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Fotografia: Vitorino Coragem
Publicado a: 22/08/2023

Activismo nos campos da ecologia acústica e da arte sonora.

Raquel Castro: “Acredito que o acto de escutar nos pode ajudar a entender melhor uma série de questões”

Fotografia: Vitorino Coragem
Publicado a: 22/08/2023

A edição 2023 do singular Lisboa Soa arranca já depois de amanhã, dia 24 em modo repartido entre o Quartel do Largo Cabeço de Bola e as Carpintarias de São Lázaro. Nesse sentido, conversámos com a sua visionária criadora e directora artística, Raquel Castro, uma activista – no sentido mais literal do termo – nos campos da ecologia acústica e da arte sonora que tem vindo a sublinhar, através de diferentes facetas do seu trabalho, a necessidade de escutarmos – profunda, atenta e criticamente – as cidades e o mundo que habitamos.

Com o Lisboa Soa prestes a arrancar e em vésperas de rumar a Oslo para o Festival Ultima, para onde leva três instalações que contam com a sua curadoria, Raquel Castro fala dos conceitos que regem as suas diferentes actividades, discute o financiamento público para projectos mais desafiantes e levanta um pouco o véu sobre quem é a pessoa que faz tudo isto e tanto mais e que actualmente até tem um cargo cimeiro numa importante organização internacional, o World Forum For Acoustic Ecology.



Muito obrigado por aceitares ter esta conversa, antes de mais. Tens vindo a falar recorrentemente num assunto que, se calhar, os nossos leitores ainda não conhecem tão a fundo quanto isso. Gostava que começasses por explicar o que entendes por ecologia acústica.

Bem, para começar, temos de perceber que a ecologia acústica, enquanto disciplina, surgiu nos anos 70, no Canadá, pelas mãos e pensamento de Murray Schafer, compositor canadiano, e um outro grupo de músicos e compositores que deram origem a isto — eu prefiro chamar-lhe “disciplina” do que “movimento”. Na altura, seriam vistos como activistas, pessoas extremamente preocupadas com a questão da poluição sonora e do ruído. É bastante urgente pensarmos nesses problemas da acústica urbana, de onde surge a ecologia acústica. No entanto já passaram várias décadas e a disciplina tem muito mais para oferecer para além de pensamento e acção sobre as problemáticas do ruído. Para mim, e dentro daquilo que eu tenho vindo a fazer, interessa-me bastante essa ideia de cidadania e esse lado de intervenção, de algo educativo, que é um dos principais legados da ecologia acústica. Além disso, há a investigação sobre a paisagem sonora, particularmente a urbana, e um conjunto de pensamentos e exercícios que, de certa forma, colocam a escuta no centro do debate. Ao tornar a escuta no centro do debate, ajuda-nos a pensar — do meu ponto-de-vista e do ponto-de-vista do festival, que é o que nos traz a esta conversa — em ideias e na criação de oportunidades e de desafios. Chama-nos a atenção para essa nossa capacidade que nem sempre usamos e que podemos aplicar, digamos assim, em diferentes partes da nossa vida diária, não só na relação connosco próprios, mas também com o ambiente, com a política, com a sociedade em geral. Acredito que o acto de escutar nos pode ajudar a entender melhor uma série de questões. É nessa senda que eu tenho vindo a fazer o Lisboa Soa, um bocado com base na premissa de, através da arte sonora em espaço público, trazer as pessoas para um determinado tempo em que se podem dedicar a escutar ou a tentar perceber o que se está a ouvir, como se está a ouvir, porque se está a ouvir. Ao desenvolver essa capacidade, de alguma forma, de prestar atenção à escuta, também nos tornamos mais conscientes do som que nós próprios geramos. É um bocado por aí.

Muito bem. Acabaste por mencionar um outro conceito transversal ao que tu fazes, que é a arte sonora — bem diferente da arte musical, embora, às vezes, as duas se possam cruzar. No âmbito do Lisboa Soa, como é que tu entendes esse conceito da arte sonora e como é que o explicas às pessoas?

Para já, o termo não é consensual. Eu aplico-o, mas ele levanta algumas questões. Por um lado, como género artístico, enquadra-se no território da arte contemporânea. No fundo, a arte sonora, se recuarmos aos anos 70, ela vem da fusão entre as artes visuais com a música experimental. Mas, volto a dizer, a sua definição não é consensual. O conceito de juntar as palavras “arte” e “sonora” faz parecer que seja uma sub-categoria. Por outro lado, o som foi sempre negligenciado nas artes em geral e, então, é uma forma de recuperar essa componente. A arte sonora tem inúmeros formatos — pode ir desde concertos com música gerada por computadores, com elementos orgânicos… Já recebemos, por exemplo, o Akio Suzuki com duas pedras perante uma plateia em absoluto silêncio a escutá-lo. Também podem ser instalações, esculturas sonoras, passeios sonoros… Enfim. Pode ser tudo aquilo que coloque o som como elemento que conduz aquela criação. Há obras que são profundamente visuais, outras que se misturam completamente com a música. Mas há uma matriz, que é a questão do som, e que é o principal dentro destas manifestações.

No livro em que fazes o balanço dos primeiros cinco anos do Lisboa Soa, descreves este festival como uma missão. E como em qualquer missão — hoje em dia escutamos tantas vezes essa palavra nas notícias, nomeadamente por causa da guerra na Ucrânia — é preciso fazer algo para atingir um determinado objectivo. Por isso, eu pergunto: que objectivo é esse, o da missão em que embarcaste com o Lisboa Soa?

É uma boa e complexa questão. Se calhar, podia ter pensado melhor quando usei a palavra “missão”, porque lhe confere um certo grau… Eu acho que nada é definitivo e, de facto, eu iniciei-me nos estudos, digamos, numa perspectiva mais académica, há cerca de 20 anos, quando descobri a existência da ecologia acústica, a propósito de um projecto documental que tinha na altura, quando entrei para mestrado. Questionei-me: “O que é que eu vou investigar?” Estava muito interessada nas questões da identidade sonora dos lugares e, entretanto, descubro a ecologia acústica, descubro o Tuning of the World de R. Murray Schafer, que é uma referência fundamental dentro desta área. Na altura, estava muito longe de saber que ia continuar nesta área — estava só a descobrir uma área que me interessasse para investigar num contexto de mestrado. Daí fui seguindo, sempre a fazer uma série de coisas que se relacionam com isso. Não é que eu tenha incorporado ou tenha definido para mim que isto é uma missão. Eu não sei se daqui a 10 anos não me canso disto tudo e vou fazer uma coisa completamente diferente. Não é uma questão de eu me ter atribuído uma missão na vida ou que tenha a pretensão de ter uma missão nessa área. O que me interessa bastante é o lado mais político das coisas e acho que descobri aqui uma forma de o poder aplicar em diferentes formatos. Quando eu digo “missão”, é mais no sentido de o Lisboa Soa poder dar uma outra perspectiva até mesmo sobre o espaço público. Acho que as cidades devem ser… Ocupo-me muito a pensar no estado em que estão as cidades e particularmente Lisboa, que é a cidade onde nos estamos a situar neste momento. Acho interessante trazer o debate e poder colocar um bocadinho de ênfase nisso. É nessa perspectiva que me interessa continuar. Falar em “missão” assim, fora do contexto, se calhar dá-lhe um ar pretensioso — ou pelo menos soa-me assim [risos]. É o eu gostar de explorar esta ideia de trazer ao espaço público obras que interagem e não são indiferentes ao espaço nem ao contexto. E é acessível a todos. Quando comecei a investigar esta área, sempre me enervou um bocadinho o facto de que, se fosse a uma conferência de som, só ouvia falar as pessoas da área do som. Sempre gostei que houvesse pessoas de outras disciplinas que têm imenso a ganhar ao compreender ou pelo menos estarem um bocadinho mais sensíveis à questão do som, como a arquitectura, geografia, biologia, urbanismo… Por vezes vinha super-irritada de algumas conferências, ou pelo menos a questionar-me e a ter vontade de começar a fazer algumas coisas. Também comecei a questionar-me, em algumas exposições de arte sonora a que fui, se o museu seria o espaço certo para exibir uma obra de arte sonora. De alguma forma, as coisas foram acontecendo, no sentido de termos agora o Lisboa Soa assim neste formato. Existe mais esta vontade de não ser só um festival ou uma manifestação artística, mas também algo que nos faça reflectir sobre outras matérias e, particularmente, a questão da cidade, dos espaços públicos e urbanos.

O Lisboa Soa, na minha cabeça, parece assentar numa ideia supostamente simples — a da escuta activa e crítica. Se pensarmos nisso, essa ideia de nos submetermos ou de nos reduzirmos à escuta é bastante radical, dado que hoje vivemos tempos em que o que se valoriza é a produção – de conteúdos, de ruído… Todos queremos ser emissores de alguma coisa e parece que nos esquecemos de ser também receptores, algo que foi potenciado pelas redes sociais. Há, portanto, uma ideia de radicalismo que eu associo a isso de “vamos parar e escutar a cidade, a arte sonora que pode existir no espaço público.” Também entendes o lado radical de uma proposta como essa?

Entendo, tal como também entendo que é necessário, devido a essa mesma abundante produção de ruído e à falta de pensamento sobre… Eu não quero entrar naquele discurso de “dinossauro”, mas é um facto: as pessoas estão muito auto-centradas. Não queria ir para um lado existencialista da matéria, mas de facto quem fala mais alto e se quer impor e sobrepor… Isto acontece permanentemente. No fundo, não é um radicalismo, é uma coisa tão elementar como nós os dois estarmos a falar um com o outro e temos de parar para nos escutarmos, para poder existir um diálogo, porque de outra forma isso seria impossível. Para mim, é uma coisa que está negligenciada, porque é quase impossível haver um espaço para isso. Não acho que seja radical porque é uma capacidade que todos temos, mas à qual dedicamos pouco tempo, porque no fundo há sempre… O lado da escuta retira-nos algo a nós próprios, é um tempo que nós damos ao outro ou a um lugar, o que for. Dificilmente temos esse tempo ou não queremos ter esse tempo. É nesse sentido que eu acho que é um bom contraponto. O Lisboa Soa tem vindo a acontecer e vai para a sua 8ª edição, mas nunca é certo. O projecto tem vindo a acontecer de ano para ano, mas tem sido sempre uma experiência, nunca perdeu esse lado de “deixa-me ver com é que isto funciona” ou “será que isto vai funcionar?” Há sempre esse estado de inocência em relação à coisa. Uma das coisas de que eu me lembro, logo na primeira edição na Tapada das Necessidades, foi que uma amiga minha entrou no espaço e disse-me assim: “Fogo. Vim a correr, tive um dia horrível, mas cheguei aqui e parece que estou num oásis sonoro. Estou à parte de tudo.” Essa bolha é importante. Nós tentamos criar esse tempo e esse espaço. Existe uma necessidade ética de escutarmos. O acto da escuta é uma actividade que nos pode permitir agir mais eticamente perante o mundo.

Vamos agora falar sobre a edição de 2023 do Lisboa Soa. Que visão tens para o programa deste ano?

No ano passado abri a Sonora, que é uma associação cultural. Eu formalizei essa entidade, com a qual tenho vindo a fazer o Lisboa Soa e com a qual me instalei no Quartel do Largo do Cabeço de Bola, que pertence à Largo Residências e que, de alguma forma, me inspirou no tema que escolhi para este ano. Há um exemplo de um espaço público que foi cedido a um determinado colectivo e onde estão habitualmente largas dezenas de artistas sediados, que diariamente fazem o seu trabalho e as suas actividades criativas ali. Cada vez existem menos espaços como este em Lisboa, que permitem esta troca, esta sinergia e esta existência. Comecei a pensar um bocadinho em quantas cidades podem existir dentro de uma cidade. Pensei nos condomínios fechados, nos inúmeros hotéis… E todas estas comunidades que fazem a cidade, onde é que elas podem estar e onde é que elas se podem situar? Daí ter surgido essa ideia das multiplicidades. E tenho andado a estudar um bocadinho sobre isto: nós achamos que ouvimos todos da mesma maneira, mas não. Não só temos níveis de escuta distintos, como temos sensibilidades diferentes. Foi começar a pensar em todo o espectro possível de sons, que vai desde as baixas frequências às ondas de rádio, e daí abordar toda essa ideia de multiplicidades. Portanto, vão haver várias instalações no Quartel, que é o nosso principal espaço, mas também nas Carpintarias de S. Lázaro, que fica mais dedicado a uma exposição grande do Rudolfo Quintas, que curiosamente teve a sua primeira apresentação deste projecto na primeira edição do Lisboa Soa. É um projecto que ele tem vindo a desenvolver. Nessa primeira edição do Lisboa Soa, em 2016, apresentou uma escultura sonora interactiva que traduzia em som os movimentos das pessoas. A partir dessa obra, ele fez um projecto com cegos, que de alguma forma criavam retratos sonoros uns dos outros. Fez toda uma investigação em torno desta área, desde um doutoramento a várias instalações interactivas em colaboração com pessoas cegas. Essa exposição estará nas Carpintarias de S. Lázaro. No Quartel teremos cerca de 8 instalações, desde uma instalação com antenas que vão captar ondas de rádio completamente invisíveis e que geralmente nos passam despercebidas, mas que atravessam o nosso corpo no dia a dia. Também vamos ter uma instalação de baixas frequências com uma artista brasileira, a Stefanie Egedy, só com subwoofers e frequências baixas. É uma forma de fazer soar a arquitectura do espaço, que por si só já é um espaço com bastante ressonância. Queremos que o Lisboa Soa seja um espaço onde artistas podem apresentar projectos mais exploratórios. Estou a pensar, por exemplo, na Lula Pena, que tem vindo a desenvolver pesquisa com sensores de plantas que traduzem os impulsos eléctricos das plantas em som. Ela vai fazer uma coisa fora do seu registo habitual. Também vamos ter uma colaboração nova entre o André Gonçalves e o Tó Trips, que também será num registo curioso entre os dois. Ou seja, queremos criar este espaço, este território de experimentação, mas ao mesmo tempo estar em contacto com o próprio lugar. Esta é a perspectiva. Também estou muito contente por conseguir trazer o Tarek Atoui, algo que já andava a tentar desde 2019.



Mencionaste as pessoas com deficiência visual e como se pode trabalhar com elas. Há dias, no festival Jazz em Agosto, fui confrontado… Já tinha visto algumas experiências em festivais. A primeira vez que vi foi nos Estados Unidos, em Austin, em que a vi a língua gestual a ser aplicada em contexto de concerto para criar espaços de inclusão para pessoas com incapacidade auditiva. Agora, no Jazz em Agosto, vi uma comunidade de pessoas surdas com lugar especial dentro da plateia do anfiteatro, equipadas com coletes que transformam a música em vibrações no corpo, de forma a trazê-los para dentro da experiência. Esse tipo de preocupação, especificamente para as pessoas surdas, alguma vez vos passou pela cabeça trabalhar dentro do Lisboa Soa?

Claro que sim. Na verdade, esse até foi o principal mote da edição deste ano, o pensar nas pessoas que não têm a capacidade de ouvir e na forma de trazer essas pessoas para o festival. A escolha da Stefanie Egedy vai ao encontro dessa ideia, porque ela trabalha com as baixas frequências, que é quando o som se torna táctil, digamos assim. Por isso, de alguma forma, a ideia de abrir o espectro das frequências é também o abrir do espectro a outras capacidades de escuta. Depois há outros projectos que não vamos conseguir fazer durante o festival, mas que faremos ao longo do ano em particular. São projectos mais ligados ao lado da investigação, digamos. A surdez é uma das características, por assim dizer, que mais gostávamos de trabalhar. Dentro desse projecto das baixas frequências, haverá um workshop em que as pessoas com diferentes níveis de escuta podem participar, mas, por diferentes motivos, o projecto que nós tínhamos para trabalhar especificamente com uma comunidade de surdos não pôde acontecer. Também vamos tentar trazer para a criação artística sonora comunidades que normalmente não estão assim tão presentes. Não apenas a questão da surdez, mas também um projecto que será desenvolvido em colaboração com o Júlio de Matos e a Rádio Aurora. Quando tentamos perceber um bocadinho mais sobre a relação com o som, é evidente que precisamos de ter contacto com diferentes comunidades e entender mais sobre isso. Mas a surdez é, de facto, o mote principal da edição deste ano.

As pessoas têm que entender, penso eu, que não se escuta apenas com os ouvidos. Nós podemos escutar com o corpo todo, não é?

Exactamente. Não se viste um documentário chamado Touch The Sound com a Evelyn Glennie.

Não vi. Vou ter de espreitar.

Vê. A Evelyn Glennie é uma percussionista escocesa virtuosíssima, que é surda desde nascença — tem, para aí, 90% de surdez. Ela tem umas conferências na TED Talk sobre como ouvir com o seu próprio corpo, em que ela fala precisamente desse lado vibracional do som, de como ela sente todas as vibrações. Tens de ver esse documentário porque vale mesmo a pena. E está no YouTube e na Netflix. Encontras facilmente. É muito bonita essa perspectiva de se escutar com o corpo todo. A Stefanie vai um bocadinho por aí, pelo lado táctil do som.

Eu li na entrevista do Chris Watson o quão profundas são as críticas que ele faz à arquitectura moderna, que parece esquecer, na sua busca de uma forma, como é que o som funciona dentro dos espaços. Uma das minhas curiosidades prendia-se em saber se, com este teu trabalho e a visibilidade que foste alcançado com o Lisboa Soa — embora o teu trabalho vá muito para lá disso —, tens vindo a ser solicitada como consultora, eventualmente, por firmas de arquitectura, por exemplo, que de repente têm de intervir no espaço público. Essas firmas estão conscientes da necessidade de trabalhar, também, os ambientes acústicos dentro das obras que propõem? O teu telefone tem tocado muito por causa disso?

Por acaso, curiosamente, ainda há poucos dias recebi um convite da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, para ir lá falar numa conferência, precisamente porque viram a minha série na RTP2. Se perguntares a um arquitecto quantas horas de acústica teve durante a sua formação, provavelmente responderá “zero”. Posso estar a dizer uma falsidade, porque pode haver uma ou outra excepção, mas em geral não se fala muito de acústica nem há disciplinas específicas de acústica. Mas eu não estou a dizer que queira ser uma consultora… Há pessoas que são de engenharia acústica, até mesmo os artistas sonoros, cada vez mais trabalham em consonância com a engenharia acústica e, por sua vez, com a arquitectura. Se se pensar num projecto todo do ponto-de-vista da luz, depois não se vai perceber como é que o som se vai comportar no espaço. Passamos a vida a ir a restaurantes acabadinhos de estrear em que nem dá para estar lá dentro. Como é que, nos dias de hoje, isto continua a acontecer? Não faz sentido nenhum. Nem todos os problemas acústicos são economicamente difíceis de resolver, há coisas que são fáceis, certas opções que se podem tomar. É importante é que se pense nisso desde o princípio. Mas como estava a contar, ligaram-me da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, para eu participar em Setembro numa conferência, num seminário, dando um ponto-de-vista mais comportamental e comunicacional do som, não tanto as questões da engenharia, que eles abordam e que deverão ser engenheiros a ser consultados. E tu falas dos arquitectos, mas por vezes eles nem podem fazer muito, porque há opções que são do planeamento urbano e que são muito mais graves. Até podemos ter edifícios muito bem construídos, mas se eles estão distribuídos nos sítios errados e não há um planeamento que reflicta sobre isso, então fica mais difícil de resolver.

Estas 8 edições do Lisboa Soa também devem dar-te uma perspectiva muito clara — ou mais clara do que no início, certamente — sobre o funcionamento do financiamento público para este tipo de eventos. Em que ponto estamos nós, em 2023, no que diz respeito a essa importante alínea das nossas vidas?

A questão do financiamento para a cultura é um problema, como nós sabemos. É uma questão super-problemática e, às vezes, a pessoa vê tudo o que está a acontecer e… Bem, este ano até foi o primeiro ano em que concorremos, na verdade, e tivemos o apoio da DGArtes. E ficámos em primeiro lugar na nossa área. Mas uma pessoa não pode ficar muito contente quando vê centenas e centenas de projectos óptimos, excelentes, que não foram financiados. Eu passo a vida a partir a cabeça, a tentar questionar-me sobre quais as soluções para isto. Como é que se pode seguir em frente com projectos, sejam eles quais forem, sem estar permanentemente dependente de dinheiros e financiamentos públicos? No caso do Lisboa Soa, nós contámos sempre com o apoio da EGEAC desde a primeira edição. Tivemos a sorte de encontrar um entendimento nas pessoas que lideravam, na altura, essa organização. Agora, esse futuro é absolutamente incerto e eu nem sei se deva falar muito sobre isso. É o que é. Da parte da EGEAC, já me disseram que será o último ano em que querem ter o festival dentro da sua programação e que pretendem seguir outras direcções. Ou seja, há flutuações políticas dentro das questões dos financiamentos, que me desagradam profundamente e que, às vezes, nem ajudam a valorizar o nosso trabalho. Acho que este é o sentimento de grande parte das pessoas que trabalham na cultura. Há uma frustração, no sentido em que uma pessoa dá tudo o que tem, entrega completamente tudo a um determinado projecto, mas que depois é difícil valorizá-lo, porque está sempre na iminência de terminar em qualquer altura. O lugar em que nós estamos, neste momento, sinceramente, e apesar de eu estar a fazer uma 8ª edição, não é nada positivo no panorama global.

Queria ouvir-te falar agora sobre o cargo internacional para o qual foste indigitada recentemente. O que é que isso significa no conjunto das tuas actividades?

Essa nomeação apanhou-me, de facto, bastante de surpresa. Obviamente, é incontornável passar por esta organização, a World Forum for Acoustic Ecology vem no seguimento do World Soundscape Project, que foi a organização fundada por Murray Schafer, Barry Truax ou Hildegard Westerkamp nos anos 70 e que se ocupava da paisagem sonora de Vancouver, onde era situada. Depois perceberam que era importante alargar fronteiras e ter uma organização que tivesse um alcance internacional e formou-se o World Forum for Acoustic Ecology, em 1993 — faz 30 anos este ano. A organização está sediada nos Estados Unidos. Ao longo destes 30 anos, os seus presidentes e a sua comissão executiva foram sempre compostas por pessoas dos Estados Unidos, Canadá e Austrália. Portanto, como deves imaginar, nunca me ocorreu a mim na vida semelhante cargo. Quando tal me foi proposto, fui tomada de surpresa, mas aceitei que o meu nome estivesse nessa proposta. Foram propostos 3 ou 4 nomes e o meu acabou por ser votado pelos diferentes membros e fui eleita. Por um lado, é, obviamente, uma coisa que me deixa orgulhosa, devido a esse reconhecimento pelos meus diversos esforços. Tenho feito outras coisas para além do Lisboa Soa, particularmente os filmes, que têm tido algum alcance. Também tenho o Invisible Places, que é um simpósio que teve a sua primeira edição em Viseu, depois passou pelos Açores… Enfim. Tenho feito algumas coisas que têm tido uma certa leitura e reconhecimento. Tem sido um contributo, dentro daquilo que eu sou capaz de fazer, para me valer esta nomeação. Isso aconteceu em Março. O Eric Leonardson, o anterior presidente e actual vice-presidente, insistiu muito para que eu estivesse disponível para isto. Ele já estava neste cargo de presidente há 10 anos. Uma das coisas que lhe disse é que seria completamente impensável e que os mandatos devem de ser mais reduzidos. Em princípio, o meu mandato será de 3 anos e eu estou nos primeiros meses. Temos reuniões mensais. A minha vontade, as propostas do que eu gostaria de fazer, ainda estou a perceber como é que podem ser implementadas. Lá está, estou numa fase de ouvir, ouvir, ouvir, conhecer bem a organização e, depois, perceber como é que se podem fazer certas coisas que eu acho que são importantes nesta área. É, obviamente, um desafio e ainda estou nesta fase de escuta e de entendimento sobre a própria organização. É isso. Mas é um desafio bastante interessante.

Falas em reconhecimento e, em muitos campos, Portugal parece ser um país que só acorda para certas questões — ou certas pessoas, certos trabalhos, certas “missões”, se quiseres pegar naquela palavra que há bocado discutimos — quando começam a existir alguns ecos internacionais. No teu caso, mencionaste que a EGEAC decidiu saltar fora da equação precisamente na altura em que esse reconhecimento internacional chegou. Não devias sentir que neste momento se abririam mais portas do que aquelas que se fecham?

Eu nunca fui uma pessoa deslumbrada, que de repente pensasse “olha, sou presidente desta organização.” Não. Eu sempre tive de criar o meu próprio trabalho, sempre tive de o inventar. Ao longo destes anos todos, é o que tenho feito. Enfim. Escolhi um caminho que não dá para eu, de repente, me deixar ficar relaxada. Não posso deixar de estar preocupada com o facto de que preciso de dinheiro para pagar a renda no fim do mês. Não estou tranquila e as coisas não funcionam assim. É um facto, eu sei que tenho dado provas de trabalho, várias. Por outro lado, quando ouço essas coisas por parte da EGEAC, não posso deixar de dizer que fiquei… Não foi nada que me surpreendesse e acho, sinceramente, que é um problema político, estas coisas de se poder cortar com o que veio de governos anteriores. É um problema que irá sempre assombrar este país nas suas mais diferentes áreas. Não é só na cultura. Mas eu sou a pessoa que, mesmo assim, faz as coisas. Eu só sei ser assim. Porque as coisas têm um sentido, têm valor. Infelizmente, acho que não existe uma capacidade de análise e crítica de entendimento. Acontece, curiosamente, que essa resposta da EGEAC aconteceu mais ou menos em simultâneo com o World Forum for Acoustic Ecology. De um lado, tens este reconhecimento de uma organização mundial, que te escolhe para este lugar e reconhece que tens dado contributos válidos numa determinada área; por outro, tens uma entidade local para a qual o que tu fazes não tem interesse nenhum. Não te sei dizer [risos]. É o que é. Se me perguntares como vai ser daqui a um ano? Não sei, não sei. Passo a vida a fazer candidaturas a tudo e mais alguma coisa. É sempre uma luta. Mas está tudo bem [risos]. Não gosto de fazer queixinhas. Quero estar bem a fazer as coisas.

Não és tu que se estás a queixar, sou eu que estou a querer saber. São coisas diferentes.

Exactamente.



Entretanto irás a Oslo a convite do UltimaComo é que isso aconteceu?

Como é que acontece Oslo? O contexto disto é que eu concorri — lá está, enfim [risos] — a uma call internacional que saiu em finais de 2020, inícios de 2021. Era uma call que procurava um curador de arte sonora num espaço público. É um projecto europeu, financiado pela Europa Criativa, chamado Sounds Now, que é uma rede de festivais e organizações de música — um misto entre arte sonora e música contemporânea. Dentro desse mega-projecto europeu Sounds Now há esta exposição de instalações sonoras em espaço público, para se repensar o espaço público no pós-pandemia. Eu concorri e fui seleccionada nessa call. Esta já é a última exposição. Fiz quatro outras exposições: a primeira ainda em 2021, no Wilde Westen, na Bélgica; a segunda no November Music, em Den Bosch, na Holanda; depois tive uma no Sport Festival, em Aarhus, Dinamarca; e uma exposição que não pertencia a um festival, mas a uma organização chamada Onassis Stegi, em Atenas. Quando eu concorri a esta open call, a perspectiva deles era a de uma instalação sonora que circulasse por entre estas 5 cidades. Na altura apresentei uma proposta, em que lhes disse que uma instalação sonora nunca é a mesma de um espaço para o outro, porque há sempre uma reacção ao espaço. Não podemos encomendar uma instalação sonora pelo correio, depois abrir a caixa num sítio qualquer e meter aquilo a soar bem. Não é assim que funciona. Tem de partir do lugar e tem de partir do contexto. Daí todas elas terem sido completamente diferentes. No caso do Ultima, agarrámos projectos que já vieram de trás e que, de alguma forma, permitiram a estes artistas aprofundar um pouco mais esse trabalho. Há sempre a perspectiva mais ligada à ecologia, aqui no caso do Ultima, que foca bastante a questão das alterações climáticas, da água, etc.. Serão 3 artistas e todos vão fazer uma instalação e uma performance. Um é o colectivo português Sonoscopia, com o Henrique Fernandes e o Gustavo Costa em colaboração com o Vincent Martial. A instalação deles é ligada à água e aos ciclos da água. Depois tenho a Kathy Hinde, uma artista que vai fazer uma instalação com umas listening horns, umas esculturas sonoras que são colocadas ao longo de um pequeno caudal de água, em que se poderá ouvir os sons debaixo de água. Depois o Mikhail Karikis, que é um artista grego que, actualmente, por acaso, vive em Lisboa. Ele trabalha as questões do clima e, no ano passado, fizemos uma coisa com ele no Lisboa Soa. Também já fiz outros projectos com ele. Ele usa vários elementos relacionados com o clima, desde instrumentos de orquestra que emitam condições climatéricas — rain sticks e outros -, que foram pré-gravados. Faz workshops com um coro que, por acaso, em Oslo, será um grupo de activistas do clima. Também faz um trabalho de investigação com uma cantora de folk contemporânea, em que se abordam determinadas canções tradicionais que abordam questões do clima. No fundo, a preocupação é com as questões climáticas e ambientais. São três projectos com estes dois tipos de apresentações em espaços diferentes. É isso.

Como é que tratas os seus ouvidos? São uma ferramenta fundamental para o teu trabalho. Por exemplo: que tipo de auscultadores usas?

Eu, se puder, prefiro não usar auscultadores. Aliás, estou aqui sem usar auscultadores. Mas não penses que sou uma geek da tecnologia, porque não sou nada, mesmo. Ainda por cima tenho filhos que me estão sempre a roubar os auscultadores [risos]. Detesto earphones, isso não consigo, faz-me imensa impressão ter coisas dentro dos ouvidos. Mas não sou uma purista do som. Conheço vários puristas do som, verdadeiras personagens, que protegem profundamente os seus ouvidos. Eu não sou uma pessoa de andar sempre a ouvir música. Sou um bocadinho chata naquelas coisas de ir a uma esplanada na praia e, de repente, está uma música super-alta. Isso é uma coisa que me incomoda profundamente. Há coisas que me incomodam profundamente e, geralmente, dou por mim a tentar intervir, do género ir dizer às pessoas que a música está um bocado alta demais. Toda a gente fica a olhar para mim como se eu fosse uma chata [risos]. Mas pronto, é esse o tipo de coisas que me incomodam. A nível de tecnologias, não tenho phones com noise canceling. Tento estar sempre atenta. A não ser quando ando com o microfone a gravar. E gosto sempre de ir com alguém quando ando nas minhas gravações. Tenho tido a sorte de me cruzar, de me tornar amiga e de ter colegas de trabalho que são pessoas com uma capacidade infindável de gravar som das formas mais extraordinárias. Tenho tido as experiências mais incríveis em tempo real, com os objectos mais inusitados. Sei lá. Lembro-me de estar, por exemplo, uma hora e meia, para ai, com o Peter Cusack a ouvir um poste com microfones de contacto. Aquilo estava sobre uma falésia e tu ouvias as ondas do mar e o vento ressoar por entre o poste — aquilo era uma orquestra autêntica! Nesse sentido, acho que a tecnologia nos ajuda a ir mais longe. Eu tenho feito alguns filmes sobre som e o primeiro deles, o Soundwalkers, que terminei em 2008, na altura comecei a gravar com muito pouca tecnologia boa. Lembro-me de andar com um MiniDisc a gravar som — foi a primeira coisa que usei para gravar som. Mesmo assim, com o MiniDisc, já ficava completamente deslumbrada na rua. Eu estou habituada a filmar, a andar com uma câmera, e a imagem põe-nos sempre externos, a uma certa distância do objecto. Se tiver a gravar som na cidade, além do som vir de todos os lados porque estamos imersos no som, de repente tem um alcance que é… Enfim. É uma experiência que eu acho que é excelente e de que eu gosto imenso. Então quando tens determinados equipamentos… Aí sim, faz a diferença. Por exemplo, gravar com o geofone, microfones criados para medir as vibrações sísmicas do solo… Aquilo consegue captar baixíssimas frequências e dar-nos… Aquilo que se ouve pode mesmo ser extraordinário. De resto, a protecção dos meus ouvidos é mais esta coisa do chegar a uma esplanada e ter de dizer, de explicar, que aquela esplanada ficaria mais bonita sem aquela coluna de treta a mandar um beat. Às vezes sou bem sucedida, mas geralmente não sou [risos].

És fã do The Conversation, do Francis Ford Coppola?

Sim, claro. Esse é uma referência. Até já mostrei esse filme numa das minhas aulas. Geralmente mostro sempre, porque há filmes super-interessantes.

Gosto muito. Também imagino que o Blow Out seja outro bom filme para pessoas com os mesmos interesses que os teus. A última pergunta que tenho parate colocar é: que música ouves no teu dia-a-dia? Que música escuta uma pessoa que pensa tanto sobre o som e também sobre o som em espaço público?

Eu adoro música e adoro fazer playlists. Tenho montanhas de playlists para situações diferentes. Se me perguntares qual é a minha playlist para… Por exemplo, eu agora tenho andado a escrever e preciso de estar concentrada nesses momentos, então ouço coisas muito mais etéreas e espaciais, um bocado dentro desta esfera do Lisboa Soa, mais drone. Mas o que ouço mais regularmente é bastante variado e vai desde, sei lá, música funk dos anos 70 a rock and roll de agora. Sempre fui uma pessoa que gosta de procurar, de pesquisar, de descobrir música. Posso falar de coisas que ando a ouvir imenso, como a banda The Fabulous Three, The Ghetto Brothers, coisas assim com um certo groove retro [risos]. Molly Nilsson, uma sueca que ando a ouvir imenso. Imensas coisas. O meu gosto musical é muito variado e está sempre em transformação. Mas tenho enormes referências que me acompanham desde sempre, como a Nina Simone. No fim-de-semana passado estive no FMM Sines, já não ia lá há 20 anos. Aí está o exemplo de um festival que se consegue manter, e tive oportunidade de dizer isso ao Carlos Seixas. Há uma espécie de cultura que vem de dentro. E mesmo nos festivais de maior dimensão — eu tenho um mini-festival, comparado com o de Sines — esta coisa da boa onda, uma certa forma de estar, é algo que muitos desses grandes festivais se esqueceram, com toda aquela coisa de trazer cada vez mais pessoas. Aquele não, mantém-se intacto. Adorei uma banda da Jamaica, Inna de Yard, por exemplo, foram incríveis. Ouvi umas coisas que gostei. E já estou a ir para a esfera da world music, que é tudo.


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