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Fotografia: Paulo Pacheco
Publicado a: 20/04/2024

Guimarães vibrou com concertos de Júlia Mestre, Bardino ou Riça.

Westway Lab’24: possíveis amanhãs numa cidade com tempo

Fotografia: Paulo Pacheco
Publicado a: 20/04/2024

Pensar em eventos focados na música não é coisa fácil, certamente, tanto que há a ponderar e organizar para que tudo corra de acordo com uma certa visão, uma certa intenção. E essa pode, muito simplesmente, ser a venda de bilhetes. Mas há outras razões para se desenhar um cartaz: sentir o pulso ao momento, impulsionar uma determinada cena, colocar artistas em rota de colisão uns com os outros, com novos públicos ou com o futuro. É por aí que passam os azimutes do Westway Lab, evento que chegou à sua 11ª edição em Guimarães, cidade tranquilamente agitada pela criatividade e bem diferenciada pelo tempo.

O Westway Lab decorreu entre 10 e 13 de Abril e apresentou ao público e a profissionais uma conferência com diversas comunicações e debates em torno de direitos e oportunidades, falou-se do presente e futuro da rádio pública, da cooperação a nível ibérico, de algoritmos e do valor da música, entre vários outros assuntos. A ideia é partilhar experiências, transmitir saber e dotar artistas, agentes e outros profissionais das ferramentas necessárias para navegar um mundo cada vez mais digital, mas não só. No Westway Lab também havia discos e livros e pessoas. A indústria pode ser digital, mas nós ainda somos todos de carne e osso.

O que levou o Rimas e Batidas a mais esta edição do “certame” que anualmente decorre na “cidade berço” foi o cartaz musical, concentrado nos dias 12 e 13. E regressar a Guimarães é regressar a uma cidade onde fomos sempre muito felizes: desde a programação Manta do Centro Cultural Vila Flor (CCVF) ao Mucho Flow e daí ao Guimarães Jazz há muitas razões para se regressar regularmente a este lugar especial. Mais ainda: percorrer as ruas da cidade é sentir a vibração particular de uma população jovem, ligada, interessada em desfrutar daquilo que esse lugar oferece a nível cultural. Estes eventos não são apenas para quem chega, são, sobretudo, para quem está.

À chegada ao CCVF percebia-se imediatamente a ideia do “laboratório” que por aqueles dias estava montado pela cidade. O que os cartazes espalhados pelas ruas prometiam, com um foguetão a acentuar a ideia propulsiva do programa, o espaço central do evento cumpria: a Antena 3 tinha estúdio montado no recinto — e quem assina estas linhas teve por uma das suas missões na ocasião gravar nova emissão de Precisamos de Falar juntamente com o companheiro habitual Luís Oliveira e com os convidados especiais Rui Torrinha, pessoa que dirige a equipa que pensa e executa o Westway Lab, e ainda Susana Costa Pereira, do Gabinete do Europa Criativa em Portugal —, espaço de porta aberta e sistema de som voltado para a rua por onde foram passando os diferentes artistas do cartaz para conversas sempre reveladoras e que se traduzem também em momentos em que as barreiras entre artistas e público são sem grande alarido derrubadas; havia igualmente uma feira com bancas recheadas de grandes títulos em vinil (Lovers & Lollipops, Wasser Bassin) e uma excelente banca de livros focados em música da Livraria Snob. Da Wasser Bassin vieram dois volumes de um compêndio de música experimental portuguesa. E da Snob duas excelentes adições a qualquer biblioteca: Fado Tropical, de Marcos Cardão, e A Construção Sonora de Moçambique, de Marco Roque de Freitas.

Na troca de ideias com Rui Torrinha durante a gravação do programa da Antena 3 ficou claro que este é um evento com pensamento estruturado e consolidado na sua base, que resulta de larga experiência e conhecimento acumulado, nomeadamente através da cooperação com diferentes plataformas nacionais e internacionais. Para Torrinha, o Westway Lab é um “certame” — como foi de forma bem-disposta apelidado durante a conversa — desenhado para impulsionar mentes criativas, que assume um compromisso com a arte, com os artistas, com a cidade e sobretudo com o futuro. Algo essencial nos dias que correm.

Na primeira jornada de concertos, o Westway Lab propôs apresentações em modo showcase de Luís Severo, Bardino, Silly, Riça e Capicua — nomes bem familiares dos mais atentos leitores do Rimas e Batidas. Os concertos decorreram sempre perante público presente em número generoso, em diferentes espaços do CCVF e com diferentes configurações: Severo subiu ao palco do Auditório, com público disposto na plateia pronto a sorver o que nos tinha para cantar ao ouvido; Bardino e Riça apresentaram-se no sempre agradável espaço do Café Concerto; e Silly e Capicua tocaram na Box, ou seja o palco do auditório a servir igualmente como plateia para gente em pé, outra forma de experimentar a música, mais próxima e intensa. O programa está desenhado para que se possam conferir todas as actuações, sem sobreposições que obriguem a fazer escolhas, facto que, pois claro, se agradece. E, mais importante ainda, se aproveitou.



Uma palavra particular para o concerto dos Bardino, grupo que recentemente editou Memória da Pedra Mãe na portuense Jazzego e que levou até ao palco do Café Concerto os convidados Brian Blaker (saxofone) e Minus&MRDolly (voz). Rui Martins (teclados), Diogo Silva (baixo) e Nuno Fulgêncio (bateria) deixaram claro que o que se escuta no trabalho que acabam de lançar tem perfeita declinação ao vivo e que são experientes gestores de tensão, com domínio absoluto de um groove de projecção cósmica que empolgou os presentes. O concerto dos Bardino será, aliás, emitido já amanhã no programa Notas Azuis da Antena 3.

O segundo dia da “expedição” Rimas e Batidas ao Westway Lab foi preenchido, em primeiro lugar, com novo mergulho na cidade, que implicou visita ao incrível espaço do Centro Internacional de Arte José Guimarães, passagem pela fantástica loja/galeria 9 Séculos e, pois claro, repasto num dos lugares tradicionais da cidade, no caso a simpática Adega dos Caquinhos.

E com as baterias recarregadas, enfrentou-se o segundo dia do programa de concertos que proporcionou a oportunidade de aplaudir Remna, Sónia Trópicos, Grand Sun, debdepan, J.P. Coimbra, Corvo, Melquiades, Franek Warzywa e Moody Budda e, para uma arrancada final fulgurante, Júlia Mestre, Conferência Inferno, UTO, Unsafe Space Garden e NewDad. O sábado implicou um alargar de passos pela cidade, já que os showcases decorreram em espaços como o Oub’Lá, Ramada 1930, Tribuna SM CAE, Convívio, CAAA e CCVF. 

Com um pendor mais internacional, esta derradeira e também mais longa etapa do Westway Lab teve como ponto alto o privilégio de proporcionar um segundo encontro com a artista brasileira Júlia Mestre depois de um fantástico concerto um par de dias antes em Lisboa. Em dois dias e espaços diferentes, perante públicos igualmente bem distintos, a cantora e compositora que também integra o colectivo Bala Desejo soube navegar um mesmo reportório com outras nuances, na forma como dialogou com o público vimaranense — e é sempre interessante descobrir as histórias que fazem nascer canções — mas também nos temperos que nessa noite usou nas suas interpretações. Intérprete dotada, a artista de Arrepiada arrepiou-nos, de facto, com as canções despidas até ao tutano do seu violão, com uma voz límpida, redonda e cheia do mesmo calor que sabemos existir no Brasil, numa viagem demasiado breve para a sua grandeza, mas que comprovou que se vive mais um extraordinário momento de alta criatividade na Música Popular Brasileira (e alguma vez não foi assim?). Os fartos aplausos que a premiaram foram, obviamente, mais do que justos.

Da experiência Westway Lab em 2024 retira-se este incrível apelo de futuro, com uma série de apresentações musicais que atestam o alto nível de inspiração da música que por cá se inventa todos os dias, mas que também sabe escutar de forma atenta aquilo que chega de fora. Do mundo que aterra em Guimarães retiram-se depois novas possibilidades, ideias e exercícios que podem, como sugere o título do disco de Júlia Mestre, arrepiar caminho até novos lugares de invenção genuína. É assim nos laboratórios: de teste em teste procura-se o que há-de ser. E assim foi.


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