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Fotografia: Inês Subtil & Carlos Brum Melo
Publicado a: 31/03/2023

Evolução e revolução.

Tremor’23, dia 30 de Março: das bichas mal consideradas

Fotografia: Inês Subtil & Carlos Brum Melo
Publicado a: 31/03/2023

Aterrar em Ponta Delgada tem – sempre! – o sabor de entrada numa dimensão paralela, alternativa, dando-nos uma sensação de fuga ou de escape para um universo bem distinto daquele em que habitamos durante boa parte do ano. Coisa boa, portanto. No dia de ontem, porque assim ditaram os constrangimentos da vida real – horários de voos, compromissos paralelos, refeições, etc – foi só possível ver dois concertos – Fado Bicha, convocados para o Tremor na Estufa, e Ill Considered, que se apresentaram no Mercado da Ribeira Grande. Apenas dois, mas ambos incríveis, por diferentes razões.

No Parque Urbano de Ponta Delgada, mesmo de frente da Quinta dos Açores, uma tenda montada sobre uma estrutura metálica, que parecia decalcada de uma das figuras geométricas do jogo de arcada clássico Asteroids, abrigou a apresentação de Lila Fadista, João Caçador e Labaq – Fado Bicha. OCUPAÇÃO, álbum de estreia, desfilou perante uma plateia disposta em modo esplendor na relva, em dia cinzento de nuvens, mas brilhante de amor. Muitas crianças presentes – é a elas, que nos vão salvar a todos e todas, que estas coisas da mudança mais importam – testemunharam uma performance sem filtros (coisa boa), em que Lila falou demoradamente (outra coisa boa) entre canções, explicando, por vezes em modo bilingue (mais outra coisa boa), do que tratavam as canções que contam histórias de bailarinos, poetas, rapazes de camisa verde, estudantes martirizados por fascistas e mulheres trans que desafiam o preconceito só por existirem. Fado Bicha é uma voz de revolução, de evolução, um motor de mudança, que coloca no centro da sua própria narrativa uma mensagem de absoluto e natural e bonito e urgente e precioso orgulho. O mundo da Lila é melhor do que aquele que quase todos conhecemos e ainda por cima ela lê o futuro, como nos revelou ontem, sem ler palmas de mãos ou interpretar folhas de chá ou borras de café, bastando-lhe o vislumbre de um ânus para poder antecipar o amanhã. Há gente capaz de tudo…

João Caçador e Labaq tocaram guitarras eléctricas e tambores electrónicos como se a casa de fados sempre tivesse ressoado assim, como se as marchas da Avenida da Liberdade sempre tivessem ressoado assim, canalizando o espírito doce de Variações para o centro do nosso coração com um pulsar que é, ao mesmo tempo, moderno e antigo, tradicional e revolucionário. Fado é, afinal de contas, o que quem se considera fadista quiser. Foi bonito e acabou com toda a gente a dançar ao som da “Crónica do maxo discreto”.



E depois veio o Tremor, já noite feita, após um retemperador jantar no Mercado da Ribeira Grande. Emre Ramazanoglu, Idris Rahman e Liran Donin já tinham deixado bem claro no Mucho Flow do ano passado que são uma das mais poderosas equações jazz do presente. Ontem abusaram. Muito literalmente: durante 100 minutos (verdade!!!), a música absolutamente improvisada do trio ascendeu das trevas à luz, vibrou do abismo à estratosfera, mexeu com corpo e espírito, alinhou chacras e restabeleceu energias. Os Ill Considered são uma das mais preciosas entidades do nosso presente, um trio dinâmico que entende o jazz como espaço de total liberdade, que não faz concessões de qualquer espécie, que abraça o poder libertário do groove com a força de uma convicção funda e honesta, mas que parte dali para um lugar novo a cada microsegundo, como se estivessem em permanente erupção.

Rahman estava especialmente feérico no seu saxofone, um vocalista que fala uma língua sónica universal através de um instrumento em constante derrapagem, que dispara riffs como se fossem relâmpagos em noite escura, trovões que rompem o mais fundo dos silêncios. E Ramazanoglu e Donin seguem-no, perseguem-no, como uma imparável locomotiva, plenos de poder, exibindo um perfeito entrosamento: pulsares eléctricos, cadências resgatadas a todo o lado, do funk e do hip hop ao kraut. E tanto o baixo como o sax são fontes estonteantes de colorações melódicas muito especiais, que trazem diferentes culturas do oriente de forma muito subtil para o centro do seu imparável discurso. O público respondeu efusivamente (como não?…), entregando-se à dança e condicionando efectivamente o que se passava no palco. O concerto é o resultado de uma muito real troca de energias. O público reagiu da forma que reagiu porque os Ill Considered deram o máximo, mas os Ill Considered deram o máximo porque receberam esse estímulo por parte das pessoas que exigiram que não abandonassem o palco. Dizer que foi muito intenso e muito maravilhoso é dizer muito pouco. Se os puderem ver amanhã no Musicbox, em Lisboa, não percam a oportunidade.


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