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Fotografia: Daryan Dornelles
Publicado a: 15/06/2022

Um longa-duração que é "uma re-perspectiva do passado queer em Portugal" mas também "uma postura artística e política" em relação ao seu presente e futuro.

Fado Bicha: “Não havia forma de existirmos plenamente no fado sem ser embatendo de frente com alguns dos seus alicerces mais sólidos”

Fotografia: Daryan Dornelles
Publicado a: 15/06/2022

Hoje mesmo, quarta-feira 15 do mês do Pride, Junho, Fado Bicha dão uma festa de lançamento para o seu álbum de estreia, OCUPAÇÃO, no Musicbox, em Lisboa. Num concerto dirigido à comunidade queer, Lila Fadista e João Caçador terão a colaboração de váries artistas que participam no disco, e outres ainda, como labaq, Trypas Corassão, Di Cândido, passarumacaco, Symone de lá Dragma e Yizhaq. Vai ser uma noite de celebração do orgulho LGBTQIA+, antes mesmo da celebração da Marcha de dia 18. Pois claro que o Rimas e Batidas quis saber mais e meteu conversa…



Apresentam OCUPAÇÃO como um “manual de sobrevivência queer”. Podem elaborar sobre esta referência? É neste aspecto que reside o “artivismo” que escolheram como modo de intervenção de Fado Bicha?

[Lila Fadista] De algumas formas diferentes, OCUPAÇÃO é o álbum possível. Desde as autorizações que não obtivemos para gravar vários dos fados que vínhamos cantando desde o início do projecto até às limitações de tempo e logísticas e às canções que não conseguimos terminar ou que acabámos por achar que não estavam ainda suficientemente boas ou não encaixavam, chegámos a um álbum que tem muito de início e trajecto como de momento actual e experimentação — a última canção a ser feita, “Fado Ribeiro Santos”, foi terminada de compor em Dezembro do ano passado. Quando finalmente olhámos para o que tínhamos como um todo, percebemos que as faixas cobriam uma espécie de eixo temporal subjacente, do passado ao futuro. 

Musicalmente (com composições mais próximas do fado que se ouve nas casas de fado e outras que divergem muito dessa matriz), pessoalmente (com referências ao meu passado e a momentos mais recentes e actuais da minha vida) e conceptualmente (ensaiando uma possibilidade de genealogia queer portuguesa, falando da nossa ancestralidade — ou falta dela –, de dinâmicas patriarcais que nos excluíram historicamente e continuam a fazê-lo, da violência muito particular que sofremos, como uma epidemia antiga à qual se juntou a do VIH-sida, mas também da nossa resistência, beleza e, principalmente, capacidade de ver e criticar as comunidades onde nos inserimos de uma forma muito especial — aquilo a que Halberstam chama de fazer queer, em substituição de ser queer). Lendo tudo isto no trabalho que tínhamos feito, sentimos que tinha alguns laivos de manual de sobrevivência, poeticamente falando, no sentido em que propõe uma re-perspectiva do passado queer em Portugal e também uma postura artística e política em relação ao nosso presente e futuro. E isto era a nossa maior ambição — e o nosso maior sonho — com o Fado Bicha. 

Ao longo dos anos de actividade de Fado Bicha e dos seus já muitos concertos, videoclipes e aparições públicas vocês foram surgindo cada vez mais como a voz da consciência de toda uma comunidade, mesmo quando não estão em cima de um palco. Entendem-no assim, procuraram esse estatuto ou é algo que vos surpreende?

[Lila Fadista] Não nos entendemos assim, pelo menos não de uma forma unitária, até porque também recorremos a outras pessoas da comunidade queer em Portugal para buscar entendimento e conhecimento, nomeadamente pessoas de outras pertenças identitárias (pessoas lésbicas ou racializadas, por exemplo). Mas temos consciência de que o nosso trabalho e a nossa postura ao longo destes anos fizeram com que cimentássemos uma voz importante dos temas queer em Lisboa e que várias pessoas têm expectativas altas em relação ao nosso trabalho e às formas como nos posicionamos. E nós também temos essas expectativas e essa exigência em relação a nós próprias, então é uma questão de entendermos e aplicarmos uma prática de responsabilidade a tudo o que fazemos e, sinceramente, nem saberíamos fazer de outra forma. 

Os vossos concertos são muito performativos e neles a encenação, a roupa, a maquilhagem, a representação são essenciais. Habituámo-nos a considerar Fado Bicha como um projecto de palco, imaginado para o palco e conceptualizado para funcionar ao vivo. O que acham que este primeiro disco vem mudar ou consideram que é algo que apenas se acrescenta a essas coordenadas?

[João Caçador] Interessante essa perspectiva, concordamos com ela. De facto, nós somos muito do palco e de uma ideia de palco bem experimental, exploratória. A Lila não tem formação musical e nunca tinha cantado em público, eu tenho mas sentia muita ansiedade em tocar em contextos mais formais, estudei jazz e havia uma preocupação muito grande com o virtuosismo, achava-me sempre insuficiente. No fado encontrei um ambiente mais orgânico para mim, mas depois também fui entendendo todos os seus constrangimentos estilísticos, para além da questão das normatividades todas que não nos contemplam enquanto bichas. Juntas, podíamos fazer algo sem expectativas, pelo prazer de errar e descobrir. E, apesar de estarmos noutro lugar agora, esse espírito manteve-se um pouco, se a Lila quiser parar uma música a meio porque entrou mal ou porque se lembrou de algo para dizer, ela vai parar a música a meio. Nós gostamos dessa permissão.

O estúdio tem outra dinâmica. Coloca-nos frente e frente com as nossas limitações e inseguranças e isso pode ser muito difícil de ultrapassar. 

O Luís [produtor do álbum] foi um anjo nesse aspecto, tentando sempre reforçar os elementos mais distintivos e seguros da nossa performance, de forma a que pudéssemos ser o mais fiéis a nós próprias, trazendo tudo, potências e limitações. Nesse sentido, achamos que o álbum reflecte bem o nosso universo artístico. Por outro lado, põe-nos mais responsabilidade na hora de voltar para o palco, agora com este álbum no saco. Queremos fazer jus à produção magnífica e, por isso, é que convidámos uma terceira pessoa, Lari [conhecide na música como Labaq], para nos acompanhar em palco a partir de agora. Demos os primeiros três concertos a três em França e foi absolutamente maravilhoso! 

Usam o fado como modo de expressão, apropriando-se de um tipo de música popular que é enraizadamente cis-hetero-normativo e que até foi identificado com o próprio regime fascista. A ideia de utilizar as armas do inimigo, o patriarcado, para as virar contra ele parece estar a par da apropriação dos insultos dirigidos às pessoas LGBTQ+, como “bicha”, convertendo-os em motivos de orgulho. É o mesmo tipo de lógica?

[João Caçador] O fado para nós surge de uma forma absolutamente orgânica. Não é que tenhamos “nascido para o fado”, mas gostamos muito de fado desde a adolescência: a centralidade da palavra, da língua portuguesa, a emotividade intensa, fatalista, foram elementos que fizeram com que nos ligássemos ao fado bem jovens, não tendo qualquer relação familiar com o fado. Mas é um pouco aquela reflexão: seremos subversivas e combativas por natureza ou não teremos outro remédio senão sê-lo se quisermos simplesmente poder existir por inteiro? Não havia forma de existirmos plenamente no fado sem ser embatendo de frente com alguns dos seus alicerces mais sólidos — pelo menos da sua forma actual, ainda herdeira da apropriação fascista que o Estado Novo fez dele –, então só pudemos, só podemos, escolher entre o apagamento e a dissidência. Não há “possibilidade neutra” para pessoas como nós. 

Este disco descola mais do fado, em termos de arranjos e sonoridades, do que o Fado Bicha ao vivo, parecendo iniciar uma nova fase no vosso trajecto musical – se bem que tal já estava anunciado pelos temas dados a público mais recentemente. Confirmam?

[Lila Fadista] Sim, sem dúvida. No fundo, é um reflexo das nossas influências e inspirações, que extravasam o fado, naturalmente, mas também um reflexo das potencialidades que nós e as pessoas à nossa volta reunimos, que não são infinitas, claro. Se não há alguém que toque guitarra portuguesa connosco, então não vai haver guitarra portuguesa no álbum — por acaso, agora até há, Fernanda Maciel, uma guitarrista brasileira nossa amiga, e até gravámos uma canção com ela, mas foi das que não couberam no corte final. Se temos pessoas à nossa volta que têm uma sensibilidade específica para a música electrónica, então vamos buscar esses elementos, organicamente. E assim foi. Experimentamos muitas coisas sempre e tentamos não nos colocar nenhuma barreira estilística ou conceptual à cabeça. A certa altura, tivemos algum receio de que o álbum ficasse demasiado disperso, mas acabámos por conseguir formular uma coesão musical e conceptual que nos agradava e representava. 

Parte de OCUPAÇÃO resulta de colaborações convosco de váries artistas, tal como já disseram, e a começar pelo produtor, Moullinex. Em alguns clipes que fizeram isso também já vinha acontecendo. Essa característica vem de um sentido de colectivo precisamente ligado ao artivismo de Fado Bicha, ou as motivações são sobretudo musicais e visam um alargamento de abordagens?

[Lila Fadista] Sinceramente, vem de um sentido de colectividade ou até de cooperativismo. Até porque fazemos isso em outros projectos também, como a curadoria de concertos de artistas queer no Finalmente, durante a fase crítica da pandemia, ou um projecto de fotografia que estamos a desenvolver com Daryan Dornelles e Cris Severo, dois artistas brasileires radicades em Lisboa. É uma coisa que nos dá muito prazer, estar e criar com outres artistas queer e, no caso do álbum, queríamos muito trazer a comunidade o mais possível para dentro do álbum. Há um verso da faixa #2, “ESTOURADA”, que é uma referência a um livro de Saramago, de quem eu gosto muito: “Levantado do Chão”. Para nós, o álbum é o nosso produto artístico desse exercício diário que é o de todas as pessoas queer em Portugal: levantarem-se do chão. E ninguém se levanta sozinha. 

Para além de temáticas que têm que ver com a sexualidade, a identidade de género e questões adjacentes, como a saúde mental, o preconceito e a violência, surgem outras no álbum com uma perspectiva interseccional, a começar precisamente pelo tema “ESTOURADA” e continuando com a questão do racismo. Podem comentar-me alguma coisa sobre esta vertente?

[Lila Fadista] Prende-se com aquilo de que falei há pouco, a questão do fazer e pensar queer. Pensar e trabalhar sobre a ideia e a prática de liberdade não pode nunca cingir-se apenas às vivências dos nossos corpos. E a nós ocupa-nos muito essa reflexão descentralizada de nós, com tudo o que tem de difícil e até de puramente impossível, por falta de sensibilidade. Mas gostamos de pensar que a nossa música se insere numa prática que é talvez associada à música punk, de questionar o estado das coisas, de provocar desconforto e, naturalmente, de minar todas as opressões. 

Uma questão que merece reflexão na actividade de Fado Bicha e muito presente neste álbum é a da intimidade como factor político, do privado que não é assim tão privado porque é partilhado com outres, do confessional como necessidade de afirmação. É, de resto, tema de conversa entre muitas pessoas queer e de pessoas queer com pessoas hetero que não entendem os motivos dessa exposição. O que têm a dizer sobre?

[João Caçador] Sem dúvida! Super pertinente, essa questão. Falámos um bocadinho disso antes, quando cruzámos o campo político com o pessoal, principalmente da vida da Lila, que é a letrista do Fado Bicha. Na faixa #3, por exemplo, que se chama “1997” e é uma colaboração com o trompetista trans passarumacaco e com Bernardo Araújo, um poeta e diseur de 13 anos, esse cruzamento torna-se muito pungente! A faixa é uma narração pormenorizada da experiência de bullying homotransfóbico severo que a Lila sofreu durante a infância e a adolescência, em jeito de página de diário. Podia ter sido escrito por ela em 1997, com 12 anos, e quisemos que o Bernardo, na altura também com 12 anos, gravasse essa confissão. Para a Lila, essa faixa é muito importante porque durante muito tempo, já em adulta, ela não se permitia considerar esta experiência de violência reiterada e vivida em solidão como altamente perturbadora da sua saúde mental, era quase como se não tivesse acontecido bem assim, como se fosse um exagero. Aprendemos a duvidar até da nossa dor. 

Esta faixa é um recado para a criança que ela foi de que sim, aconteceu, sim, foi horrível, sim, é ok se ainda não tiveres ultrapassado essa experiência, 25 anos depois. E as mensagens que já recebemos desde o lançamento do álbum sobre a “1997”, do choro que já causou a tantas pessoas, do espelho que criou para muitas delas das suas próprias experiências trazidas de volta, são prova da ferida profunda que carregamos connosco, escondida por anos e anos de estratégias de sobrevivência e negação. Que uma história individual de vitimização possa criar uma experiência tão intensa para tantas pessoas, quer ela sane ou perturbe (ou ambas) é um fenómeno político por excelência e só pode acontecer pela rejeição absoluta do silêncio. 

Há em Fado Bicha um elemento de provocação que por vezes é muito intencional. Sentem a necessidade de provocar como modo de intervenção?

[Lila Fadista] Se nós temos necessidade de provocar ou se falamos do que é importante para nós com a estética que sentimos que é a certa para nós isso é sentido como provocador? Se eu gosto de levar no rabo e acho isso uma experiência profundamente sensual que altera para melhor a minha relação com o meu corpo e a forma como vivo e penso a minha sexualidade, vou querer cantar sobre isso. Um pouco como Björk faz em “Pagan Poetry”, mas com mais safadeza. 

Consideram que existe uma “música queer”, vocês que até organizaram o ciclo de concertos no Finalmente de que já falámos, com convites a artistas queer de várias tendências musicais?  

[Lila Fadista] Há música feita por pessoas queer e há música feita por pessoas queer que reflecte essa identidade, que cria novos lugares de plenitude, experimentação e representação, de uma forma que contraria o silenciamento epistémico e epidémico a que somos sujeitas. É esta que nos interessa. 


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