pub

Fotografia: Vilde Mikkelhaug, Signe Fuglesteg Luksengard, Helge Brekke & Torgeir Rørvik
Publicado a: 18/09/2023

Exploração e arte sonora.

Ultima’23: uma plural celebração da contemporaneidade em Oslo

Fotografia: Vilde Mikkelhaug, Signe Fuglesteg Luksengard, Helge Brekke & Torgeir Rørvik
Publicado a: 18/09/2023

O Ultima – festival focado na música contemporânea que decorre em Oslo, Noruega – é um evento veterano que este ano chega à sua 32ª edição. Ao longo de 10 dias (de 14 a 23 de Setembro) preenchidos com uma programação diversa, o Ultima oferece concertos em diferentes localizações, performances multi-disciplinares, instalações, workshops, talks… A ideia é apresentar a multiplicidade da música contemporânea num programa ambicioso que se estende da mais exploratória sound art até à mais popular música orquestral para cinema. Ou seja, da instalação de Kathy Hinde que nos revela os sons subaquáticos que existem nas fontes do parque de Klosterenga até às apresentações da Orquestra Filarmónica de Oslo a tocar reportório de Hans Zimmer (espectáculos programados para o Oslo Konserthus nos próximos dia 20, 21 e 22 e que se encontram já esgotados), há lugar para (quase) tudo. Até para um encontro da celebrada cantautora indie Jenny Hval com os veteranos da cena de extreme metal Enslaved.

A edição 2023 do Ultima acolheu uma importante participação portuguesa. Como nos revelou há algumas semanas a curadora artística e directora do Lisboa Soa, Raquel Castro, no âmbito de uma circulação europeia de projectos com a sua marca curatorial, o cartaz deste festival norueguês contemplava três instalações/performances resultantes da sua visão da sound art: Listening Horns, da já mencionada artista britânica Kathy Hinde que contou ainda com a trompista francesa Hild Sofie; a Weather Orchestra concebida pelo grego Mikhail Karikis, artista que trocou Londres por Lisboa já há alguns anos, e que contou também com a participação da cantora folk norueguesa Unni Løvlid; e ainda Liquid Aesthesia # 4, de Gustavo Costa e Henrique Fernandes da Sonoscopia em parceria com o músico francês Vincent Martial. Essas apresentações, precedidas de uma conversa de todos os artistas juntamente com a directora do Ultima, Heloisa Amaral, decorreram no passado sábado, mas o festival começou antes, na quinta-feira dia 14, com um impressionante evento no Norges Musikkhøgskole, instituição de ensino que se encontra em plenas celebrações do seu meio centenário. 

Juntando alunos, professores e outros profissionais (técnicos de som, etc.) dessa instituição e ainda do Kunsthøgskolen i Oslo e do Institutt for Musikkvitenskap, o Ultima Kompass envolveu cerca de mil pessoas que se espraiaram por dezenas de pequenas e não tão pequenas assim apresentações no impressionante edifício da Norges Musikkhøgskole, um conservatório luxuosamente equipado, com espartano design nórdico, que os visitantes eram aconselhados a explorar livremente. Por trás de uma porta seria possível encontrar um trio de laptop, violino e oboé a preparar a estreia da sua peça, enquanto no corredor uma série de alunos se mostravam concentrados na montagem de uma panóplia de instrumentos e objectos equipados com microfones de contacto que serviriam, um par de horas mais tarde, para a sua apresentação de uma leitura da obra Mikrophonie, de Karlheinz Stockhausen. Enquanto isto, numa divertida, mas talvez demasiado óbvia performance, uma série de alunos circulava pelos diferentes espaços em “marcha atrás”, numa mostra de não-conformismo e não-alinhamento que poderia parecer um pouco infantil à vista desarmada. Estreias de obras de professores para diferentes instrumentos de percussão e animadas entrevistas no hall do edifício com alguns dos muitos músicos e compositores convocados transformavam tudo isto numa irresistível experiência imersiva, um vórtice de acontecimentos espalhados por diferentes andares do vasto edifício onde era muito fácil – e recompensador – perdermo-nos. E até a zona de lazer na cafeteria era servida por um “DJ” que foi tocando – em vinil!! – uma selecção de peças de Xenakis, Stockhausen, Berio, etc. Uma festa da música bem diferente.

A noite de abertura do festival terminou nas entranhas do vizinho Chateau Neuf, mais um imponente edifício do campus universitário, numa sala de espectáculos que se assemelhava a um subterrâneo clube de rock, com dois igualmente intensos concertos reunidos sob a designação Metal Urges: a estreia da peça Epogdoon do compositor austríaco Bernhard Gander executada pela expandida Oslo Sinfonietta e ainda o já mencionado encontro de Jenny Hval com os veteranos Enslaved.

Um par de horas antes da estreia de Epogdoon, Barnhard Gander foi um dos convidados das informais e animadas conversas no hall do conservatório onde decorreu a programação Ultima Kompass. E nessa ocasião explicou como o seu concerto de vincada componente percussiva assentaria em complexos ritmos baseados em combinações de números primos que haveriam de conduzir “a estruturas e ritmos impossíveis de imaginar”. A Håkon Stene coube combinar as cadências estranhas executadas na sua bateria amplificada com batidas electrónicas distorcidas. Uma peça de intensidade máxima e de enorme originalidade que foi bem sucedida no seu cruzamento da complexidade orquestral com a tensão própria do black metal. Não tão feliz foi o encontro do poder dos Enslaved com a fragilidade e intimidade da voz de Jenny Hval: a ideia de colisão de mundos entendia-se, até porque algum do metal extremo busca inspiração em modos folk nórdicos profundos que a cantora por vezes evoca, mas naquela ocasião os dois distintos elementos pareciam demasiado descolados de uma qualquer ideia de equilíbrio e o exercício soou apenas a teste de possibilidades. Mais eficazes e poderosas foram as partes em que os Enslaved executaram reportório sozinhos, uma barragem de riffs densos que, estranhamente (para este par de ouvidos, pelo menos), soaram quase como drones de vocação ambiental.



O “hub” principal do Ultima tem lugar no Sentralen, um edifício que pertenceu em tempos a um banco (e onde permanece o antigo cofre que actualmente serve de espaço para alguns eventos…), que actualmente alberga algumas instituições, como um centro de estudos de música contemporânea com uma interessante biblioteca, e que serviu de palco a algumas das talks do programa. Uma delas, na passada sexta-feira, foi moderada por Rob Young, jornalista e escritor que fez carreira na Wire, entre outras publicações, e que é autor de um livro sobre os alemães Can, em conjunto com o membro da banda Irmin Schmidt, All Gates Open, bem como do incontornável Electric Eden, um generoso tomo que investiga a fundo a particular cena folk britânica. 

Disposto a explorar a ideia de “Neofolklore”, Young sentou-se com três artistas que se apresentaram em diferentes momentos do programa – Benedicte Mauserth, Eivind Buene e Hatis Noit -, para juntos explorarem as suas diferentes abordagens ao universo da música folk. Curiosamente, fez-se basto uso das palavras “raízes” e “tradições”, mas a ideia de “funcionalidade” só assomou uma vez tangencialmente numa das intervenções de Young, ficando por explorar essa dimensão que distingue muito do mais fundo folclore de outras práticas musicais pensadas como expressões artísticas. De facto, muitas das expressões musicais vindas do folclore existem para cumprirem funções específicas: música para a sementeira ou para a colheita, canções para celebrarem o nascimento ou lamentar a morte, temas para assinalarem a passagem das estações ou de diferentes momentos do dia, etc. Ainda assim, estes encontros de artistas com o público são sempre interessantes e expõem facetas que nem sempre se revelam em performance.

Nesse dia, o Rimas e Batidas ia, no entanto, focado em ver de perto o espectáculo de Nala Sinephro na Kulturkirken Jakob, uma antiga igreja convertida agora em magnífico espaço de concertos. Num sub-programa resultante de uma colaboração do festival Ultima com a plataforma local by:Larm – muito focada na música electrónica -, a autora do aclamado Space 1.8 fez-se acompanhar por um trio com bateria, synth-bass e saxofone soprano/tenor, alternando entre a harpa e o seu sintetizador modular. Pode argumentar-se que a música de Nala Sinephro é de uma simplicidade desarmante – o que só nalguns livros poderá ser sinónimo de desinteressante -, mas a verdade é que dessa absoluta transparência se desprende uma óbvia profundidade emocional e uma igualmente clara dimensão espiritual: a sua música é uma manifestação de uma ideia própria de amor e assume-se como meditação. Os músicos – que a artista belga-caribenha com base em Londres vai orientando com gestos indicativos de entrada, saída ou intensidade – rodeiam os motivos rendilhados por Nala Sinephro com reverentes improvisos abertos que nunca soam intrusivos ou exuberantes, embora uma atenção aos detalhes das suas respectivas execuções possa confirmar que são todos dotados de sólidas técnicas. Naquele contexto, os três músicos querem sobretudo servir as propostas de elegância harmónica apresentadas por Nala Sinephro que, obviamente, foi estudante atenta de Alice Coltrane e Dorothy Ashby, mas que, como bem demonstrou no disco que assinou para a Warp, tem um entendimento claro do seu lugar na contemporaneidade. O concerto serviu para desafiar leis da física e deixou os espíritos presentes suspensos em gravidade zero. E só por isso já valeu a pena. 

O programa da Kulturkirken ainda compreendia mais duas apresentações na noite de sexta-feira, mas o verdadeiro bálsamo servido por Nala Sinephro não se poderia comprometer com incógnitas chamadas Waage Mikalsen e Nothing Personal. Nada de pessoal, de facto, mas em contexto de festival é sempre necessário fazerem-se opções.



O sábado, dia 16, revelou-se a jornada mais preenchida do programa durante a estadia da missão Rimas e Batidas. O dia começou com uma caminhada pela belíssima cidade de Oslo até ao Deichman Tøyen, um espaço com biblioteca focada no público infantil num bairro com população diversa e forte presença de comunidades migrantes. Aí teve lugar não apenas a já referida conversa da curadora Raquel Castro e dos artistas por ela convocados no âmbito do programa europeu Sounds Now, mas também a belíssima performance da Weather Orchestra comandada por Mikhail Karikis. Mikhail é um artista fascinante que pensa a arte como uma forma de activismo e em Oslo, numa residência artística com jovens estudantes e activistas climáticos, desenhou uma apresentação que, sob a inspiração directa de Pauline Oliveros, começou com os estudantes a – algo timidamente, ao início – assomarem a um dos microfones para expressarem ideias: “estou aqui porque não quero estar sozinho” ou “estou aqui porque o nosso planeta precisa de ser salvo”, etc.

A parte mais interessante da performance foi quando Mikhail dirigiu os alunos e criou apenas com recurso às vozes e aos corpos a ilusão de que nos encontrávamos todos em plena natureza e não naquela pequena praça de cimento e betão: esfregando as mãos, estalando os dedos, batendo com as palmas das mãos umas nas outras ou no peito, com estalidos, assobios e sopros, criou-se ali a ideia ou ilusão temporária de uma frondosa floresta em que se faziam ouvir diferentes aves e onde a chuva foi caindo, pingando ligeiramente, primeiro, e mais intensamente, depois. E sobre essa base, a cantora folk Unni Løvlid interpretou – em norueguês ou nalgum dialecto desse país – um par de hipnóticos e belíssimos temas alusivos à natureza. Esse momento não deixou de suscitar algumas questões na mente de quem assina estas linhas: uma manifestação de tão funda identidade norueguesa num espaço em que se vislumbravam tantos rostos de outras proveniências terá sido apropriado? 

Numa sala paralela à biblioteca, havia ainda a possibilidade de assistir à instalação vídeo-sonora de Mikhail Karikis que também partilha o título Weather Orchestra, mais uma reflexão sobre a transformação climática do nosso planeta, num tríptico de forte impacto visual e com recurso a registos de diferentes artistas vindos de múltiplas tradições e backgrounds musicais.

O programa Weathergods desenhado por Raquel Castro para esta edição 2023 do Ultima prosseguiu no Klosterenga Park com a instalação/performance Listening Horns/Sounding Horns, de Kathy Hinde. Esta ideia de “sound art in public spaces” é também uma forma de activismo em que se reclama o direito às cidades. Em conversa com a artista, ficámos até a saber que a intervenção naquele belíssimo jardim dotado de uma série de cursos de água e fontes – e que serve um aprazível bairro residencial – teve o desejável envolvimento da comunidade local que, aliás, marcou farta presença no dia da apresentação. Em duas das pequenas pontes que unem as margens do curso de água que atravessa o parque, Kathy instalou uma série de “sounding horns”, uma espécie de longos funis em metal oxidado pelos elementos que se ligam a colunas de construção artesanal que por sua vez se encontram ligadas a hidrofones que captam uma série de sons subaquáticos, o que transforma essas pontes em discretos soundsystems que nos ligam a um mundo natural, mas habitualmente fora do nosso alcance aural. A natureza torna-se assim mais viva e envolvente.

Além da instalação houve também a performance: no meio de uma fonte, dentro de água e com botas altas de borracha, posicionaram-se Kathy Hinde com computador, processador de efeitos e mesa de mistura ligada a uma série de microfones subaquáticos, e a trompista Hild Sofie. Da trompa saiam sons misteriosos, que remetiam para o vento e para os elementos, enquanto Kathy ia processando esse sinal juntamente com o dos diferentes hidrofones numa sinfonia ambiental imersiva que nos era transmitida através de uma série de “sounding horns” semelhantes aos dispostos na ponte para a sua instalação sonora. Pequenos, mas surpreendentemente poderosos, estes “altifalantes” metálicos debitaram drones de elevado poder de envolvência que capturaram a atenção de todos os presentes, fascinando sobretudo as irrequietas crianças que se quedaram maravilhadas na borda do lago artificial enquanto a sinfonia aquática ia desaguando sobre os nossos ouvidos. Belíssimo momento.

A última parte desta “trilogia” Weathergods aconteceu no átrio da moderna Cinemateket e também numa das salas. Numa pequena black box estava a instalação montada pela embaixada da fantástica Sonoscopia, exploratória associação criativa do Porto que tem assinado assombrosas criações que parecem misturar ciência e uma difusa ideia de alquimia sonora moderna. Liquid Aesthesia # 4 – a instalação – consiste numa série de taças de vidro transparente, com água, diferentes bombas e microfones de contacto que se ligam a um pequeno sistema de som que envolve os visitantes numa ilusão de submersão aquática que surpreende tanto quanto fascina. A performace em que Henrique Fernandes e Gustavo Costa se fazem acompanhar por Vincent Martial explora essa ideia da água como fonte de sons através de uma mesa em que se dispõem múltiplos objectos dotados de microfones de contacto dando a ideia de que se está num qualquer laboratório em que se buscam novas fórmulas químicas e não necessariamente num espaço de concertos. O gelo seco e a “neblina” por ele gerada, que parece truque de alquimista moderno, prende a atenção de miúdos e graúdos enquanto pequenas explosões, sons percussivos e metálicos oriundos da “caixa de truques” construída por Gustavo Costa, os sons altamente processados da flauta de Vincent e a água borbulhante ou pingada comandada por Henrique Fernandes vão criando uma vaporosa nuvem sonora que submerge todos os presentes.

É importante ressalvar que o trabalho apresentado por estes artistas – em performances que por vezes se limitam “apenas” a 20 ou 30 minutos e em instalações que decorrem por períodos limitados – implica muitas horas e dias de planeamento e montagem, com as especificidades de cada local a imporem obstáculos imprevisíveis e o engenho de cada um a dar azo a soluções que tornam estas peças e estes momentos ainda mais valiosos. O trabalho de Raquel castro e dos artistas por si convocados é notável e merecedor de incondicional aplauso.



Antes da jornada findar, o Rimas e Batidas ainda efectuou mais duas paragens. A primeira aconteceu no Nasjonal Jazzscene Victoria, um fantástico clube de jazz que, para se perceber de que tipo de espaço se trata, tem nos próximos tempos agendados concertos de Supersilent, James Brandon Lewis, John Scofield ou Sylvie Courvoisier com Mary Halvorson. No Victoria assistimos aos solos de Sanskriti Shresta em sete tablas afinadas e de Julian Sartorius em bateria “preparada”.

A tocadora de tablas e percussionista nepalesa Sanskriti Shrestha é uma artista com fortes ligações à cena norueguesa e com amplo reconhecimento internacional. Explica o programa que “a sua configuração única de ‘tablatarang’, apropriadamente designada por ‘tabla waves’, inclui sete tablas meticulosamente afinadas em diferentes alturas, formando coletivamente uma escala não temperada que expande as possibilidades melódicas destes instrumentos, que ela complementa com vários outros instrumentos de percussão e as suas próprias vozes”. Ao longo de cerca de 40 minutos, Shrestha explorou com diferentes graus de intensidade os seus instrumentos, combinando-os com cadências apresentadas vocalmente, e envolvendo-nos num fascinante labirinto de infinitas possibilidades rítmicas de coloração bem distinta daquela a com que ouvidos ocidentais estão mais habitualmente sintonizados. Um triunfo.

O solo do percussionista suíço Julian Sartorius foi igualmente estrondoso e pleno de imaginação. Em Locked Groove, Sartorius trabalha como um pintor forçado a pintar uma série de diferenciados quadros abstractos usando várias telas de igual dimensão e a mesma paleta de cores. O concerto arrancou quando pousou a agulha num disco colocado num gira-discos em cima do palco e carregou no play. O disco revelou um “locked groove” com um único som pulsante e repetitivo – a tela em branco – sobre o qual foi dispondo padrões rítmicos de desarmante simplicidade, ao princípio, mas de crescente complexidade, à medida que a performance se foi desentolando. Sempre a mesma “locked groove”, sempre o mesmo “ping” repetitivo, mas em cima dessa base Sartorius foi expondo a sua prodigiosa imaginação rítmica, com cadências de inventividade extrema, percebendo-se ali uma clara influência do hip hop, mas com o baterista a não se limitar a grooves de fluência mais funky e a apresentar igualmente declinações mais “cubistas” dessas cadêcias. E isto num kit em que tapou os címbalos com tecidos que alteravam o seu cromatismo, dispondo diferentes objectos em cima de timbalões e tarola, trabalhando com tecidos o timbre dos diferentes elementos do seu kit, incluindo o bombo. Dessa forma, Julian Sartorius transformou criativamente o som da bateria, transportando-o para território tímbrico menos usual. Em breve, poderemos ver e ouvir esse trabalho inventivo de Sartorius na bateria em três concertos (Espinho, Braga e Lisboa) divididos com Herbert.

A última paragem da noite foi na ampla Black Box do imponente e controverso MUNCH, museu que alberga a maior colecção mundial do pintor norueguês Edvard Munch e que foi inaugurado em 2021. Nesse espaço aconteceram duas belíssimas apresentações na noite do passado sábado. 

Em primeiro lugar houve Bow, uma inédita combinação de dança – a cargo do artista e performer Skjold Rambow – e de música assinada por CTM, projecto da violoncelista Cæcilie Trier, artista baseada em Copenhaga. Rambow fez-se valer das suas singulares aptidões físicas: foi ginasta de elite, breakdancer e até cantor de coro com o Copenhagen Boys Choir (dessa particular aptidão não se socorreu, diga-se). E foi num misto de mistério acentuado pela parca iluminação, humor derivado de alguma da linguagem corporal e drama proporcionado pela sombria música da violoncelista que esse espectáculo se desenrolou. Trier harmonizou consigo mesmo usando bases pré-gravadas – sobretudo de violoncelo – retirando do seu instrumento, em que possui formação clássica, repetitivas e insistentes frases plenas de tensão que o corpo de Skjold Rambow usava como mote para os seus expressivos movimentos, que passaram também por rápidas investidas pelo meio da audiência. Os efusivos aplausos no final foram inteiramente merecidos.

Mas o melhor ficou mesmo para o final. Earlier That Day, explicava o programa, “é uma peça coral de mistério criminal para oito vozes e som digital”. Trata-se de uma encomenda do Ultima Festival que teve a sua estreia mundial no MUNCH e que apresenta música composta por Catharina Stoltenberg e Henriette Motzfeldt, o duo eletrónico Smerz, para o conjunto vocal clássico GAEA. 

As Smerz alcançaram justa notoriedade com a edição em 2021 do álbum Believer na britânica XL Recordings, um registo em que cruzaram electrónica exploratória com uma inusitada sensibilidade pop. Nesta peça, sobre motivos electrónicos muito esparsos, pontuais arremedos de tendência clubística em que os sub-graves e padrões rítmicos surgiam por breves momentos, e samples de cordas e outros instrumentos clássicos, evoluíram as oito afinadíssimas vozes das GAEA, com ecos operáticos pontuais, um rigor quase gregoriano na sua execução e algum subtil humor expresso no carácter imaginativo dos arranjos. Visualmente, nada mais simples: sala e palco completamente obscurecidos, com apenas os rostos das cantoras vestidas de negro iluminados por muito discretos focos de lanternas colocadas nos suportes dos microfones. Um singelo, mas ultra-eficaz efeito dramático que manteve em suspenso o público que esgotou o concerto. E que mereceu, uma vez mais, uma torrente de mais do que justificados aplausos.

O Ultima Festival prossegue até ao próximo sábado, dia 23, apresentando muitos mais espectáculos de relevo, do já citado concerto baseado nos êxitos compostos por Hans Zimmer para o grande ecrã (que terá apresentações na quarta, quinta e sexta-feira) a showcases de editoras como a Hubro, SOFA e Aurora, um workshop de Mohammad Reza Mortazavi ou uma “palestra/performance” de Rob Young, entre várias outras coisas.


pub

Últimos da categoria: Reportagem

RBTV

Últimos artigos