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Publicado a: 03/09/2016

Da MTV para o YouTube: a convergência dos vídeos musicais é o novo livro de João Pedro da Costa

Publicado a: 03/09/2016

Se uma imagem vale por mil palavras, está ainda por determinar o câmbio real entre imagens e sons. Da MTV para o YouTube: a convergência dos vídeos musicais, o novo livro do colaborador do ReB João Pedro da Costa procura responder a estas e a mais perguntas, debruçando-se sobre as mudanças ocorridas no formato fruto da sua migração da televisão musical para a rede:

Complemento supérfluo e desnecessário, veículo de promoção ou ferramenta de marketing, triunfo da imagem sobre o som, anúncio publicitário que incita ao consumo massificado, perpetuador de uma forma particularmente cruel de canibalismo cultural, alienação dos mais fracos e oprimidos, detonador de tragédias humanas, invenção da MTV, presumível suspeito do assassínio de uma estrela radiofónica cujo cadáver jamais foi encontrado, propaganda niilista de contornos fascistas, pornografia semiótica, conteúdo “viral” e, mais grave ainda, objecto artístico – de tudo um pouco já foi acusado o género audiovisual com as costas mais largas desde a invenção da televisão, e que parece ter finalmente encontrado nas plataformas digitais o seu habitat natural.

Se grande parte do livro se baseia num trabalho de investigação académica (tese de doutoramento) que problematiza o modelo “viral” da difusão de conteúdos audiovisuais na rede e as novas tendências videomusicais, a terceira parte inclui uma versão revista de 70 páginas da história videomusical do hip hop originalmente publicada no ReB, análises de clipes de artistas que vão de David Bowie aos Ok Go (tinha de ser, certo?) e ainda textos sobre a obra dos realizadores nacionais José Pinheiro e Rui de Brito. Só lamentamos não terem esperado que a capa fosse toda carregada antes de mandar o livro para a gráfica.

Podem ler de seguida, as primeiras páginas da introdução do livro.

É relativamente comum presumir que a fruição musical é uma experiência meramente auditiva. Na verdade, não é – nem nunca o foi.

Antes da possibilidade de gravação de registos sonoros, a fruição musical implicava sempre a co-presença do(s) intérprete(s) e da sua audiência. Das percussões corporais dos antropoides do Plioceno às lamentações dos bluesmen do delta do Mississippi, passando pelos aedos da Antiguidade ou pelos cantores líricos da ópera italiana, a dimensão visual foi incessantemente uma componente indissociável da fruição musical: ouvir música implicava ver os gestos, as expressões e a encenação performativa dos seus intérpretes. O surgimento da notação musical, cuja história remonta às inscrições cuneiformes da Mesopotâmia, apenas veio modalizar esta íntima relação, na medida em que a leitura de um destes suportes manuscritos ou impressos se destinava sobretudo à sua posterior interpretação perante uma audiência. Mesmo nos casos hipotéticos em que a interpretação fosse solitária ou em que os ouvintes (ou, para ser mais preciso, os espectadores) estivessem de olhos fechados, a percepção musical potencializa uma experiência sinestésica devido à inegável capacidade da música em invocar memórias e imagens na mente dos seus fruidores.

Com o advento da gravação e reprodução de registos sonoros no final do séc. XIX e da radiofonia no início do séc. XX, torna-se pela primeira vez possível uma fruição musical deferida que dispensa a presença dos intérpretes. Não é por acaso que o início da comercialização de pautas musicais no final do séc. XVIII e dos fonógrafos no início do séc. XX constituem os dois momentos mais importantes do surgimento da música popular: ambos desencadearam um longo processo de distribuição da experiência musical (mediatizada num bem económico, produto ou mercadoria) a um grupo cada vez mais amplo e socioculturalmente heterogéneo de consumidores (Tagg, 1982: 41). Enquanto que nos espectáculos ao vivo se acentuava a componente visual da fruição musical com a crescente presença de adereços, guarda-roupa, iluminação e projecção de vídeos em palco, a comercialização de suportes eléctricos (cilindros fonográficos, discos de grafonola e vinis) e electromagnéticos (bandas e cassetes) rapidamente colmatou a potencial ausência de uma dimensão visual com a introdução de uma torrente de imagens através de novos meios que lhes são indissociáveis (Milner, 2009: 3-28). As capas, os inlays, os pósteres, os flyers e todo o tipo de merchandising não apenas são telas altamente codificadas através das quais fotógrafos, pintores, ilustradores e designers gráficos prolongam visualmente uma determinada identidade musical, como se tornariam em componentes fundamentais da fruição da música popular e da definição tribal dos seus fãs ou consumidores.

Paralelamente, a dimensão visual das gravações musicais iniciava um diálogo fascinante com as imagens em movimento. Para além do cinema dito “sonoro” se ter popularizado com um musical (The Jazz Singer de Alan Crosland, 1927), os Soundies (na década de 40) e os Scopitones (nas décadas de 50 e 60) são os primeiros formatos mediáticos expressamente produzidos para conferir uma dimensão audiovisual à música popular em locais tão diversos como bares, clubes noturnos, restaurantes, fábricas e agremiações culturais (Lukow, 1986; Scagnetti, 2010). A curta vida destas efémeras video jukeboxes deveu-se à rápida invasão de um pequeno dispositivo nos lares de um número crescente de consumidores: o televisor (Forman, 2012). Em meados da década de 50, a cultura jovem e, por extensão, o rock’n’roll, tinham adquirido um protagonismo sociocultural que a televisão não podia mais ignorar (Weingarten, 2000: 4). Da primeira aparição de Elvis Presley no The Ed Sullivan Show ao surgimento da MTV distam apenas 25 anos, um período de tempo relativamente curto em que a música popular foi sempre, apesar de inevitáveis ímpetos censórios, consolidando a sua relação com o pequeno ecrã, quer através de programas televisivos de música ao vivo ou em playback, quer através da teledifusão de um formato que foi, pouco a pouco, ganhando a sua própria identidade: o vídeo musical.

Um ano depois de um canal televisivo ter sido criado para transmitir exclusivamente o formato videomusical, a comercialização dos primeiros suportes digitais de reprodução musical representou o primeiro momento em que a até então crescente preponderância da dimensão visual na música popular sofreu o seu primeiro contratempo. Se a diminuição do tamanho das capas do vinil para o CD (de 25x30cm para 12x12cm) não se fez sentir tanto em alguns consumidores é porque, nas décadas de 80 e 90, o vídeo musical viveu a sua época de ouro e movimentou centenas de milhões de telespectadores e de dólares (Ayeroff et al., 2000). No entanto, com o surgimento do formato MP3 e das redes de partilha peer to peer na segunda metade da década de 90, os acontecimentos precipitam-se (Sterne, 2012). O colapso da indústria discográfica força a rede de canais da MTV a rapidamente abandonar um formato que, de um dia para o outro, deixou de ser rentável e as capas e os inlays outrora omnipresentes na fruição musical desaparecem ou vêem-se reduzidos a meros ficheiros jpegs de baixa resolução. Apesar de a fruição musical não ter nunca perdido a sua componente visual, é inegável que, de um momento para o outro, o seu crescente protagonismo sofria um assinalável e inesperado revés.

Foi uma nuvem de pouca dura. Quando muitos proclamavam a morte do vídeo musical, eis que, no limiar do milénio, o formato migra, pouco a pouco, mas de forma decidida, da televisão para a Internet. Com o surgimento das redes sociais e de autênticos vórtices audiovisuais como o YouTube, o vídeo musical torna-se rapidamente no formato mediático mais fruído e difundido nas plataformas digitais. Este renascimento deve-se, em grande parte, ao facto de os utilizadores terem elegido o vídeo musical o formato digital que melhor lhes garante, de forma quase exclusiva e gratuita, uma experiência musical transmediática outrora proporcionada pela acção conjunta de uma série heterogénea e por vezes onerosa de dispositivos. Não causa por isso surpresa que, hoje em dia, o vídeo musical tenda a ser cada vez mais o meio mais utilizado para fruir música, destronando a pretérita hegemonia da rádio e do CD. Um momento emblemático desta evolução ocorreu em Fevereiro de 2013, quando a Nielsen começou a contabilizar as visualizações dos vídeos musicais no YouTube no algoritmo da tabela Hot 100 singles da Billboard: alguns nativos digitais poderão ignorar o que é um single, mas todos sabem bem de mais o que é um “vídeo musical”.

Do alegado assassínio de uma estrela radiofónica (cujo cadáver continua desaparecido) à acusação de ser portador de uma sintomatologia “viral”, é hoje em dia inegável que os vídeos musicais não apenas sobreviveram à viragem da MTV da televisão musical para os reality shows, como se tornaram no mais consumido e partilhado formato da emergente paisagem mediática digital. Como afirmam Henry Keazor e Thorsten Wübbena, o cinema, as séries televisivas, os videojogos, a literatura, a política e a publicidade acolheram a sua influência, nomeadamente nas suas estéticas, estratégias narrativas, universos visuais e tecnologias, o que demonstra que o formato continua a levar a cabo o que nunca deixou de fazer nas últimas décadas: procurar todo o tipo de fontes de inspiração, fazer algo de novo com elas e consequentemente influenciar-se a si e a outros formatos mediáticos (2010: 7-19). Outros autores, como Carol Vernallis, vão ainda mais longe e defendem que a videomusicalidade não apenas é precursora das novas formas rítmicas de tratamento espácio-temporal dos conteúdos mediáticos digitais, como é possível encontrar nela ecos de experiências contemporâneas como a aceleração do ritmo do trabalho, o desempenho de multitarefas (multitasking) e a ausência de planeamento laboral atempado (just-in-time labor), dando origem a uma nova literacia digital que pode ser encarada como uma forma de os indivíduos lidarem com os atuais desafios da sociedade em rede com maior elegância, preocupação e conhecimento (2013: 277-278). É por isso que o prestigiado Museu da Imagem em Movimento de Nova Iorque acolheu, entre Abril e Junho de 2013, uma gigantesca exposição multimédia sobre a arte e a história do vídeo musical: para quem teve a oportunidade de a ver, Spectacle foi uma eloquente demonstração da influência histórica do formato na cultura contemporânea.

Desta forma, estudar a convergência dos vídeos musicais na rede é sobretudo descobrir e articular os indícios desta fascinante odisseia humana pela fruição musical que, desde os primórdios, sempre consistiu numa experiência simultaneamente intermediática e multissensorial, e, claro está, contribuir para escrever o mais recente capítulo da sua história. Foram estes os principais objectivos que guiaram a feitura do livro que têm nas mãos.

 


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