as mãos na cabeça, tão incrédulo com o que ouve como os que olham para ele. Neste concerto de YAKUZA, podíamos “dividir” a banda em quatro e ficar estupefactos com o virtuosismo de cada elemento em separado. Mas também sentimos que as suas individualidades se transformavam muito bem ali, numa só entidade, tal é a compreensão mútua por parte de qualquer um dos músicos. A única coisa que resta é desejar boa sorte a quem tentar voar tão alto como o grupo, porque no passado dia 30 de novembro a banda elevou (e muito) a fasquia.