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Publicado a: 06/10/2016

Como fazer um videoclipe sem dinheiro: a propósito da videografia musical de Rui de Brito

Publicado a: 06/10/2016

[TEXTO] João Pedro da Costa [FOTO] Direitos Reservados

Da MTV para o YouTube: a convergência dos vídeos musicais é o novo livro de João Pedro da Costa e a apresentação em Lisboa acontece hoje, no PARK, seguindo-se DJ sets com escolhas do autor, de Rui Miguel Abreu e de Gijoe. Para os mais curiosos, o Rimas e Batidas revela o capítulo do livro sobre Rui de Brito, realizador que trabalhou com Boss AC ou Sam The Kid nos seus registos audiovisuais. Sem mais demora, o excerto, para vos abrir o apetite para a apresentação que acontece no Park, Calçada do Combro, em Lisboa, a partir das 19h30: 

 


Pede uma câmara de vídeo a um amigo

Não é fácil sobrestimar a importância do vídeo de “Feeling Alive” (Gomo, 2004) na história do videoclipe em Portugal. Recordo pessoalmente esse surgimento: de repente, vindo do nada, caía do céu um objecto videomusical que conseguia despertar a minha curiosidade não apenas para a música e um protagonista que me eram desconhecidos, como para quem teria estado por detrás da sua realização. Quando descobri (com uma surpresa que seria pouco honesto estar aqui a escamotear) que se tratava de uma produção nacional, a contextualização do clipe realizado por Rui de Brito alimentou ainda mais o meu fascínio. Para além de estar na presença de um meta-vídeo que orbitava em torno da sua própria concepção (género manifestamente arrojado e raro em Portugal), o clipe de “Feeling Alive” representava não apenas uma absoluta negação do discurso que ainda hoje persiste em ser o da maioria dos realizadores nacionais (o lamento pela falta de meios e apoios), como demonstrava com fina ironia que essa falta de recursos poderia ser utilizada como um trunfo muito eficaz para a concepção de um vídeo musical: pá, se não tens uma câmara de filmar, não há nada como pedi-la emprestada a um amigo. Assim, não estamos perante um mero do it yourself, mas de um metaléptico do it yourself about doing it yourself. De resto, é essa mesma concepção do vídeo que fazia de Gomo um reflexo especular, um duplo, um semblable, do próprio realizador. Arrisco aqui, sem rede, uma primeira metáfora (e não é por acaso que ela é cinematográfica): salvas as devidas distâncias, Paulo Gouveia é para Rui de Brito aquilo que Jean-Pierre Léaud foi para Truffaut. E Gomo é, como não podia deixar de ser, o seu Antoine Doinel.

Escolhe o sítio ideal

Sempre sem rede: Rui de Brito é o realizador português de videoclipes que possui uma noção mais aguda do que é uma obra, legitimando assim o seu estatuto de autor. Isto é: a sua videografia constitui um projecto audiovisual autêntico, uno e coerente, com princípio, meio e fim, onde cada clipe funciona como parte integrante de um todo orgânico, cujos elementos estabelecem entre si um permanente diálogo na construção de uma visão autoral das possibilidades criativas e conceptuais que representam um videoclipe. O primeiro e mais visível indício dessa configuração canónica do trabalho de Rui de Brito está na definição do espaço. Para ele, um sítio ideal corresponde a um local interior, fechado e não raras vezes subterrâneo (não será por acaso que a sua produtora se chama SubFilmes). É como se a câmara de Rui de Brito sofresse de uma manifesta agorafobia, cujos sintomas são desde logo evidentes nas primeiras imagens do seu vídeo de estreia, onde um travelling faz deslizar o nosso olhar para o interior de uma casa (“Rollercoaster”, Austin, 2001). Os exemplos desta configuração claustrofóbica do espaço sucedem-se em catadupa: ele é quartos (“Feeling Alive” e “I Wonder”, Gomo, 2005), corredores (“Rollercoaster”), escadas de emergência (“Poetas de Karaoke”, Sam The Kid, 2006), parques de estacionamento subterrâneos (“Hip Hop”, Boss AC, 2005), asilos (“Shine On”, Blind Zero, 2005) e outros espaços hermeticamente isolados como estúdios de gravação (“Luz Vaga”, Mesa, 2004) ou estúdios de rádio e de televisão (“Poetas de Karaoke”). Mesmo os raros espaços exteriores que surgem na obra de Rui de Brito remetem sempre para ambientes disfóricos e marginais que de certa forma legitimam essa agorafobia estética, caso da Nova-Iorque soturna e pós-11 de Setembro de “My Explanation” (EZ Special, 2005), do gueto sob um céu carregado de finitude em “Que Deus?” (Boss AC, 2007) ou do cemitério em “Funeral” (spot publicitário para a União Zoófila, 2006). No entanto, é naquela que considero ser a sua obra-prima (“Quem Me Leva Os Meus Fantasmas?”, Pedro Abrunhosa, 2007) que esta configuração atinge o zénite: quem melhor do que os sem-abrigo, que procuram incessantemente o limiar dos espaços interiores como refúgio, para transmitir essa ânsia por paredes e tectos?

Arranja um leitor de CDs para o playback e desliga sempre o telemóvel

Lembrete: um videoclipe é sempre um objecto artístico de 2.º grau que tem de incorporar na sua tecitura (nem que seja através da montagem de imagens não filmadas especificamente para esse fito) um outro objecto artístico pré-existente. Esta tensão entre imagens e som é um dos capítulos mais fascinantes da história do género e possui uma vasta tipologia que vai da total subordinação ao mais despudorado alheamento (como é óbvio, não existe qualquer correspondência entre esta escala e a qualidade estética de um videoclipe). A videografia de Rui de Brito constitui um autêntico catálogo destas diversas possibilidades, sendo possível encontrar exemplos em que as imagens mimam a música (caso do vídeo performativo de “Luz Vaga” e do lip sync de “Count The Stars” (Levi, 2004)); a música concorre com o som ambiente do local em que as imagens foram filmadas (“Rollercoaster”, “My Explanation” e “Hip Hop”); a música é interrompida pelos mesmos elementos sonoros (“Rollercoaster”, “Feeling Alive” e “Poetas de Karaoke”), e até um exemplo em que a música parece estar renegada a um estatuto de mera banda sonora (“Shine On”). Apesar de todas estas evidências acrescentarem uma assinalável heterogeneidade à obra de Rui de Brito, a verdade é que todas têm como origem a intromissão do realizador, através de um gesto desconstrutivista, na relação confortável do espectador com as imagens e os sons. Se esse gesto é flagrante em muitos dos seus clipes (veja-se o famoso toque de telemóvel em “Feeling Alive”, a voz off de “Shine On” ou o cameo de Gomo em “Poetas de Karaoke”), há casos em que esta desconstrução atinge uma subtileza digna dos melhores vídeos conceptuais de Spike Jonze (uma indisfarçável influência). Veja-se, por exemplo, a forma como o estatuto de primeiro vídeo de uma banda é integralmente desconstruído com a intromissão aleatória de diversos figurantes, num clipe que, por convenção, deveria servir para apresentar os elementos da banda (“Count The Stars”) ou a forma como a legendagem em Português das palavras cantadas pelo vocalista dos EZ Special acabam por, no final do vídeo, transcrever as palavras inaudíveis de uma personagem pertencente à trama do vídeo (“My Explanation”). A forma como Rui de Brito defrauda os horizontes de expectativa dos espectadores é, sem dúvida, um dos elementos fundamentais e unificadores da sua obra. E uma das suas mais significativas marcas autorais.

Usa a iluminação que tiveres à mão e corrige os níveis de cor

O trabalho de iluminação nos clipes de Rui de Brito está, como não podia deixar de ser, intimamente relacionado com a sua concepção claustrofóbica de espaço. A luz solar não apenas é secundarizada como a iluminação é quase sempre escassa (“Rollercoaster”, “Hip Hop”), a palete de cores extremamente reduzida e pós-produzida (“I Wonder”, “Shine On”, “Quem Me Leva Os Meus Fantasmas?”), não sendo por isso de estranhar a utilização de fundos negros e do preto e branco (“Count The Stars”, “Luz Vaga”, “Que Deus?”).

Decora o espaço à tua maneira

Um palimpsesto é uma página manuscrita, pergaminho ou livro, cujo conteúdo foi apagado, mediante lavagem e raspagem, e escrito novamente, sendo no entanto possível vislumbrar indícios do primeiro texto. Este exercício de reciclagem medieval (que equivale a uma redecoração de um suporte visual) é aplicado de forma muito produtiva e original na videografia de Rui de Brito: é quase sempre possível detectar na sua obra um determinado código audiovisual sobre o qual vai ser inscrito a própria linguagem do videoclipe. É o caso das televendas (“Count The Stars”), dos vídeos didácticos (“Feeling Alive” e “I Wonder”), do cinema (já lá iremos), do documentário (“Shine On”), da publicidade (“I Wonder”), dos espaços noticiosos e dos directos televisivos (“Poetas de Karaoke”), dos circuitos fechados de televisão (“Shine On” e “Poetas de Karaoke”) ou ainda das campanhas de sensibilização social (“Quem Me Leva Os Meus Fantasmas?”). Esta configuração do videoclipe como palimpsesto é ainda mais notória numa das imagens de marca de Rui de Brito: a sobreposição dinâmica de caracteres tipográficos, que atinge uma sofisticação notável no tantas vezes copiado (mas nunca suplantado) “Luz Vaga”. É curioso verificar que o ciclo da utilização quase obsessiva deste artifício viria a fechar-se, na sua obra, de uma forma extremamente subtil e original com a transposição da sua dinâmica para os grafitos que povoam o vídeo de “Que Deus?”.

Põe a câmara em film mode e coloca a imagem em formato cinemascope

A relação da videografia de Rui de Brito com o cinema é evidente, mas também se presta a equívocos. É inegável que se podem detectar diversos indícios desta relação como a inclusão gráfica do indicativo 555 em “Count The Stars”, no cinemascope look de diversos vídeos, e mesmo na referência concreta a alguns filmes, como é o caso de Lost Highway (David Lynch, 1997) em “Rollercoaster”; Ringu (Hideo Nakata, 1998) em “Shine On”; Fight Club (David Fincher, 1999) em “I Wonder”; 8 Mile (Curtis Hanson, 2002) em “Hip Hop”; ou Lost in Translation (Sophia Coppola, 2003) em “My Explanation”. Contudo, talvez devido a algumas referências biográficas que são do domínio público (Rui de Brito sempre confessou querer fazer filmes, apesar de não ter conseguido entrar no Conservatório), existe uma tendência abusiva e redutora de interpretar todo este flirt à sétima arte como um desejo do realizador de transformar os seus clipes naquilo que, de facto, nunca poderão ser: cinema. Ora, convém não esquecer que o cinema é apenas uma das muitas linguagens visuais que Rui de Brito utiliza para aí inscrever e desconstruir a linguagem dos seus videoclipes. Isso é, de resto, particularmente evidente na utilização dinâmica das barras verticais preconizada no clipe de “Poetas de Karaoke”, em que o famigerado cinemascópio convive pacificamente com o formato televisivo.

Tens de parecer cool, agir de forma sexy, mostrar que sabes dançar e juntar uma boa dose de loucura

Com a excepção de “Feeling Alive” (num registo irónico) e de “Hip Hop” (com um feeling genuinamente underground), não abundam os momentos eufóricos nos vídeos de Rui de Brito. As suas personagens parecem estar contaminadas (quando não oprimidas) pelo ambiente disfórico do espaço que povoam, formando uma galeria soturna de silhuetas distantes e fantasmáticas corroídas pela fúria (“I Wonder”), a inércia (“Rollercoaster”, “Count The Stars”), a incomunicabilidade (“My Explanation”), a revolta (“Poetas de Karaoke”), a dor (“Funeral”), a tristeza (“Que Deus?”), o vazio e a frustração (“Quem Me Leva Os Meus Fantasmas?”). É particularmente significativo o facto de Rui de Brito ter resgatado Gomo (seu duplo e personagem em “Feeling Alive”, seu único vídeo manifestamente eufórico) para protagonizar um dos raros momentos de humor da sua videografia (“Poetas de Karaoke”). É caso para dizer: Pede aos teus amigos para participarem.

Convida uma miúda gira e escolhe uma roupa com estilo

O facto de Rui de Brito jamais ter realizado um vídeo para uma artista é bem menos sintomático da sua obra do que do panorama musical nacional. Se o videoclipe é pródigo na forma como explora a sensualidade feminina, o cameo da modelo Diana Pereira no clipe de “My Explanation”, dos EZ Special, representa a única vez em que Rui de Brito recorre a uma celebridade do sexo feminino nos seus vídeos. E, mesmo aí, o que motiva a participação da modelo portuguesa não são os seus atributos físicos, mas o seu sucesso internacional (aspiração legítima, mas raramente confessável, de qualquer banda nacional que cante em inglês).

Faz cenas em câmara lenta e usa efeitos especiais

Nos videoclipes, os lugares-comuns prestam-se a todo o tipo de experimentações. Rui de Brito é um dos realizadores portugueses mais parcos na utilização desses maneirismos. Ironicamente, há apenas a registar na sua videografia o fast-forward de um céu coberto de nuvens em “Que Deus?”.

Arranja um final memorável

A videografia musical de Rui Brito foi um fulgurante meteorito que brilhou no panorama audiovisual português num relativamente curto período de tempo (entre 2004 e 2007, se exceptuarmos a estreia para os Austin em 2001) e em pleno crepúsculo da migração do formato para a rede. A inabalável decisão de rematar de forma tão prematura a sua obra videomusical é admirável, não apenas por revelar uma aguda lucidez em relação ao seu projecto artístico para o formato, mas também pelo facto de o seu epílogo (“Quem Me Leva Os Meus Fantasmas?”) ser um vídeo que é igualmente intransigente na forma como força o espectador a ver em grande plano rostos que, no dia-a-dia, não raras vezes nos furtamos a olhar.

Próxima lição: como escrever um ensaio sobre a obra videomusical de Rui de Brito

Os subtítulos que estruturam o presente texto foram retirados (integralmente ou ligeiramente adaptados) dos separadores do vídeo musical realizado por Rui de Brito para o tema “Feeling Alive” (2004), de Gomo.

 


https://youtu.be/NGotywaj8jQ

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