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Fotografia: Carlos Brum Melo & Vera Marmelo
Publicado a: 02/04/2023

Entre discos e concertos.

Tremor’23, dias 31 de Março e 1 de Abril: o poder das avalanches solares

Fotografia: Carlos Brum Melo & Vera Marmelo
Publicado a: 02/04/2023

Coisas sempre curiosas, as lojas de velharias que resguardam do desaparecimento marcas de um passado de que tanta gente se sente ainda próxima. Claro que a quem assina estas linhas interessam sobretudo as lojas dessa categoria que, entre todas as quinquilharias possíveis e imaginárias, acumulam também discos. Nas tais grandes cidades, o tipo de discos que se encontra nestes espaços pouco ou nada nos diz sobre as próprias cidades: podem chegar de todo o lado, aqueles álbuns e singles, partes de recheios de casa que foram sendo desbaratados em divisões de heranças. Nesses casos, os discos costumam ser de todos os géneros e feitios e de todas as proveniências, mas a abundância nesses lugares de interessados em tais objectos significa quase sempre que o tempo aí foi funcionando como o filtro que foi deixando escapar as pérolas e só reteve os detritos, não permitindo, a esta distância, contar uma história: e ninguém precisa de caixas do Reader’s Digest, discos de Paul Mauriat (bem, talvez só de dois ou três) e compilações de êxitos manhosas, certo?

MAS, num lugar como Ponto Delgada, bem mais pequeno e isolado, com mais escassez dos “abutres de cultura” (como nos designou Angel Bat Dawid na entrevista que concedeu ao ReB) que podem ser enxames nas grandes cidades, estes lugares podem ser mágicos. Demos com um lugar assim logo no primeiro dia (quinta-feira, 30 de Março) desta aventura, na caminhada para o Parque Urbano onde decorreu o Tremor na Estufa com Fado Bicha. A pressão do tempo nesse dia não permitiu que se percorressem todas as prateleiras da generosa secção de discos, mas 10 minutos foram suficientes para apanhar logo meia dúzia de rodelas significantes (Tom Tom Club, Scritti Politti, The Sequence, Black Uhuru…). Foi o regresso nos dois dias seguintes que revelou o espectro total do tesouro que ali se guardava.

A diáspora que levou muitos açorianos para o novo mundo também os trouxe de volta, pelos menos nalguns casos. E com eles vieram muitos discos. Naquela loja existiam sobretudo discos vindos dos Estados Unidos e Canadá – soul, funk e disco, rock mais pesado, bastante reggae (Toronto é casa de uma vasta comunidade de origens jamaicanas, por exemplo) – e a consequência disso é que o regresso a Lisboa vai ser mais complicado do que a vinda. Fica-se com a ideia de que as grandes cidades são sítios de passagem e que ilhas como São Miguel talvez tenham sido mais terras de partida e de chegada do que qualquer outra coisa. O Tremor, pois claro, é uma das iniciativas culturais que anualmente transformam a ilha num local de passagem, condição que ajudará a explicar que uma boa centena de discos cuja história começou em Toronto ou Newark possa agora, depois de uma etapa açoriana, prosseguir viagem pelo mundo a partir de Lisboa. A música, já se percebeu, viaja e não se deixa confinar nem pela geografia, nem pelo tempo. Coisa maravilhosa, pois claro. E algo que fica igualmente claro no desenho do tão desafiante quanto entusiasmante cartaz da edição 2023 do Tremor que hoje mesmo, já madrugada avançada, chegou ao final.

Foi com mais um Tremor na Estufa que começou a segunda jornada do Rimas e Batidas por São Miguel. Na remota lagoa de São Brás, a tenda-palco de rigor geométrico acolheu intensa actuação de Cobrafuma, banda do Porto que nasce da vontade de músicos com historial em grupos como Plus Ultra, Greengo e Killimanjaro: José Roberto Gomes, Luís Chaka, Azevedo e Rui Pedro Martelo fazem barulho como gente grande, mas nada que perturbe os patos que nadam na lagoa ou as vacas que pastam nas encostas que a ladeiam. Punk, metal de diferentes densidades, algum sentido de humor e força bruta total transformaram durante um breve momento aquele pedaço de paraíso verde num pedaço de paraíso verde com banda sonora própria de uma cave fumarenta nas entranhas de uma qualquer cidade. Por estranho que pareça, a coisa fez sentido e o público – abundante, com muitas crianças de auscultadores protectores a sentirem ainda assim o poder da música – aproveitou ao máximo a experiência.

O verdadeiro tremor-abalo de dia 31, no entanto, aguardava-nos no centro de Ponta Delgada, no extraordinário Solar da Graça, restaurante típico carregado de patine e de alma, um daqueles sítios que a gentrificação adora obliterar, mas que se revelou perfeito para acolher duas impressionantes tempestades. A primeira coube a Avalanche Kaito, um trio que resulta do encontro de Kaito Winse, griot oriundo do Burkina Faso, com o que o programa descreve como “uma dupla de pós-punk noise de Bruxelas”, Le jour du seigneur, Arnaud Paquotte (guitarra) e Benjamin Chaval (bateria e electrónica). O trio lançou aclamado álbum de estreia em Junho do ano passado e veio a São Miguel com a força total de uma música que soa nova porque é híbrida e universal. Ainda que as palavras que derivam de provérbios do Burkina Faso soem ininteligíveis à maioria dos ouvidos.

Este encontro de culturas é na verdade a promessa de um novo mundo, de harmoniosa mistura, muito mais do que de directo confronto, um mundo onde o “outro” somos, afinal de contas, todos e todas nós. Sentiu-se isso quando a dada altura um refrão com palavras desconhecidas se tornou efusivo coro colectivo, gesto espontâneo de entrega comunal que pareceu surpreender até a própria banda. É que a energia que se desprende de uma música de cavalgante densidade rítmica a que Kaito acrescenta flautas tradicionais, talking drum e o que parece um arco e soa a instrumento da família dos berimbaus, embora com som mais grave, é absoluta e avassaladora, generosa e luminosa. A sala, completamente cheia, com a mezanine a fornecer camada extra de densidade humana, foi perfeita para um momento de ampl sintonia que urge repetir. Esta é uma avalanche de amor, sem dúvida.

Depois de um concerto assim, o restante programa do dia empalideceu consideravelmente e a passagem pelo Coliseu Micaelense para ver outra aventura de sinérgico cruzamento – ZA! & Perrate: de um lado, uma dupla catalã que o Tremor apresenta como criadora de “música em constante viagem pelo mundo, na confluência de ritmos vindos do noise, rock psicadélico, free-jazz, electrónica ou pós-rock” e do outro o cantautor andaluz Perrate, “um dos músicos que tem vindo a abrir o espaço sonoro do flamenco, adicionando-lhe influências do reggae, bolero ou rock” – já não mexeu com este par de ouvidos da mesma maneira. No papel (ou no ecrã do telemóvel…), há que dizer que a descrição prometia, mas no palco a ideia que é boa parece não estar ainda resolvida da melhor forma. Ou isso ou, como já se deu a entender, a avalanche anterior não permitiu que mais nada entrasse. Já nas Portas do Mar, no espaço de programação mais tardia, Lucrecia Dalt sofreu com a mesma indisponibilidade e por isso mesmo, a missão Rimas e Batidas acabou por dar o dia por terminado.

O dia de ontem, sábado, começou cedo, com a ligação do Tremor à programação Terra Incógnita. É admirável que um dos propósitos do Tremor seja esta conexão à terra, ao chão desta gente, algo que acontece de diferentes formas: o Tremor na Estufa é uma delas, mas há mais, podendo – e devendo, aliás – entender-se esta vontade de ir desbravando terreno ao apresentar concertos em teatros, quiosques, jardins, restaurantes, igrejas, piscinas de água naturalmente aquecida, cineteatros periféricos, lojas de discos, lagoas remotas, etc, como uma forma eficaz de ligar estes públicos a lugares mais ou menos frequentados de uma forma que é tão emocional quanto cerebral. Bonito. 

O Terra Incógnita levou-nos a Pias das Capelas, lugar que em tempos foi de faina das baleias, onde se fez uma caminhada por escarpas de beleza de cortar a respiração enquanto os tranquilos passos eram acompanhados pela banda sonora criada por Sensible Soccers e pela violinista e compositora norueguesa Inger Hannisdal. A ligação entre música e paisagem é sempre subjectiva, emocional, ultra-pessoal e impossível de retransmitir quando acontece desta forma, com cada um dos caminhantes a ligar-se através de auscultadores que debitam a peça a partir de uma aplicação a que se acede no telemóvel. A missão de cumprir o trilho é colectiva, mas o peso de cada passo é, definitivamente, individual.

Já no Cineteatro Açor, lugar mágico e estranho que ao longo das décadas – como os artefactos expostos bem evidenciavam -, viajou das glórias dos tempos da película em Hollywood aos abismos da era VHS comandada por Chuck Norris e daí até ao clube de periferia com aparente propensão para o metal – a julgar pelos posters subtraídos a revistas e colados na entrada -, os Sensible Soccers de André Simão, Hugo Gomes e Manuel Justo juntaram-se a Inger Hannisdal para um concerto de fim de manhã em que voltaram a viajar pelas peças criadas em conjunto para esta Terra Incógnita. Deste lado ficou-se a ansiar por edição do trabalho conjunto em formato físico – e se permitem uma sugestão, isto em cassete – que vai bem com walkman e retém o lado humano que resultou desta experiência colectiva – viria mesmo a calhar.

E depois de tudo, de mais uma visita durante a tarde à tal loja bem recheada de discos, de mais um passeio pelas belíssimas ruas de Ponta Delgada em busca do inusitado, eis que se regressou ao Solar da Graça para mais um momento de absoluta revelação, a apresentação ao vivo – em estreia no nosso país – das Divide and Dissolve. Segundo tremor-abalo em outros tantos dias.

A saxofonista, clarinetista e guitarrista Takiaya Reed e, em dia de aniversário com direito a cântico colectivo e tudo, a baterista Gloria, assinaram um concerto de absoluta perfeição e maravilhamento. Importa referir, antes de mais nada, o positivo discurso de Takiaya Reed, afro e nativo-americana que fez questão de mencionar o peso histórico do colonialismo, as feridas ainda abertas resultantes da escravatura e a história de violência a que as comunidades racializadas sempre foram sujeitas. No público havia sobretudo gente branca. É por isso necessária alguma coragem, por parte de quem fala sobre supremacia branca, e capacidade de compreensão, por parte de quem escuta. Acontece que ambas as qualidades estavam presentes em abundância naquele feliz e apropriadamente nomeado Solar da Graça.

A música das Divide and Dissolve, arrisco dizer, faz particular sentido num lugar como São Miguel: faz-se de força telúrica, de explosões de lava, de movimentações tectónicas lentas, de incandescente electricidade que Takiaya arranca a uma parede de amplificadores e a um arsenal de pedais, erguendo um infinito obelisco harmónico que parece fazer-se da mesma luz que se solta dos relâmpagos. E tudo isso enquanto a aniversariante arranca verdadeiros tremores à bateria, numa perfeita consonância com os caminhos que a sua companheira começa sempre por desenhar no instrumento de sopro com que tece uma cama de loops e que, depois, percorre com a guitarra invertida para acomodar a sua canhota condição. Dizer que foi absolutamente maravilhoso é dizer muito pouco: segunda avalanche de luz, amor, groove compressor e ruído noutros tantos dias. Se o Solar da Graça resistiu a isso então é porque está pronto para os próximos mil anos.

Depois de passar pela lindíssima Igreja do Colégio para assistir, de fugida, ao encantamento professado por Inês Malheiro, que fez da sua voz verdadeira talha dourada que se impôs naquele espaço de forma sonoramente escultórica, diante de uma reverente plateia completamente preenchida, lá se foi em solitária romaria até ao Coliseu Micaelense para o concerto de Angel Bat Dawid.

Acompanhada apenas por uma parceira vocalista que se desdobrou nalgumas movimentações coreográficas e em pontuais abordagens à percussão, diante da projecção de imagens em que símbolos da justa, dura, urgente e transformativa luta #BlackLivesMatter foram sendo projectados, bem como ilustrações que aludiam à nossa história colonial e ao horror da escravatura, Angel apresentou uma pálida versão da música que nos seus discos arrebata pela profundidade, intensidade e seriedade. Nos clarinetes e usando efeitos, a escultura sonora ambiental que a dupla construiu soou desadequada no amplo espaço do Coliseu Micaelense.

Uma vez mais, tal como tinha sucedido no dia anterior perante a subjugação ao poder de Avalanche Kaito, talvez Bat Dawid tenha sofrido com os efeitos impostos pela incrível apresentação das Divide and Dissolve.

O Tremor, para o Rimas e Batidas, acabou ali, ainda que a noite prometesse Pongo e outros nomes de valor. Mas ter acordado hoje com aqueles acordes de raiva e amor ainda a ressoarem nos ouvidos indica que talvez essa tenha mesmo sido a melhor opção.


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